mandou o fogo-fatuo a flamejar pelo ar, iluminando cada recesso da pequena casa ate se assegurar de que nao havia sombra alguma. Depois lancou lenha sobre as brasas na cova do lume e ali se sentou a luz da fogueira, ouvindo o vento de Outono dedilhando o colmo do telhado e uivando nas grandes arvores nuas, por cima da casa. E por muito tempo se quedou a pensar. Uma colera antiga despertara no seu coracao. Nao iria suportar aquela espera desamparada, aquele ficar-se ali, encurralado numa ilhota, resmungando inuteis encantamentos de fechar e defender. Mas tambem nao podia simplesmente fugir da ratoeira, pois para isso era necessario faltar a palavra dada aos ilheus e deixa-los, sem defesa, perante a ameaca iminente do dragao. So havia um caminho a seguir.
Na manha seguinte, desceu ate junto dos pescadores, na principal atracacao de Baixo Torning e, encontrando ali o Chefe dos Ilheus, disse-lhe:
— Tenho de abandonar este lugar. Estou em perigo e ponho-vos tambem em perigo. Devo partir. Por isso peco a tua permissao para sair a dar fim a ameaca dos dragoes, em Pendor, para que a minha tarefa para vos fique terminada e eu possa partir livremente. Ou, se falhar, falharia tambem quando eles viessem aqui, o que e preferivel saber agora do que mais tarde.
O Ilheu-Mor olhava-o de boca aberta.
— Senhor Gaviao — disse por fim —, sao nove os dragoes que ha na ilha!
— Segundo se diz, oito ainda sao novos.
— Mas o mais velho…
— Disse-te e repito, tenho de sair daqui. Peco-te permissao para vos livrar primeiro da ameaca dos dragoes, se o conseguir.
— Como queiras, Senhor — retorquiu sombriamente o Ilheu-Mor. E todos os que ali estavam e o ouviram pensaram que aquilo era loucura ou coragem desesperada do seu jovem feiticeiro, e foi com semblantes carregados que o viram partir, nao esperando voltar a receber noticias dele. Alguns deram a entender que ele apenas pretendia navegar de volta ao Mar Interior, passando por Hosk, e deixa-los abandonados a sua sorte. Outros, entre eles Petchvarri, tinham como certo que enlouquecera e ia em busca da morte.
Ao longo de quatro geracoes de homens, todos os navios tinham tracado as suas rotas de modo a manterem-se longe da costa da Ilha de Pendor. Nenhum mago viera alguma vez a travar ali combate com o dragao, pois que a ilha nao ficava em qualquer habitual rota maritima, e os seus senhores tinham sido piratas, escravizadores, fomentadores de guerras e odiados por todos os que habitavam as regioes sudoeste de Terramar. Por tudo isto, ninguem pensara em vingar o Senhor de Pendor, depois de o dragao ter vindo subitamente de oeste, lancando-se sobre ele e os seus homens quando estavam reunidos na torre, banqueteando-se, e os queimara com o fogo da sua boca, e afugentara todos os habitantes da vila, em grande gritaria, para o mar. Sem desagravo, Pendor fora abandonada ao dragao, com todos os seus ossos, torres e joias, estas roubadas a principes, de ha muito mortos, das costas de Paln e Hosk.
Tudo isto o sabia bem Gued, e mais ainda, pois desde que chegara a Baixo Torning que mantinha em mente e ponderava tudo o que alguma vez aprendera sobre dragoes. Enquanto conduzia o seu pequeno barco para oeste — de momento sem remar nem usar da pericia em marinharia que Petchvarri lhe transmitira, mas navegando a vela por feitico, com o vento magico na vela e um encantamento lancada sobre a proa e a quilha para manter o barco na boa direcao — mantinha-se atento para ver a ilha morta a erguer-se na beira do mar. Rapidez era o que pretendia e por isso usara o vento magico, pois temia mais o que deixava atras de si do que o que estava para diante. Porem, a medida que o dia ia passando, a sua impaciencia trocou o temor por uma especie de ferocidade jovial. Pelo menos, este era um perigo que procurava de moto proprio. E quanto mais se avizinhava dele, tanto mais seguro estava de que, pelo menos por aquela vez, naquela hora, talvez a ultima antes da sua morte, era livre. A sombra nao se atrevia a segui-lo para dentro das fauces de um dragao. As ondas corriam emplumadas de branco pelo mar cinzento e cinzentas nuvens deslizavam acima dele, levadas pelo vento norte. Prosseguiu para oeste levado pelo rapido vento magico a soprar na sua vela e chegou a vista dos rochedos de Pendor, das ruas quietas da vila e das torres esventradas, tombando em ruinas.
A entrada do porto, uma baia pouco funda em forma de crescente, deixou que se desfizesse o sortilegio do vento e fez parar o pequeno barco que ficou a balancar nas vagas. E entao convocou o dragao:
— Usurpador de Pendor, vem defender o teu tesouro!
A sua voz nao pode sobrepor-se ao som das ondas rebentando nas praias cor de cinza, mas os dragoes tem ouvidos apurados. Logo um deles se ergueu no ar, saindo de uma das ruinas sem telhado da vila, semelhante a um enorme morcego negro, de asas finas e dorso ericado de picos, e, rondando a tomar o vento norte, veio voando direito a Gued. O coracao do feiticeiro dilatou-se ao ver a criatura que era um mito para o seu povo e riu e bradou:
— Vai dizer ao Mais Velho que aqui venha, o verme do vento!
Porque aquele era um dos dragoes jovens, ali chocados anos atras por um dragao-femea vindo da Estrema Oeste, que fizera a sua postura de grandes ovos coriaceos, como se diz que os dragoes-femeas fazem, nalguma das salas arrombadas e soalheiras da torre e de novo voara para longe, deixando a cargo do Velho Dragao de Pendor olhar pelas crias, quando rastejassem como lagartos peconhentos para fora das cascas.
O jovem dragao nao deu resposta. Nao era de uma especie grande, talvez com o comprimento de uma galera de quarenta remos, e era delgado como um verme, apesar da envergadura das suas negras asas membranosas. Ainda nao estava totalmente desenvolvido, nem de posse da sua voz ou da astucia habitual em dragoes. Veio direito a Gued, de pe no seu pequeno barco baloucante, abrindo as longas mandibulas cheias de dentes ao despencar dos ares como uma flecha. Assim, tudo o que Gued teve de fazer foi sujeitar-lhe as asas e os membros com um esconjuro firme e assim o lancar violentamente para o lado, como uma pedra a cair no mar. E o mar cinzento fechou-se sobre ele.
Da base da torre mais alta, ergueram-se dois dragoes identicos ao primeiro. Tal como o primeiro, lancaram-se ambos a direito sobre Gued, e mesmo assim ele assenhorou-se de ambos, deitou-os abaixo e afogou-os. E ainda nem sequer erguera o seu bordao de feiticeiro.
Pouco tempo depois, vieram outros tres a ataca-lo do lado da ilha. Um era muito maior e o fogo saia, encurvando-se, da sua goela. Dois voaram direitos a ele, com as asas a vibrar, mas o maior aproximou-se por tras, voando em circulos, muito rapido, para queimar Gued e o seu barco com o fogo da sua respiracao. Nao havia esconjuro de sujeitar que abarcasse todos os tres porque dois vinham de norte e um de sul. No instante em que se deu conta disto, Gued teceu um esconjuro de mudanca e, entre uma respiracao e outra, ergueu-se do barco a voar, em forma de dragao.
Abrindo as vastas asas e estendendo as garras para a frente, atacou frontalmente os dois dragoes, fulminando-os com fogo, e logo se virou para o terceiro, que era maior que ele e igualmente armado com fogo. Ao sabor do vento por sobre as ondas cinzentas, ziguezaguearam, morderam, atacaram, mergulharam, ate que o fumo turvou o ar em seu redor, avermelhado pelo clarao das suas bocas flamejantes. Subitamente, Gued voou para cima com o outro a persegui-lo logo abaixo. A meio do voo, o dragao-Gued ergueu as asas, parou e caiu, como cai o falcao sobre a presa, com as garras esticadas para baixo, ferindo e forcando o outro a descer, atacando-o no pescoco e no flanco. As asas negras agitaram-se em vao, o negro sangue do dragao gotejou grosso no mar. E o dragao de Pendor arrancou-se a prisao e, voando baixo e com dificuldade, voltou para a ilha, para se ir ocultar, rastejando, em qualquer poco ou caverna da cidade em ruinas.
Gued retomou de imediato a sua forma e o lugar no barco, pois era perigoso em extremo manter aquela forma de dragao por mais tempo que o determinado pela necessidade. Tinha as maos negras com o escaldante sangue da serpe alada e o fogo chamuscara-o na cabeca, mas isso agora nao importava. Esperou apenas o tempo necessario para recobrar o folego e logo bradou:
— Seis vi eu, cinco morreram, fala-se em nove. Saiam dai, vermes.
Nenhuma criatura se moveu, nenhuma voz se ouviu, em toda a ilha e por longo tempo. Apenas as ondas batiam estrondosamente contra a costa. Entao Gued notou que a torre mais alta estava a mudar lentamente de forma, inchando de um dos lados como se lhe estivesse a crescer um braco. Ele temia a magia de dragao, porque os dragoes velhos sao muito poderosos e versados numa feiticaria que e, ao mesmo tempo, semelhante e diferente da do homem. Mas, decorrido apenas mais um momento, viu que nao se tratava de nenhum truque do dragao e sim dos seus proprios olhos. O que ele julgara ser uma parte da torre era o ombro do Dragao de Pendor que desenroscava agora toda a massa do seu corpo e se erguia lentamente.
Ao ficar totalmente de pe, a sua cabeca escamosa, coroada de picos e com tres linguas, ultrapassava em altura a torre arruinada e as suas patas da frente, armadas de enormes garras, repousavam nos restos de