alvenaria ca em baixo. As suas escamas eram de um negro-acinzentado e captavam a luz do Sol como pedras quebradas. Era esguio como um galgo e grande como um monte. Gued fitava-o, com receosa admiracao. Nao havia cancao nem historia que pudesse preparar o espirito para uma visao assim. Esteve quase a fitar o dragao nos olhos e a ficar agarrado, pois nao se pode olhar para os olhos de um dragao. Afastou a vista do olhar verde e gorduroso que o observava e ergueu a sua frente o bordao que mais parecia agora uma esquirola de madeira, uma fragil erva.
— Oito filhos eu tinha, pequeno feiticeiro — pronunciou a retumbante e seca voz do dragao — e cinco morreram, e um vai morrer. Basta. Nao conquistaras o meu tesouro, matando-os.
— Nao e o teu tesouro que pretendo.
Um fumo amarelo saiu silvando das narinas do dragao. Era o seu riso.
— Nao gostarias de desembarcar e vir ve-lo, pequeno feiticeiro? Olha que e digno de admiracao.
— Nao, dragao.
A afinidade dos dragoes e com o vento e o fogo, e nao e de boa vontade que combatem sobre o mar. Essa fora a vantagem de Gued ate ai e manteve-a. So que a tira de mar entre ele e as grandes garras cinzentas nao parecia ja uma grande vantagem.
Era dificil nao fitar aqueles olhos verdes e atentos.
— Es um feiticeiro muito jovem — prosseguiu o dragao. — Nao sabia que os homens podiam atingir tao cedo o seu poder.
Falava, tal como Gued, usando a Antiga Fala, pois essa e ainda a lingua dos dragoes. Embora o uso da Antiga Fala obrigue os homens a falar a verdade, tal nao se passa com os dragoes. E a sua propria lingua e nela podem mentir, torcendo as palavras verdadeiras para fins falsos, apanhando o ouvinte incauto num labirinto de palavras-espelhos, em que cada uma reflete a verdade e nenhuma conduz a parte alguma. Contra isto fora Gued muitas vezes alertado e, quando o dragao falava, escutava-o com ouvido desconfiado, todas as suas duvidas alerta. Mas as palavras pareciam simples e claras:
— Foi para me pedires auxilio que vieste aqui, pequeno feiticeiro?
— Nao, dragao.
— E, no entanto, eu podia ajudar-te. Em breve iras precisar de auxilio, contra aquilo que te persegue na treva.
Gued ficou emudecido.
— O que e isso que te persegue? Diz-me qual o seu nome.
— Se eu pudesse dizer o seu nome… — e Gued interrompeu-se.
Fumo amarelo ergueu-se em espiral acima da longa cabeca do dragao, saindo das suas narinas que pareciam dois buracos de fogo redondos.
— Se pudesses dizer o seu nome, poderias domina-lo, quem sabe, pequeno feiticeiro. Talvez eu pudesse dizer-te qual o seu nome, quando o vir por perto. E vira por perto se esperares na minha ilha. Ira sempre onde tu fores. Se nao quiseres que se aproxime, teras de fugir, e fugir e continuar a fugir-lhe. E mesmo assim te seguira. Gostarias de saber o seu nome?
Gued permaneceu de novo em silencio. Como sabia o dragao da sombra que ele libertara, nao o podia adivinhar, nem como poderia saber o nome da sombra. O Arquimago dissera que a sombra nao tinha nome. No entanto, os dragoes tem a sua propria sabedoria e sao uma raca mais antiga que o homem. Poucos homens sao capazes de adivinhar o que um dragao sabe, e como o sabe, e esses poucos sao os Senhores de Dragoes. Para Gued, so uma coisa era certa. E era que, embora o dragao pudesse muito bem estar a dizer a verdade, embora ele pudesse realmente informar Gued da natureza e nome da coisa-sombra e assim lhe conferir poder sobre ela — mesmo assim, mesmo que ele falasse verdade, fa-lo-ia exclusivamente para atingir os seus proprios fins.
— E muito raro — disse por fim o jovem — que dragoes pecam para fazer favores aos homens.
— Mas e muito comum — retorquiu o dragao — que os gatos brinquem com os ratos antes de os matarem.
— Mas eu nao vim aqui para brincar, nem para que brinquem comigo. Vim fazer um trato contigo.
Como uma espada pelo agucada que era, mas cinco vezes mais comprida que qualquer espada, a ponta da cauda do dragao ergueu-se em arco, como a de um escorpiao, por sobre o seu dorso couracado, acima da torre. Secamente, disse:
— Nao faco tratos. Tomo o que quero. O que tens tu para me oferecer que eu nao possa tirar de ti quando me aprouver?
— Seguranca. A tua seguranca. Jura que nunca voaras para oriente de Pendor, e eu juro que te deixarei incolume.
Um ranger desagradavel saiu da garganta do dragao, semelhante ao ruido de uma avalanche longinqua, de pedras rolando entre montanhas. Dancaram-lhe chamas ao longo da lingua trifurcada. Ergueu-se ainda mais, agigantando-se por sobre as ruinas.
— Tu? Tu ofereceres-me seguranca? Tu ameacares-me? E com que?
— Com o teu nome, Yevaud.
A voz de Gued tremeu ao pronunciar o nome, mas nao deixou de o fazer alta e claramente. Ao ouvi-lo, o dragao ficou imovel, totalmente imovel. Um minuto passou, depois outro.
E entao Gued, de pe sobre a baloucante casquinha de noz que era o seu barco, sorriu. Apostara aquele empreendimento e a sua propria vida no que calculara a partir de velhas historias que estudara em Roke sobre dragoes. E o que ele calculara fora que aquele Dragao de Pendor era o mesmo que assolara a area ocidental de Osskil nos tempos de Elfarran e Morred, e que fora afugentado de Osskil por um feiticeiro, Elt, versado em nomes. O calculo resultara.
— Estamos em igualdade, Yevaud. Tu tens a tua forca. Eu tenho o teu nome. Estas agora disposto a fazer o trato?
Mas ainda nao houve resposta.
Ha muitos anos ja que o dragao se espojava naquela ilha, onde couracas de ouro e esmeraldas se espalhavam entre po, tijolos e ossos. Vira a sua ninhada de lagartos negros brincar entre as casas em ruinas e ensaiar o voo lancando-se das colinas. Dormira longamente ao sol, sem que voz ou vela o viesse despertar. E fora envelhecendo. Agora era dificil agitar-se, enfrentar aquele jovem feiticeiro, aquele fragil inimigo, a vista de cujo bordao Yevaud, o velho dragao, se retraia.
— Podes escolher nove pedras do meu tesouro — propos finalmente, com a voz silvando e gemendo nas suas longas fauces. — As melhores. A tua escolha. Depois, vai-te!
— Nao quero as tuas pedras, Yevaud.
— Ter-se-a perdido a cobica dos homens? Outrora, no Norte, os homens adoravam as pedras brilhantes… Mas eu sei o que tu queres, feiticeiro. Tambem eu posso oferecer-te seguranca, pois sei o que pode salvar-te. Sei qual e a unica coisa que pode salvar-te. Ha um horror que te persegue. Dir-te-ei o seu nome.
O coracao de Gued alvorocou-se no peito e ele apertou o bordao no punho e quedou-se tao imovel como se quedara o dragao. Por momentos teve de combater uma esperanca subita e inesperada.
Nao fora pela sua propria vida que ele viera fazer aquele trato. Um dominio, e apenas um, era o que ele podia exercer sobre o dragao. Pos de lado a esperanca e fez o que tinha de fazer.
— Nao e isso que peco de ti, Yevaud.
Ao dizer o nome do dragao, foi como se mantivesse aquele enorme ser preso por uma trela delgada e segura, apertando-lha a volta do pescoco. Podia sentir a antiga malicia e experiencia no trato com homens no olhar que o dragao pousava sobre ele, podia ver as garras de aco, cada uma tao longa como o antebraco de um homem, e o couro rijo como pedra, e o fogo fulminante que espreitava na goela do dragao. E, no entanto, a trela ia-se apertando, apertando.
De novo ergueu a voz:
— Yevaud! Jura pelo teu nome que tu e os teus filhos nunca se aproximarao do Arquipelago.
Subitas chamas brotaram, brilhantes e ruidosas, das fauces do dragao e ele disse:
— Pelo meu nome o juro!
O silencio estendeu-se entao sobre a ilha e Yevaud baixou a enorme cabeca.
Quando voltou a ergue-la e olhou, o feiticeiro partira e a vela do barco nao passava de um salpico branco sobre as ondas, a oriente, singrando em direcao as ferteis ilhas, quais pedras preciosas espalhadas pelos mares