Pelnish. E se o seu numero e realmente noventa e uma questao que nunca se resolveu, porque se so contarmos as ilhas com nascentes de agua fresca teremos setenta, ao passo que se formos contar cada rochedo isolado teremos uma centena antes de chegar ao fim, e entao mudaria a mare. Os canais sao estreitos entre as ilhotas, pelo que ali as moderadas mares do Mar Interior, comprimidas e confusas, correm alto e caem baixo; assim, quando na mare alta podemos encontrar tres ilhas num sitio, na mare baixa podera haver so uma. No entanto, com todo o perigo representado pela mare, cada crianca que ja sabe andar tambem sabe remar e tem o seu pequeno bote. As donas-de-casa remam atraves do canal para irem beber uma chavena de cha de ervas com a vizinha. Os bufarinheiros apregoam as mercadorias ao compasso das remadas. Ali, todas as estradas sao de agua salgada, interrompidas apenas pelas redes estendidas de casa para casa, destinadas a apanhar os pequenos peixes chamados turbios e cujo oleo constitui a riqueza das Noventa Ilhas. Ha poucas pontes e nenhuma grande cidade. Cada pequena ilha esta densamente povoada por quintas e casas de pescadores, reunindo-se estas em administracoes, cada uma compreendendo entre dez e vinte ilhas. Uma delas era a de Baixo Torning, a mais ocidental, nao dando para o Mar Interior mas para fora, para o oceano vazio, esse solitario canto do Arquipelago onde apenas se ergue Pendor, a ilha assolada por dragoes, e para alem dela as aguas da Estrema ocidental, despovoadas.

Havia uma casa preparada para receber o novo feiticeiro da administracao. Erguia-se sobre uma colina, entre verdes campos de cevada, defendida do vento oeste por um bosque de arvores pendick, agora vermelhas de flores. Da porta via-se outros telhados de colmo e bosques e hortas, e outras ilhas com os seus telhados e campos e colinas, e por entre todas elas os muitos e serpenteantes canais do mar. Era uma casa pobre, sem janelas, um chao de terra batida, mas mesmo assim era melhor que aquela em que Gued nascera. Os Ilheus de Baixo Torning, algo temerosos no seu respeito pelo feiticeiro de Roke, pediram perdao pela humildade da habitacao.

— Nao temos pedra com que construir — disse um.

— Nenhum de nos e rico, se bem que ninguem morra de fome — disse outro.

— Pelo menos e seca — acrescentou um terceiro —, porque eu proprio tratei do telhado, senhor.

Para Gued era tao boa como um palacio. Agradeceu aos chefes da administracao com toda a franqueza, de modo que todos os dezoito voltaram para casa, cada um no seu barco a remos e em direcao a sua ilha, para irem dizer aos pescadores e as donas-de-casa que o novo feiticeiro era um tipo novo, estranho e carrancudo, que era de poucas mas de boas falas, e nao era orgulhoso.

Havia talvez poucos motivos de orgulho neste primeiro magisterio de Gued. Os feiticeiros treinados em Roke iam geralmente para cidades ou castelos, ao servico de grandes senhores que os tinham em alta estima. No curso normal das coisas, aqueles pescadores de Baixo Torning nao teriam tido entre eles mais que uma bruxa ou um simples magico, para encantar as redes de pesca, cantar sobre os barcos novos e curar animais e homens dos seus padecimentos. Mas nos ultimos anos o velho Dragao de Pendor tivera crias. Segundo se dizia, nove dragoes tinham agora o seu covil nas torres em ruinas dos Senhores do Mar de Pendor, arrastando os ventres cobertos de escamas para cima e para baixo nas escadarias de marmore e atraves das portas arrombadas. Na falta de alimento naquela ilha morta, iriam levantar voo dali em qualquer dos proximos anos, quando ja estivessem grandes e a fome os acicatasse. Ja se avistara um bando de quatro por sobre as costas do Sudoeste de Hosk, sem pousarem mas espiando do alto redis, celeiros e aldeias. A fome de um dragao e lenta a despertar mas dificil de saciar. Por isso os Ilheus de Baixo Torning tinham enviado mensageiros a Roke pedindo um feiticeiro que protegesse a sua gente da ameaca que se perfilava no horizonte ocidental e o Arquimago considerara que o seu medo tinha razao de ser.

— E lugar onde nao ha conforto — dissera o Arquimago a Gued no dia em que lhe conferira o titulo de feiticeiro —, nem fama, nem riqueza, talvez nem sequer risco. Mesmo assim, iras?

— Irei — respondera Gued. E nao fora so por obediencia. Desde a noite no Cabeco de Roke, o seu anseio afastara-se tanto das ideias de fama e ostentacao como em tempos delas se aproximara. Agora duvidava constantemente da sua forca e temia ver o seu poder posto a prova. Contudo, a referencia a dragoes despertava- lhe fortemente a curiosidade. Em Gont, ha muitas centenas de anos que nao existem dragoes. E dragao algum iria alguma vez voar suficientemente perto de Roke para ver a ilha ou lhe sentir o cheiro e os encantamentos que a protegiam. E por isso eram ali apenas assunto de contos e cancoes, coisas de que se falava mas nao se viam. Gued aprendera tudo o que lhe fora possivel sobre dragoes na Escola, mas uma coisa e ler acerca de dragoes e outra muito diferente encontra-los face a face. A oportunidade brilhava agora a sua frente e por isso foi de todo o coracao que respondeu «Irei».

O Arquimago Guencher acenara com a cabeca, mas a sua expressao era sombria.

— Diz-me — inquiriu por fim —, temes deixar Roke? Ou estas ansioso por partir?

— Uma coisa e a outra, meu Senhor.

Uma vez mais, Guencher acenou com a cabeca.

— Nao sei se faco bem em te afastar da seguranca em que estas aqui — disse muito lentamente. — Nao consigo descortinar o teu caminho. Esta todo envolto em trevas. E ha um poder no Norte, algo que desejaria destruir-te, mas o que e e onde esta, se no teu passado ou no teu caminho em frente, nao o posso dizer. E tudo sombra. Quando os homens de Baixo Torning apareceram, pensei de imediato em ti, por me parecer um lugar seguro e remoto, onde poderias ter tempo para recobrar a tua forca. Mas nao sei se ha algum lugar seguro para ti nem para onde te leva o teu caminho. Nao queria enviar-te para a escuridao…

A principio, a casa sob as arvores em flor pareceu a Gued um lugar animador. Ali viveu, observando frequentemente o ceu ocidental, mantendo o seu ouvido de feiticeiro atento ao som de asas cobertas de escamas. Mas nao surgiu dragao algum. Gued pescava no seu pontao e cuidava da pequena horta. Passava dias inteiros a ponderar uma pagina ou uma linha ou uma palavra nos Livros do Saber que trouxera de Roke, sentado a sombra das arvores pendick, no Verao, enquanto o otaque dormia ao seu lado ou partia a cacar ratos nas florestas de erva e margaridas. E servia o povo de Baixo Torning como curandeiro e fazedor de tempo sempre que lhe pediam. Nao lhe passava sequer pela cabeca que um feiticeiro pudesse envergonhar-se de praticar artes tao simples, porque ele fora um feiticeiro-crianca entre gente mais pobre que esta. Porem, pouco recorriam a ele, olhando-o com um respeito temeroso, em parte por ele ser um feiticeiro vindo da Ilha dos Sages, em parte pelo seu silencio e o seu rosto marcado por cicatrizes. Porque havia nele, embora jovem como era, algo que punha as pessoas pouco a vontade. Mesmo assim, fez um amigo, um construtor de barcos que habitava na ilha mais proxima para leste. O seu nome era Petchvarri. Tinham-se encontrado pela primeira vez no pontao deste ultimo, onde Gued parara a ve-lo colocar o mastro de uma pequena embarcacao. O homem olhara para o feiticeiro com um sorriso e dissera:

— Ora aqui esta quase acabado o trabalho de um mes inteiro. Imagino que o poderias ter feito num minuto e apenas com uma palavra, nao e, Senhor?

— Talvez pudesse — retorquiu Gued —, mas provavelmente afundar-se-ia no minuto seguinte, a nao ser que eu mantivesse os sortilegios constantemente. Mas, se quiseres…

E interrompeu-se.

— E entao, Senhor?

— Entao temos ai uma pequena e bela obra. Nada lhe falta. Mas, se quiseres, posso lancar-lhe um feitico de uniao para ajuda-lo a manter-se em boas condicoes, ou um de encontrar para o ajudar a voltar a casa, vindo do mar.

Gued falara de modo hesitante, nao querendo ofender o artifice, mas o rosto de Petchvarri iluminou- se.

— O barco e para o meu filho, Senhor, e se pudesses lancar esses encantamentos sobre ele seria uma grande bondade e uma acao amiga.

E logo ali subiu ao pontao para apertar a mao de Gued e lhe agradecer.

Depois disso, aconteceu frequentemente trabalharem em conjunto, com Gued a entretecer os seus encantamentos com o trabalho de Petchvarri nos barcos que este construia ou consertava e, em troca, aprendendo com o artifice como um barco era construido e tambem como era governado sem auxilio da magia, porque o ensino da simples arte de navegar fora um pouco deixado de lado em Roke. Gued e Petchvarri, com o filho pequeno deste, Aioeth, saiam muitas vezes pelos canais e lagoas, navegando a vela ou a remos neste ou naquele barco, ate que Gued se tornou um muito razoavel marinheiro e a amizade entre ele e Petchvarri se tornou ponto assente.

Ia ja o Outono quase no fim, quando o filho do construtor de barcos adoeceu. A mae mandou chamar a

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