aproximava-me de Astarito. Gisela empurrava-me, repetindo:
— Mas por que demonio estas tu a chorar? Como se fosse a primeira vez!
Ouvi Ricardo rir e senti, embora nao os visse, os olhos de Astarito fixos em mim, que me aproximava lentamente, lavada em lagrimas. Depois o seu braco rodeou a minha cintura e a porta do quarto fechou-se nas minhas costas.
Nada queria ver. Parecia-me que ter de sentir o que ia passar-se ja era um martirio suficiente. Por isso, apesar dos esforcos de Astarito, conservei obstinadamente o meu braco pousado sobre os olhos. Suponho que ele teria querido proceder como qualquer amante, isto e, levar-me lentamente, insensivelmente, gradualmente, a satisfazer os seus desejos.
Mas a minha teimosia obrigou-o a ser mais brutal e mais rapido do que ele desejaria. Por isso, depois de me ter feito sentar na beira da cama e tentado inutilmente convencer-me com caricias, empurrou-me para tras e deitou-se por cima de mim. O meu corpo, da cintura aos pes, estava inerte e pesado como chumbo: nunca mulher alguma foi possuida com mais abstinencia e menos colaboracao. Mas, entretanto, as minhas lagrimas secavam. E quando ele se deixou cair, ofegante, sobre o meu peito, tirei o braco da cara e abri os olhos.
Tenho a certeza de que nesse momento eu era tao amada por Astarito quanto uma mulher pode ser amada por um homem, seguramente muito mais do que por Gino. Lembro-me de que ele nao se cansava de me acariciar a testa e o rosto, com gestos convulsivos e apaixonados, tremendo da cabeca aos pes e murmurando- me palavras de amor. Mas enquanto me acariciava eu seguia o fio dos meus pensamentos secretos. Revia o meu quarto com os seus moveis novos, ainda nao completamente pagos, e sentia uma especie de amargo alivio. Agora ja nada me impedia de casar-me e de viver a vida a que aspirava. Mas ao mesmo tempo sentia que a minha alma tinha mudado irremediavelmente: onde antigamente so havia esperanca, ingenuidade e frescura existia agora seguranca e resolucao. Em resumo, sentia-me mais rica de uma forca triste e privada de amor.
Acabei por pronunciar as primeiras palavras desde que tinhamos entrado no quarto.
— Sao horas de sairmos.
E ele respondeu imediatamente em voz baixa:
— Estas zangada comigo?
— Nao.
— Odeias-me?
— Nao.
— Gosto tanto de ti! — murmurou ele.
Voltou a cobrir-me o rosto de beijos furiosos. Passados momentos, disse-lhe:
— Esta bem, mas temos de voltar para a sala.
— Tens razao — concordou ele.
E levantou-se de cima do meu corpo, comecou, pareceu-me, a vestir-se no escuro. Tornei a vestir a minha roupa, levantei-me e acendi o candeeiro da mesinha-de-cabeceira. A sua luz amarelada, o quarto apareceu-me tal como o seu cheiro a fechado e a alfazema mo tinham feito imaginar: um tecto baixo caiado, papel pintado nas paredes e moveis macicos. Num canto havia um lavatorio com tampo de marmore, duas bacias e dois jarros de agua com flores cor-de-rosa e verdes, debaixo de um espelho com moldura dourada. Fui ao lavatorio, deitei um pouco de agua na bacia, molhei uma ponta da toalha e lavei os labios de onde Astarito tinha tirado todo o baton com os seus beijos, depois os olhos, ainda vermelhos de chorar. De um fundo manchado cor de ferrugem o espelho devolvia-me uma imagem dolorosa de mim propria que me aturdiu por momentos a alma entorpecida e cheia de compaixao. Depois voltei a mim, ajeitei o melhor que me foi possivel o cabelo e voltei-me para Astarito. Ele esperava-me ao pe da porta; assim que me viu pronta, abriu o batente, evitando olhar-me e voltando-me as costas. Apaguei a luz e segui-o.
Fomos alegremente recebidos por Gisela e por Ricardo, sempre com o mesmo humor amalucado e indiferente. Como antes, eles nao tinham compreendido a minha dor, nem entendiam a minha serenidade de agora. Gisela gritou:
— Tu es uma boa sonsa! Nao querias, nao querias, mas parece que aceitaste bem depressa e de muito bom grado!… Fizeste bem se isso te deu prazer, mas nao valia a pena teres-te feito tao rogada.
Olhei-a. Parecia-me estranhamente injusto que ela, que me obrigara a ceder a ponto de me segurar os bracos para que Astarito me beijasse mais a seu jeito, censurasse agora a minha complacencia. Ricardo, com o seu bom senso, fez-lhe notar:
— Estas a ser pouco logica, Gisela… Tu, que de comeco insististe tanto, agora quase a censuras por ela o ter feito.
— Pois decerto! — insistiu duramente Gisela. — Se ela nao queria, fez mal… Eu, por exemplo, se nao quisesse, nao me deixaria convencer nem pela forca. Mas ela… ela queria — acrescentou, considerando-me com um ar descontente. — Ela queria e muito! Eu bem a vi no carro antes de chegarmos a Viterbo. E por isso que ela nao precisava de se fazer tao rogada.
Calei-me, quase admirando a perfeicao de uma crueza ao mesmo tempo impiedosa e inconsciente. Astarito aproximou-se de mim e tentou agarrar-me a mao. Repeli-o e fui sentar-me ao fundo da mesa.
— Mas olhem para Astarito! — gritou Ricardo desatando a rir. — Parece que vem de um enterro!
Verdadeiramente, a sua maneira, com uma gravidade lugubre e o seu ar mortificado, Astarito parecia compreender-me melhor do que os outros.
— Voces estao sempre a brincar! — disse ele.
— Talvez quisesses que comecassemos a chorar, nao? — gritou Gisela. — Agora voces vao ter paciencia e esperar por nos como nos esperamos por voces… Cada um por sua vez! Anda, querido, vamos!
— Tenham cuidado, hem! — recomendou Ricardo levantando-se depois dela.
Estava visivelmente embriagado e nem ele sabia bem porque dissera para termos cuidado.
— Vamos! Vamos!
Sairam por sua vez da sala de jantar, deixando-nos sos, a mim e a Astarito. Eu estava sentada a uma ponta da mesa e Astarito na outra. Um raio de sol entrava pela janela, iluminando violentamente os pratos em desordem, os copos ainda meio cheios e os guardanapos sujos — e batia em cheio na cara de Astarito, que conservava a sua expressao triste e sombria.
Satisfizera o seu desejo, mas o olhar que me deitava conservava a mesma intensidade dolorosa dos primeiros momentos do nosso encontro. Apesar do mal que me fizera, senti-me cheia de piedade por ele. Compreendia como ele tinha sido infeliz antes de me possuir, e como, apesar de ter conseguido o seu fim, nao tinha deixado de o ser. Primeiro sofrera porque me desejava; agora sofria porque eu nao retribuia o seu amor. Mas e precisamente na piedade que o amor tem a sua inimiga; se o odiasse, talvez um dia viesse a ama-lo. Mas nao o odiava.
Nutrindo por ele, como ja disse, apenas compaixao, a unica coisa que eu poderia sentir por ele era antipatia, frieza e repulsa.
Ficamos longamente silenciosos na sala cheia de sol, esperando o regresso de Gisela e de Ricardo. Astarito fumava sem descanso, acendendo uns cigarros nos outros. E, atraves das nuvens de fumo de que se rodeava raivosamente, lancava-me os olhares eloquentes de um homem que tem muito que dizer, mas a quem falta a coragem de falar. Eu estava sentada junto da mesa, com as pernas cruzadas, e todos os meus sentidos se condensavam num unico desejo: ir-me embora. Nao sentia fadiga, nem vergonha; mas gostaria de estar so para poder reflectir a minha vontade no que me tinha acontecido. Absorvido por este grande desejo de partir, o meu espirito vazio divagava continuamente e observava futilidades: a perola que Astarito usava na gravata, o desenho do tapete, uma pequena nodoa de molho de tomate na minha blusa, uma mosca que passeava tranquilamente na borda de um copo; irritava-me comigo propria por nao ser capaz de pensar em coisas mais serias. Mas esta futilidade veio em meu auxilio quando Astarito, vencendo a sua timidez, me perguntou, a custo:
— Que estas a pensar?
Reflecti durante um momento, e depois respondi, com tranquilidade:
— Parti uma unha e nao sei como foi.
Isto era verdade. Mas o seu rosto tomou uma expressao de incredula amargura e renunciou definitivamente a conversar comigo.
Pouco depois, felizmente, Gisela e Ricardo sairam do quarto, um pouco ofegantes, mas tao alegres e despreocupados como antes. Ficaram admirados do nosso silencio e da nossa gravidade, mas fazia-se tarde e o amor tinha tido neles um efeito oposto ao que tivera sobre Astarito: tinha-os tranquilizado e acalmado. Gisela