direito como uma cascata de agua negra.
Rapidamente, Gued inclinou a cabeca.
— Julgo que nao te lembras de mim.
— Lembrar-me de ti, Senhora?
Nunca vira uma mulher bonita vestida de modo a fazer justica a sua beleza senao uma unica vez na sua vida. Aquela Senhora de O que viera com o seu Senhor ao Festival do Regresso-do-Sol em Roke. Vira-a como a chama de uma vela, brilhante e esguia, mas esta mulher era como a brancura da lua nova.
— Logo vi que nao — prosseguiu ela, sorrindo. — Mas, por muito esquecido que sejas, es aqui acolhido como um velho amigo.
— Que lugar e este? — perguntou Gued, sentindo-se rigido ainda e lento de fala. Verificou que era dificil falar com ela, dificil desviar dela os olhos. As roupas principescas que envergava eram-lhe estranhas, as pedras sobre as quais se erguia nao eram familiares e estrangeiro era o proprio ar que respirava. Nao era ele proprio, nao era o ser que fora.
— Esta fortaleza tem o nome de Corte da Terrenon. O meu Senhor, a quem chamam Benderesk, e soberano desta terra desde o limite das Charnecas de Keksemt ate ao Norte, as Montanhas de Os, e guardiao da pedra preciosa chamada Terrenon. Quanto a mim, aqui em Osskil chamam-me Serret,
Gued olhou para baixo, para a sua mao queimada, e acabou por dizer:
— Nao sei o que sou. Tive poder, em tempos. Perdi-o, penso.
— Nao! Tu nao o perdeste, ou entao foi para o recuperares dez vezes mais forte. Aqui estas a salvo do que te perseguia, meu amigo. Ha muralhas poderosas ao redor desta torre e nem todas sao de pedra. Aqui poderas repousar e recuperar as tuas forcas. E aqui poderas encontrar uma forca diferente e um bordao que nao se faca em cinzas na tua mao. Afinal, um mau caminho pode conduzir a bom fim. E agora vem comigo, deixa-me mostrar-te o resto do nosso dominio.
E falava com tal docura que Gued mal lhe ouvia as palavras, tocado apenas pela promessa que havia na sua voz. Seguiu-a.
O quarto ficava realmente muito alto na torre que se erguia como um dente afiado acima do topo da colina. Descendo escadas de marmore em espiral, Gued seguiu Serret, atraves de ricas salas e saloes, passando por janelas que abriam para norte, oeste, sul e leste, por sobre as baixas colinas castanhas que se sucediam, sem casas, sem arvores, sem mudanca, claras sob o desbotado ceu de Inverno. So muito longe para norte se erguiam pequenos picos brancos a destacarem-se nitidamente contra o azul, enquanto para sul se adivinhava o brilho do mar.
Servos abriram portas e desviaram-se para o lado perante Gued e a dama, todos eles palidos e frios osskilianos. Tambem a pele dela era clara, mas, ao contrario deles, falava bem a lingua Hardic e mesmo, pareceu a Gued, com o sotaque de Gont. Mais tarde, nesse mesmo dia, ela levou-o perante o marido, Benderesk, Senhor da Terrenon. Com tres vezes a sua idade, branco como um osso e como um osso magro, de olhar turvo, o Senhor Benderesk acolheu Gued com uma fria e severa cortesia, convidando-o a permanecer como hospede durante o tempo que lhe aprouvesse. Depois pouco mais teve para dizer, nada perguntando a Gued das suas viagens ou do inimigo que o perseguira ate ali. E tambem a Dama Serret nada lhe perguntara de tais coisas.
Se isto era estranho, era apenas parte da estranheza daquele sitio e da sua propria presenca nele. A mente de Gued nunca pareceu aclarar-se. Nao conseguia ver as coisas distintamente. Viera ate esta torre-fortaleza por acaso e, no entanto, todo o acaso era designio. Ou viera por designio e, contudo, todo o designio apenas se devera ao acaso. Dirigira-se para norte. Um estranho em Orrimi dissera-lhe que procurasse ajuda ali. Um navio osskiliano estivera a espera dele. Skiorh guiara-o. Quanto de tudo isto seria obra da sombra que o perseguia? Ou nao seria nada? Teriam sido ambos, ele e o seu perseguidor, atraidos ali por algum poder, ele seguindo esse chamariz e a sombra seguindo-o a ele, apoderando-se de Skiorh como sua arma ao surgir a ocasiao? Devia ser isso, pois certamente a sombra estava, como dissera Serret, impedida de penetrar na Corte da Terrenon. Desde que acordara na torre, nao voltara a sentir sinal ou ameaca da sua abominavel presenca. Mas entao o que o trouxera ali? Porque aquele nao era lugar onde se viesse por acaso. Mesmo na lentidao dos seus pensamentos, comecava a ver isso. Nenhum outro estranho se acercava daquelas portas. A torre erguia-se, isolada e remota, de costas voltadas para o caminho de Neshum, que era a cidade mais proxima. Ninguem vinha ate a fortaleza, ninguem dela saia. Das suas janelas so se avistava a desolacao. E dessas janelas olhava Gued, permanecendo sozinho no seu alto quarto, dia apos dia, lento de ideias, dorido de coracao e frio. Fazia sempre frio na torre, apesar de todos os tapetes e tapecarias e rico vestuario forrado a pele e vastas lareiras de marmore que ali havia. Era um frio que penetrava ate aos ossos, ate a medula, e nao se deixava desalojar. E, no coracao de Gued, tambem uma vergonha fria penetrou e nao se deixava desalojar, a medida que ele ia constantemente pensando no modo como enfrentara o seu inimigo e fora derrotado e fugira. No seu espirito, reuniram-se todos os Mestres de Roke, com Guencher, o Arquimago, franzindo o cenho no meio deles, e juntou-se ainda Nemmerle, e Oguion, e ate a bruxa que lhe ensinara o seu primeiro conjuro. Todos o olhavam e ele sabia que tinha desiludido a confianca que nele depositavam. Argumentava, dizendo: «Se nao fosse eu fugir, a sombra ter-me-ia possuido. Tinha ja toda a forca de Skiorh, parte da minha, e eu nao podia combate-la. Sabia o meu nome. Tive de fugir. Um
E assim, por pura angustia, manteve-se isolado durante muitos dias. Mesmo quando saia do quarto, permanecia silencioso e rigido. A beleza da Dama da Fortaleza confundia-lhe o espirito e nesta estranha Corte, rica, decorosa, ordenada, sentia-se um pastor de cabras, nado e criado como tal.
Deixavam-no sozinho quando queria estar sozinho e, quando nao podia ja suportar os seus pensamentos nem olhar a neve que caia, Serret ia frequentemente ao seu encontro num dos saloes arredondados, com tapecarias nas paredes e iluminados pelo lume da lareira, nas zonas mais baixas da torre, e ali falavam. Nao havia alegria na Dama da Fortaleza — nunca ria, embora sorrisse algumas vezes. No entanto, conseguia por Gued a vontade, quase bastando um sorriso. Com ela, comecou a deixar para tras a sua rigidez, a sua vergonha. Em breve comecaram a encontrar-se diariamente para conversar, longa, calma e ociosamente, um pouco a parte das servas que acompanhavam sempre Serret, junto a lareira ou a janela dos altos quartos da torre.
O velho senhor permanecia quase sempre nos seus proprios aposentos, deles saindo de manha para ir caminhar de um lado para o outro nos patios interiores, cobertos de neve, do castelo, como um velho magico que tivesse passado a noite a tecer esconjuros. Quando se juntava a Gued e a Serret para cear, permanecia silencioso, fitando por vezes a jovem esposa com um olhar duro e avido. Entao Gued sentia pena dela. Era como uma corca branca aprisionada, como uma ave branca de asas presas, como um anel de prata no dedo de um velho. Era uma peca no tesouro de Benderesk. E quando o senhor da fortaleza os deixava, Gued ficava com ela, tentando animar-lhe a solidao como ela animava a dele.
— Que joia e essa que da o nome a tua fortaleza? — perguntou-lhe ele certa vez em que estavam a conversar, por sobre os seus pratos de ouro vazios, das suas tacas de ouro vazias, na sala de jantar, iluminada a velas, grande como uma caverna.
— Nunca ouviste falar dela? E coisa famosa.
— Nao. Sei apenas que os senhores de Osskil tem famosos tesouros.
— Ah, mas esta joia empalidece todas as outras. Diz, gostavas de ve-la?
E Serret sorriu, com uma expressao de zombaria e temeridade, como se estivesse um pouco assustada com o que ia fazer, e conduziu o jovem para fora da sala, atraves dos estreitos corredores da base da torre e escadas subterraneas abaixo, ate a uma porta fechada que ele nunca antes vira. Abriu-a com uma chave de prata, erguendo a vista para Gued com o mesmo sorriso, como se o desafiasse a segui-la. Para la da porta havia uma curta passagem e uma segunda porta, que ela abriu com uma chave de ouro, e para alem dessa ainda uma terceira porta, que ela abriu com uma das Grandes Palavras de desligar. Para la dessa ultima porta, a luz da vela revelou uma pequena sala, semelhante a uma cela de prisao. Chao, paredes, teto, tudo de pedra por trabalhar, sem qualquer peca de mobilia, tudo nu.
— Estas a ve-la? — perguntou Serret.
Enquanto Gued olhava em volta, o seu olhar de feiticeiro isolou uma das pedras que formavam o chao. Era