dormir na longa sala de teto travejado. Pois tal e a hospitalidade das prosperas ilhas do Mar Interior.

Guardou um pouco da carne do jantar e, junto a cova do lume, atraiu o otaque para fora da dobra do seu capuz, onde se acoitara durante o dia, e tentou convence-lo a comer, fazendo-lhe festas e sussurrando:

— Hoeg, Hoeg, meu pequenino, meu caladinho…

Mas o animalzinho nao quis comer e foi-se esconder no bolso. Por ai, pela sua propria embotada incerteza, pelo proprio aspecto da escuridao nos cantos da grande sala, percebeu que a sombra nao estava longe dele.

Naquele lugar, ninguem o conhecia. Eram viajantes, vindos de outras ilhas, que nao tinham ouvido a Cancao do Gaviao. Ninguem lhe dirigiu a palavra. Por fim, escolheu uma enxerga e deitou-se. Mas durante toda a noite ali ficou de olhos abertos, sob o travejamento da sala, no meio do sono de estranhos. Toda a noite forcejou por escolher o seu caminho, por planear onde deveria dirigir-se, o que deveria fazer. Mas cada escolha, cada plano, logo eram bloqueados por um mau pressagio de desgraca. Atravessada em cada caminho que ele pudesse tomar estava a sombra. So Roke permanecia livre dela. E para Roke nao podia ir, impedido pelos enormes, emaranhados e antigos sortilegios que mantinham em seguranca a perigosa ilha. E o fato de o vento de Roke se ter erguido contra ele era uma prova segura de que a coisa que o perseguia devia estar ja bem proxima dele.

Essa coisa era informe e sem corpo, cega para o brilho do Sol, uma criatura de uma regiao sem luz, sem lugar, sem tempo. Tinha de o procurar tateando, atraves dos dias e dos mares do mundo que o Sol ilumina, e apenas em sonhos e nas trevas lhe era possivel tomar forma visivel. Nao tinha ainda substancia ou ser sobre o qual pudesse brilhar a luz do sol. E e assim que no Feito de Hode se canta: «O raiar do dia faz toda a terra e todo o mar, da sombra gera a forma, afugentando o sonho para o reino da treva.» Mas se alguma vez a sombra conseguisse alcancar Gued, poderia retirar dele todo o poder, e tomar o proprio peso e calor da vida do seu corpo e a vontade que o fazia mover.

Esse era o desastre que ele via perante si em cada estrada. E sabia que podia ser atraido para esse desastre. Porque a sombra, tornando-se mais forte de cada vez que dele se aproximava, podia agora mesmo ter ja forca suficiente para por a seu uso poderes maleficos ou homens maldosos — mostrando-lhe falsos portentos ou falando-lhe com a voz de um estranho. Pois, tanto quanto ele sabia, num desses homens que dormia neste ou naquele canto da sala de teco travejado da Casa do Mar nessa noite, podia acoitar-se a coisa de negrume, encontrando apoio numa alma tenebrosa e ali esperando, observando Gued, alimentando-se, naquele preciso momento, da sua fraqueza, da sua incerteza, do seu medo.

Deixara de ser suportavel. Tinha de confiar no acaso e ir para onde o acaso levasse. A primeira fria sugestao da alvorada, levantou-se e, sob a luz das estrelas que ia empalidecendo, apressou-se a descer ate aos embarcadouros de Serd, com a unica resolucao de tomar o primeiro navio prestes a partir que o quisesse levar. Uma galera carregava oleo de turbio. Iria levantar ferro ao nascer do Sol, em direcao ao Grande Porto de Havnor. Gued pediu passagem ao mestre. Na maioria dos navios, um bordao de feiticeiro e passaporte e pagamento suficientes. De boa vontade o tomaram a bordo e, antes de decorrida uma hora, o navio partia. A disposicao de espirito de Gued melhorou com o primeiro erguer dos quarenta longos remos e o rufo do tambor que marcava o ritmo era para ele como um hino de coragem.

Contudo, nao sabia o que faria em Havnor ou para onde fugiria a partir dai. A direcao para norte era tao boa como qualquer outra. Ele proprio era um homem do Norte. Talvez encontrasse em Havnor um navio que o levasse a Gont, onde poderia voltar a ver Oguion. Ou encontrar algum que o levasse para bem longe, ate as Estremas, tao longe que a sombra o perdesse e desistisse da cacada. Para la de ideias tao vagas como estas, nao tinha em mente qualquer plano e nao via rumo algum que devesse seguir com certeza. So sabia que tinha de fugir…

Aqueles quarenta remos levaram o navio por sobre cento e cinquenta milhas do mar de Inverno antes do por do Sol do segundo dia a partir de Serd. Chegaram assim a um porto em Orrimi, na costa leste do grande territorio de Hosk, dado que estas galeras que fazem comercio no Mar Interior se mantem junto as costas e fundeiam durante a noite ao abrigo sempre que podem. Como ainda houvesse luz do dia, Gued foi a terra e vagueou pelas ruas ingremes da vila, sem destino e imerso nos seus pensamentos.

Orrimi e uma velha vila, pesadamente construida em pedra e tijolo, defendida por muralhas contra os senhores sem lei do interior da Ilha de Hosk. Os armazens das docas sao como fortes e as casas dos mercadores tem torres e sao fortificadas. Contudo, para Gued, ao caminhar sem destino ao longo das ruas, aquelas poderosas mansoes mais lhe pareciam veus, atras dos quais se estendesse uma escuridao vazia. E as pessoas que passavam junto dele, entregues aos seus afazeres, nao lhe pareciam seres humanos reais, mas apenas sombras de homens, sem voz. Com o por do Sol, regressou aos embarcadouros e, mesmo ai, na forte luz avermelhada e sob o vento do final do dia, mar e terra lhe pareceram igualmente esbatidos e silenciosos.

— Para onde vais, Senhor Feiticeiro?

Foi assim que alguem o saudou subitamente, atras dele. Voltando-se, viu um homem vestido de cinzento que trazia um bordao de uma madeira pesada, mas que nao era um bordao de feiticeiro. O rosto do estranho estava oculto da luz vermelha pelo capuz, porem Gued sentiu os olhos invisiveis cruzarem-se com os seus. Recuando em sobressalto, ergueu o seu proprio bordao de teixo entre ambos.

Suavemente, o homem perguntou:

— O que temes?

— O que segue atras de mim.

— Seja. Mas eu nao sou a tua sombra.

Gued permaneceu silencioso. Sabia que, na verdade, aquele homem, fosse ele quem fosse, nao era o que temia. Nao era sombra, nem fantasma, nem criatura gebbeth. No meio do seco silencio e da sombra que viera sobre o mundo, mantinha inclusive uma voz e alguma solidez. E entao deitou o capuz para tras. Tinha uma cabeca estranha, calva e com costuras, um rosto vincado de rugas. Embora a idade nao tivesse transparecido na sua voz, tinha o aspecto de um velho.

— Nao te conheco — disse o homem de cinzento — e, no entanto, julgo que talvez nao nos tenhamos encontrado por acaso. Ouvi em tempos a historia de um jovem, um homem com cicatrizes no rosto, que pela treva veio a alcancar grande dominio, mesmo a realeza. Nao sei se sera essa a tua historia. Mas dir-te-ei o seguinte: se precisas de uma espada com que combater sombras, vai ate a Corte da Terrenon. Um bordao de teixo nao chega para o que necessitas.

Enquanto escutava, a esperanca e a desconfianca lutavam no espirito de Gued. Um homem versado em feiticaria em breve aprende que, na verdade, muito poucos dos seus encontros sao por acaso, seja isso para bem ou para mal.

— Em que ilha fica a Corte da Terrenon?

— Em Osskil.

Ao ouvir aquele nome, e por um artificio da memoria, Gued viu por um momento um corvo negro sobre erva verde, um corvo que o olhava de lado com um olho que era como uma pedra polida e que falava. Mas as palavras estavam esquecidas.

— Ha algo de tenebroso no nome dessa terra — disse Gued, sempre olhando o homem de cinzento, tentando ajuizar que tipo de homem seria. Tinha uns certos modos que deixavam suspeitar que fosse bruxo, talvez ate feiticeiro. E, no entanto, apesar de falar atrevidamente com Gued, havia nele um estranho aspecto de pessoa vencida, quase o aspecto de um doente, ou de um prisioneiro, ou de um escravo.

— Tu es de Roke — foi a resposta dele. — Os feiticeiros de Roke dao um mau nome a escolas de feiticaria que nao sejam a sua.

— Que homem es tu?

— Um viajante. Um agente de comercio de Osskil. Estou aqui em negocios — disse o homem de cinzento. E como Gued nada mais lhe perguntasse, desejou calmamente boa noite ao jovem e foi-se, subindo a estreita rua com degraus, acima do cais.

Gued voltou-se, inseguro se devia atender aquele sinal ou nao, e olhou para norte. A luz vermelha estava a desaparecer rapidamente das colinas e do mar encapelado pelo vento. Chegava o lusco-fusco cinzento e, nos seus calcanhares, a noite.

Levado por subita decisao, Gued apressou os passos ao longo do cais ate junto de um pescador que dobrava as redes para dentro do seu bote e perguntou-lhe:

— Sabes de algum barco neste porto que esteja de partida para norte, para Semel ou para as Enlades?

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