grosseira, umida e fria como as restantes, apenas mais uma laje pesada e sem forma, e no entanto ele sentiu-lhe o poder como se a pedra lhe tivesse falado em voz alta. A respiracao ficou-lhe presa no peito e, por um momento, foi tomado por uma nausea. Aquela era a pedra fundamental da torre. Aquele era o seu ponto central e era frio, frio de gelo. Nada poderia alguma vez aquecer a pequena sala. Era uma coisa muito, muito antiga. Um espirito velho e terrivel estava aprisionado naquele bloco de pedra. Nao respondeu sim nem nao a Serret, permanecendo imovel. Entao, lancando-lhe um rapido e curioso olhar, ela apontou-lhe a pedra.

— Eis a Terrenon. Admiras-te por mantermos uma joia tao preciosa fechada na nossa mais profunda sala de tesouro?

Mas Gued continuou a nao dar resposta, permanecendo mudo e desconfiado. Ela poderia estar a testa-lo, mas achava que nao devia ter nocao de qual fosse a natureza da pedra, para falar dela com tanta ligeireza. Nao sabia o suficiente sobre ela para a temer.

— Fala-me dos seus poderes — disse ele por fim.

— Foi feita antes que Segoy erguesse as ilhas do mundo do Alto Mar. Foi feita quando foi feito o proprio mundo e durara ate ao fim do mundo. Para ela, o tempo nada e. Se colocares a tua mao sobre ela e lhe fizeres uma pergunta, ela respondera, de acordo com o poder que houver em ti. Tem voz, se a souberes escutar. Falara de coisas que foram, que sao e que hao de ser. Falou da tua vinda, muito antes que chegasses a estas terras. E agora, queres fazer-lhe uma pergunta?

— Nao.

— Ela responde-te.

— Nao existe pergunta que eu queira fazer-lhe.

— Poderia dizer-te — insistiu Serret na sua voz mais doce — como derrotar o teu inimigo.

Gued permaneceu em silencio.

— Temes a pedra? — perguntou ela como se nao pudesse acreditar em tal, mas Gued respondeu:

— Temo.

No frio mortal e no silencio da sala rodeada por parede sobre parede de encantamentos e de pedra, a luz da vela que segurava, Serret, de olhos brilhantes, voltou a fita-lo.

— Gaviao — disse —, tu nao tens medo.

— Mas nao falarei com aquele espirito — retorquiu Gued e, olhando diretamente para ela, falou com grave ousadia: — Senhora, aquele espirito esta selado numa pedra, e a pedra esta fechada com encantamentos de ligar e de cegar e esconjuro de fechar e sob guarda e com uma fortaleza de tripla muralha a sua volta, no meio de uma terra esteril, nao por ser preciosa, mas porque pode trazer grande mal. Nao sei o que dela te terao dito quando aqui chegaste. Mas tu, que es jovem e meiga de coracao, nunca deverias toca-la ou sequer olha-la. Nada de bom te podera trazer.

— Mas ja lhe toquei. Falei-lhe e ouvi-a falar. Nao me faz mal algum.

Voltou costas e sairam dali, voltando a atravessar as portas e as passagens, ate que, chegados a larga escadaria iluminada por archotes, ela apagou a vela. Despediram-se com poucas palavras.

Nessa noite, Gued pouco dormiu. Nao foi a recordacao da sombra que o manteve acordado. Pelo contrario, esse pensamento fora quase eliminado da sua mente pela imagem, a que constantemente regressava, da Pedra sobre a qual aquela torre fora fundada e do rosto de Serret, a um tempo brilhante e ensombrado pela luz da vela, voltado para ele. Uma vez e outra sentiu o seu olhar sobre si, e tentava decidir que expressao se desenhara nele quando se recusara a tocar a pedra, se fora desdem ou dor. Quando finalmente se acomodou para dormir, os lencois de seda da cama estavam frios como gelo e, no escuro da noite, Gued acordava constantemente pensando na Pedra e nos olhos de Serret. No dia seguinte encontrou-a no salao arredondado de marmore cinzento, iluminado agora pelo sol que declinava para ocidente e onde ela passava frequentemente as tardes, jogando ou tecendo com as suas aias. Gued disse-lhe:

— Dama Serret, ofendi-te. Lamento-o.

— Nao — disse ela, meditativamente. E repetiu: — Nao… — Mandou embora as servas que estavam com ela e, quando ficaram sos, voltou-se para Gued.

— Meu hospede, meu amigo — disse —, tens uma visao muito clara, mas talvez nao vejas tudo o que ha a ver. Em Gont e em Roke ensinam-se feiticarias. Mas nao todas as feiticarias. Aqui e Osskil, Terra-do-Corvo. Nao e uma terra Hardic e nela os magos nao dominam, nem tem dela muito conhecimento. Ha coisas que acontecem aqui que escapam aos sabios do Sul, coisas que nao sao nomeadas nas listas do Mestre dos Nomes. Aquilo que nao se conhece, teme-se. Mas tu nao tens nada a temer aqui na Corte da Terrenon. Alguem mais fraco que tu teria, sem duvida. Tu nao. Tu es alguem que nasceu com o poder de controlar aquilo que esta na sala selada. Isso eu sei. E e por isso que aqui estas.

— Nao compreendo.

— Isso e porque o meu senhor Benderesk nao foi inteiramente franco contigo. Mas eu se-lo-ei. Vem sentar-te ao pe de mim.

E Gued sentou-se junto dela, no fundo banco almofadado da janela. A luz do poente entrava a direito pela janela, envolvendo-os num brilho em que nao havia calor. Na charneca, la em baixo, mergulhando ja nas sombras, a neve da noite anterior permanecia intacta, como um palio de um branco sujo, amorta-lhando o mundo. Serret falou suavemente.

— Benderesk e Senhor e Herdeiro da Pedra Terrenon, mas nao pode usa-la, nao consegue forca-la a cumprir totalmente os seus designios. Nem eu o consigo, sozinha ou com ele. Nem ele nem eu temos a mestria ou o poder. Tu tens ambos.

— Como sabes isso?

— Pela propria Pedra! Eu disse-te que ela falou da tua vinda. Ela conhece o seu senhor. Tem esperado a tua chegada. Ainda antes que nascesses ja ela te esperava, aquele que a podia dominar. E aquele que pode obrigar Terrenon a responder ao que ele pergunta, fazer o que ele deseja, tera poder sobre o seu proprio destino, forca para esmagar qualquer inimigo, mortal ou do outro mundo. Tera visao do futuro, saber, riqueza, dominio e feiticaria as suas ordens capazes de se sobrepor ao proprio Arquimago! De tudo isto, tanto ou tao pouco que queiras e teu. Basta pedires. Uma vez mais, Serret ergueu para ele o estranho brilho dos seus olhos e esse olhar trespassou-o de tal modo que ele estremeceu como de frio. E, no entanto, havia um temor no rosto dela, como se ansiasse por auxilio mas fosse demasiado orgulhosa para lho pedir. Gued sentia-se desnorteado. Ao falar, ela pousara a mao na sua. O seu toque era suave, a sua mao parecia estreita e clara na mao dele, escura, forte. Quase numa suplica, disse:

— Serret! Nao tenho tanto poder como cres. Aquele que tive lancei-o fora. Nao posso ajudar-te, nao tenho utilidade alguma para ti. Mas uma coisa sei. Os Velhos Poderes da terra nao sao para uso dos homens. Nunca foram depostos nas nossas maos e, nas nossas maos, so podem trazer ruina. Maus meios, maus fins. Nao fui atraido aqui, mas sim conduzido, e a forca que me conduziu pretende a minha perda. Nao posso ajudar-te.

— Aquele que lanca fora o seu poder recebe por vezes um poder infinitamente superior — retorquiu ela sorrindo, como se os seus temores e escrupulos fossem pueris. — Talvez saiba mais que tu acerca do que aqui te trouxe. Nao houve um homem que se dirigiu a ti nas ruas de Orrimi? Era um mensageiro, um servo de Terrenon. Em tempos, ele proprio foi um feiticeiro, mas lancou fora o bordao para servir um poder maior que o de qualquer mago. E tu vieste a Osskil, mas, na charneca, tentaste defrontar uma sombra com o teu bordao de madeira. Quase nao pudemos salvar-te porque essa coisa que te segue e mais astuciosa do que julgamos e ja extraira muita forca de ti… So a sombra pode defrontar a sombra. So a escuridao pode derrotar a treva. Ouve, Gaviao! Que precisas tu entao para derrotares essa sombra que espera por ti fora destas muralhas?

— Preciso daquilo que nao posso saber. O seu nome.

— A Pedra Terrenon, que sabe de todos os nascimentos e falecimentos e de todos os seres antes e depois da morte, dos que nao nasceram e dos que nao morrem, do mundo da luz e do mundo das trevas, dir-te-a esse nome.

— E o preco a pagar?

— Nao ha preco a pagar. Digo-te que te obedecera, que te servira como um escravo.

Vacilante e angustiado, Gued nao respondeu. Entao ela segurou-lhe a mao entre as suas, perscrutando-lhe o rosto. O Sol mergulhara na nevoa que escurecia o horizonte e tambem o ar se tornara pesado, mas o rosto dela animou-se numa expressao de louvor e triunfo, ao observa-lo e verificar que a vontade do jovem fora abalada dentro dele. Suavemente, sussurrou:

— Seras mais poderoso que todos os homens, um rei entre eles. Reinaras e eu reinarei contigo…

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