voltava ate a mostrar-se afectuosa para comigo, pondo por completo de parte a excitacao e a crueldade de que dera provas antes e durante a chantagem de Astarito. Pensei que essa chantagem tinha sido para ela uma especie de novo tempero sensual para a insipidez da sua ligacao com Ricardo. Na escada passou o braco em volta da minha cintura e murmurou:

— Porque estas com essa cara? Se estas preocupada por causa do Gino, podes ficar descansada. Nem eu nem o Ricardo falaremos nisto a alguem.

— Estou fatigada — menti.

O meu temperamento impede-me de guardar rancor seja a quem for; bastava aquele gesto de amizade de Gisela para dissipar por completo o meu ressentimento.

— Eu tambem me sinto cansada — disse ela. — Deve ser do vento que apanhei na cara.

Dai a momentos, parada a porta do restaurante, enquanto os dois homens caminhavam na direccao do carro, acrescentou:

— Nao ficaste zangada comigo pelo que se passou?

— Que ideia! — respondi. — Que culpa tiveste disso? Assim, depois de ter tirado todas as satisfacoes que a sua intriga podia proporcionar-lhe, queria ainda ter a certeza de que nao lhe guardava rancor. Tive a impressao de ter lido com clareza no seu espirito, e foi precisamente porque nao queria que ela compreendesse isso, o que decerto a humilharia, que tentei por todos os meios ao meu alcance dissipar os seus temores e mostrar-me afectuosa. Dei-lhe um beijo e disse-lhe:

— Porque havia de me zangar agora contigo? Tu sempre pensaste que devia deixar o Gino e juntar-me com o Astarito.

— Isso e verdade! — afirmou ela com enfase. — E continuo a pensa-lo!? Mas tu, pelo contrario… Tenho medo de que nunca me perdoes.

Mostrava-se ansiosa, e eu, por um curioso contagio, estava ainda mais ansiosa do que ela, porque temia que adivinhasse os meus verdadeiros sentimentos.

— Isso so prova que nao me conheces bem — respondi com simplicidade. — Bem sei que e so por amizade para comigo que queres que eu deixe o Gino, porque estar com ele e contra os meus interesses. E e muito possivel que tenhas razao! — terminei, mentindo novamente.

Tranquilizada, agarrou-me por um braco e disse-me, num tom de serena confidencia:

— Queria que me compreendesses… Astarito ou outro qualquer, tanto faz, contanto que nao seja o Gino. Se soubesses a pena que me faz ver uma rapariga bonita como tu prejudicar-se dessa maneira… Pergunta ao Ricardo: passo o dia a falar-lhe de ti…

Exprimia-se, como era seu habito, sem meias palavras: e eu tinha o cuidado de aprovar tudo o que ela dizia, quer concordasse quer nao. Chegados ao carro, ocupamos os mesmos lugares da vinda e partimos.

Durante a viagem de regresso conservamo-nos os quatro em silencio. A expressao de Astarito ao olhar para mim exprimia mais um sentimento de mortificacao do que de desejo; mas agora os seus olhares nao me incomodavam, nem eu sentia, como a vinda, a necessidade de lhe falar e de ser amavel com ele.

Absorvia com prazer o vento que me batia na cara e entretinha-me a verificar, por meio dos marcos quilometricos, a progressiva diminuicao da distancia que nos separava de Roma. A certa altura senti a mao de Astarito tocar na minha e percebi que tentava obrigar-me a pegar em qualquer coisa como um bocado de papel. Admirada, pensei que, nao ousando falar-me, recorrera ao expediente de escrever para comunicar comigo. Mas, baixando os olhos, vi que se tratava de uma nota de banco dobrada em quatro.

Ele olhava fixamente para mim, ao mesmo tempo que tentava fazer com que os meus dedos se fechassem sobre a nota. Por momentos apeteceu-me atirar-lhe com ela a cara, mas ao mesmo tempo compreendi que isso nao passaria de um gesto puramente exterior, ditado mais por um preconceito do que por um profundo impulso da alma. O sentimento que nesse momento tomou conta de mim causou-me extraordinario espanto: depois disso, nas numerosas vezes que recebi dinheiro de homens, nunca mais o tive tao claro e tao intenso; era um sentimento de cumplicidade e de acordo sensual, que nenhuma das suas caricias, no quarto do restaurante, tinha podido inspirar-me. Este sentimento de inevitavel sujeicao revelou-me de repente um aspecto do meu caracter ate ai completamente desconhecido para mim. Eu sabia, com absoluta certeza, que devia recusar esse dinheiro, mas ao mesmo tempo sentia que o desejava aceitar. E isto nao tanto por avidez como pelo raro e novo prazer que o facto dava a minha alma.

Apesar de firmemente resolvida a aceitar a nota, fingi recusa-la, num gesto de puro instinto. Astarito insistiu, sem deixar de me fitar nos olhos. Entao passei a nota da mao esquerda para a direita. Sentia-me tomada por uma estranha excitacao que me fazia corar e me dificultava a respiracao.

Se nesse momento Astarito tivesse podido adivinhar o que se passava em mim, talvez tivesse pensado que o amava. Ora nada era menos verdadeiro; era somente o dinheiro, o modo como me tinha sido dado e o motivo dessa dadiva que actuavam sobre o meu espirito. Senti Astarito pegar-me na mao e leva-la aos labios. Deixei-o beija-la e depois retirei-a. Nao voltamos a olhar um para o outro ate a nossa chegada a Roma.

Logo que chegamos a cidade separamo-nos rapidamente uns dos outros, como se cada um de nos tivesse a consciencia de ter cometido um crime e quisesse esconder-se. A verdade e que nesse dia todos nos tinhamos cometido qualquer coisa que podia considerar-se um crime: Ricardo, por estupidez, Gisela, por inveja, Astarito, por luxuria, e eu, por inexperiencia.

Ricardo desejou-me boas-noites. Astarito, grave e comovido, nao teve coragem senao para me apertar silenciosamente a mao.

Tinham-me levado a casa, e, apesar da minha fadiga e dos meus remorsos, lembro-me de que nao me foi possivel evitar um sentimento de vaidosa satisfacao ao descer deste belo carro diante da porta, perante os olhares da familia do ferroviario que ocupava a casa do lado e que nos espreitava por uma janela.

Corri para o meu quarto e a primeira coisa que fiz foi olhar para o dinheiro. Descobri que nao era apenas uma, mas sim tres notas de mil, e durante momentos, sentada na borda da minha cama, senti-me feliz. Este dinheiro, alem de chegar para pagar o que eu ainda devia dos moveis, permitia-me comprar outras coisas de que precisava. Como nunca tinha tido em meu poder uma tal importancia, nao me fartava de olhar para o dinheiro.

A minha pobreza fazia com que a sua existencia fosse nao so agradavel mas inacreditavel. Tive de olhar longamente para as notas, como ja sucedera com os moveis, para conseguir acreditar que me pertenciam.

O meu longo e profundo sono dessa noite pareceu-me ter desvanecido a recordacao da minha aventura de Viterbo. No dia seguinte, acordei tranquila, decidida a prosseguir com a mesma perseveranca nas minhas aspiracoes de possuir uma vida e uma familia normais. Gisela, que vi nessa mesma manha, quer fosse por remorsos quer, como era mais provavel, por discricao, bem compreensivel, nao me fez a menor alusao ao nosso passeio e eu fiquei-lhe reconhecida por isso. A ideia de tornar a encontrar-me com Gino angustiava-me e enchia-me de ansiedade.

5

Embora estivesse convencida da minha total inocencia, pensava que seria necessario mentir-lhe, o que receava, e nao estava certa de o poder fazer, porque seria a primeira vez, visto que eu ate agora tinha sido inteiramente sincera para ele. verdade que lhe escondera os meus encontros com Gisela, mas esta dissimulacao tinha um motivo tao inocente que nunca a tinha considerado como uma mentira; era apenas um expediente, com o qual condenava a sua injusta antipatia por Gisela.

A minha angustia era tal quando o encontrei nesse dia que por pouco nao rompi a chorar e nao lhe contei tudo, pedindo-lhe que me perdoasse. Este passeio a Viterbo pesava-me na consciencia e sentia um violento desejo de aliviar a minha alma confessando-lho. Se Gino fosse diferente e se eu nao soubesse que era tao ciumento, tenho a certeza de que lho teria dito; depois de o fazer, parecia-me, nos amar-nos-iamos mais ainda que anteriormente, e eu sentir-me-ia protegida e ligada a ele por um laco mais forte que o nosso proprio amor. Era de manha, estavamos no carro. como de costume, parados na nossa avenida dos arrabaldes. Ele notou o meu embaraco e perguntou-me:

— Que tens?

“Vou contar-lhe tudo mesmo com o risco de ele me por fora do carro e de eu ter de voltar para Roma a

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