por varias horas, Gued julgou avistar, la longe nos montes, a noroeste, para onde tendia o rumo que seguiam, como que um pequeno rasgao contra o ceu, semelhante a um dente, branco. Mas a luz daquele dia curto ia esmorecendo e, quando a estrada voltou a subir mais adiante, nao conseguiu discernir melhor aquela coisa, torre, arvore ou o que quer que fosse.

— Vamos para ali? — perguntou, apontando.

Skiorh nao deu resposta e seguiu caminho, embiocado na sua capa grosseira, o capuz osskiliano, bicudo e forrado a pele, na cabeca. Gued foi palmilhando atras dele. Tinham andado muito e ele estava sonolento com as passadas uniformes da marcha e o longo cansaco dos duros dias e noites passados a bordo. Comecou a parecer- lhe que vinha a andar desde sempre e continuaria para sempre a andar, junto daquele ser silencioso, atraves de uma terra silenciosa e cada vez mais escura. Cuidado e vontade tinham-se entorpecido nele. Caminhava como num sonho longo, longo, que nao o levava a lado algum.

O otaque agitou-se no bolso, e um ligeiro e vago temor acordou e agitou-se tambem no seu espirito. Obrigou-se a falar:

— A escuridao esta a chegar, e a neve tambem. Quanto falta ainda, Skiorh?

Apos uma pausa, sem se voltar, o outro respondeu:

— Nao muito.

Mas a sua voz nao soou como voz de homem, antes como a de uma fera, rouca e sem labios, que tentasse falar.

Gued estacou. Em toda a volta, na luz tardia e fosca, estendiam-se os montes vazios. Uma neve esparsa revoluteava um pouco, caindo.

— Skiorh! — disse. E o outro fez alto e voltou-se. Sob o capuz em bico nao havia rosto algum.

E antes que Gued pudesse pronunciar um esconjuro ou invocar o seu poder, o gebbeth falou, dizendo na sua voz rouca:

— Gued!

E entao o jovem viu-se impedido de conseguir qualquer transformacao, ficando fechado no seu verdadeiro ser e obrigado a enfrentar assim indefeso o gebbeth. Nem podia invocar qualquer auxilio nesta terra estrangeira, onde nada nem ninguem era dele conhecido ou responderia ao seu chamado. Estava so, sem nada entre ele e o seu inimigo a nao ser o bordao de teixo na mao direita.

A coisa que devorara a mente de Skiorh e lhe possuira a carne fez o corpo dar um passo em direcao a Gued e os bracos acompanharam o movimento, erguendo-se tateantes para ele. Urna raiva toda feita de horror apoderou-se de Gued e ele ergueu e logo fez descer silvando o bordao sobre o capuz que ocultava o rosto de sombra. Capuz e capa desabaram quase ate ao chao sob aquela pancada feroz, como se dentro deles nada mais houvesse que vento, mas logo, drapejando e ondulando, se voltaram a erguer. O corpo de um gebbeth foi despojado de verdadeira substancia e e algo de semelhante a uma concha ou a um vapor sob a forma de um homem, uma carne irreal servindo de roupagem a sombra que e real. Assim, aos sacoes, ondulando, como se soprada por algum vento, a sombra alargou os bracos e dirigiu-se a Gued, tentando agarra-lo como ja o agarrara no Cabeco de Roke. E se o fizesse, lancaria fora a casca de Skiorh e entraria em Gued, devorando-o a partir de dentro, apoderando-se dele, como era seu unico desejo. Gued atingiu de novo o gebbeth com o seu pesado e fumegante bordao, afastando-o a pancadas, mas aquilo voltou de novo e de novo o golpeou e depois deixou cair o bordao que se inflamara e ardera, queimando-lhe a mao. Recuou e logo, num repente, voltou costas e fugiu.

Corria e o gebbeth seguia-o, a um passo apenas de distancia, incapaz de o ultrapassar mas tambem sem se deixar ficar para tras. Gued nunca se voltou para olhar. Corria, corria, atraves daquela vasta terra crepuscular, onde nao havia sitio para se ocultar. Uma vez, o gebbeth chamou-o na sua voz rouca e sibilada, chamou-o pelo nome-verdadeiro uma vez mais, mas, embora se tivesse assim apoderado do seu poder de feiticeiro, nao tinha dominio sobre a forca do seu corpo e nao conseguiu faze-lo parar. Gued continuou a correr.

A noite espessou-se em redor de cacador e presa, a neve caia finalmente sobre o caminho que Gued ja nao conseguia ver. Sentia nos olhos o acelerado do coracao, a respiracao queimava-lhe a garganta e ele nao conseguia agora correr verdadeiramente, seguia apenas em frente tropecando e cambaleando. Mas nem mesmo assim o perseguidor parecia capaz de o apanhar, vindo sempre mesmo atras dele. Comecara a falar-lhe, segredando e murmurando, chamando-o, e Gued sentia que em toda a sua vida aquele segredar estivera nos seus ouvidos, logo abaixo do limiar da audicao, mas agora conseguia ouvi-lo e tinha de ceder, de desistir, de parar. E, contudo prosseguiu ainda naquele esforco, lutando por subir uma ladeira longa e indistinta. Pensou que houvesse uma luz algures na sua frente, julgou ouvir uma voz adiante e acima dele chamando-o: «Vem! Vem!»

Tentou responder mas faltou-lhe a voz. A palida luz tornou-se mais nitida, brilhando atraves de uma entrada mesmo a sua frente. Nao conseguia ver as paredes, mas viu a porta e, ao ve-la, estacou. Logo o gebbeth lhe tentou agarrar o manto, as maos tateando desajeitadamente os flancos, tentando assenhorear-se dele por tras. Com as ultimas forcas que lhe restavam, Gued lancou-se atraves daquela porta que brilhava levemente. Tentou voltar-se para a fechar atras de si, travando o gebbeth, mas as suas pernas ja nao conseguiam mante-lo. Cambaleou, procurando um apoio. Luzes dancaram e relampejaram em frente dos seus olhos. Sentiu que caia e sentiu que algo o segurava ao cair. Mas a sua mente, totalmente exausta, deslizou para dentro da escuridao.

7. O VOO DO FALCAO

Gued acordou e, por muito tempo, teve apenas a percepcao de que era agradavel acordar, pois nao esperara voltar a faze-lo, e era muito agradavel ver a luz do dia, a vasta e simples luz do dia a toda a sua volta. Sentiu-se como se estivesse a flutuar nessa luz ou fosse a deriva num barco sobre aguas tranquilas. Por fim, concluiu que estava numa cama, mas nada tinha a ver com qualquer outra em que alguma vez tivesse dormido. Estava feita sobre uma estrutura que se apoiava em quatro pernas altas e trabalhadas e os colchoes eram grandes sacos de seda cheios de penas, o que explicava a sensacao que tivera de flutuar, e por cima de tudo um dossel carmesim destinado a impedir as correntes de ar. Em dois lados, a cortina estava levantada e presa, permitindo que Gued visse um quarto com paredes e chao de pedra. Atraves de tres janelas altas, avistou a charneca, castanha e nua, com um trecho de neve aqui e alem, envolta na tenue luz do Inverno. O quarto devia situar-se bem acima do solo, pois avistava-se uma grande extensao do terreno em volta.

Quando Gued se sentou, uma coberta de cetim tambem recheada de penas deslizou para o lado e ele viu que envergava uma tunica de seda e passamanaria de prata, como um senhor. Numa cadeira ao lado da cama estavam preparados para ele botas de pelica e um manto debruado a pele de pellaui. Deixou-se ficar sentado por uns momentos, calmo e entorpecido, como alguem presa de um sortilegio, e depois levantou-se, estendendo a mao para pegar no bordao. Mas nao tinha bordao.

A sua mao direita, embora tivesse sido tratada e ligada, estava queimada na palma e nos dedos. E nesse momento sentiu a dor que havia nela e o cansaco dorido de todo o corpo.

Uma vez mais, quedou-se sem fazer qualquer movimento. Depois sibilou, nao muito alto, nao muito esperancoso:

— Hoeg… Hoeg…

Porque tambem aquela criaturinha feroz e leal, a pequena alma silenciosa que ja uma vez o arrancara ao dominio da morte, desaparecera. Estaria ainda com ele na noite passada, quando fugira? E teria sido na noite anterior ou muitas noites atras? Nao sabia. Tudo na sua mente era vago e obscuro, o gebbeth, o bordao em chamas, a fuga, o sussurro, a porta. De nada conseguia lembrar-se claramente. E, mesmo agora, nada era claro. Sussurrou uma vez mais o nome do seu animalzinho, mas sem esperanca de obter resposta, e as lagrimas assomaram-lhe aos olhos.

Nalgum lado, longinquamente, soou uma campainha. E uma segunda produziu um tilintar muito doce, mesmo fora do quarto. Uma porta abriu-se atras dele, do outro lado do quarto, e entrou uma mulher.

— Bem-vindo sejas, Gaviao.

Era jovem e alta, vestida de branco e prata, com uma rede de prata a encimar-lhe a cabeleira que caia a

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