pratos e saiu. Vi-a de costas, de pe, em frente do lava-louca, passando os pratos por agua e pondo-os um a um sobre o marmore, para que secassem. Com a cabeca baixa e os ombros ligeiramente curvados, inspirou-me uma violenta piedade.
Impetuosamente, deitei-lhe os bracos a roda do pescoco e desculpei-me :
— Perdoa ter-me excedido nas coisas que te disse. Nao as pensei… Mas quando comecas a falar de Gino fazes-me perder a cabeca.
— Entao! Entao! Deixa-me! — dizia fingindo esforcar-se por se desembaracar de mim.
— E preciso que compreendas — acrescentei com paixao. — Se Gino nao casa comigo… mato-me ou “vou fazer a vida”!
Gisela acolheu a noticia do adiamento do meu casamento pouco mais ou menos como minha mae. Estavamos no seu quarto mobilado: eu, toda vestida, sentada na borda da cama, ela, em camisa, sentada diante do toucador, a pentear-se. Deixou-me falar ate ao fim, sem fazer comentarios, depois disse-me, triunfante e calma:
— Veras que eu tinha razao!
— Porque?
— Ele nao quer casar contigo, nem casara… Por agora nao e na Pascoa, e no Dia de Todos-os-Santos. Do Dia de Todos-os-Santos passara para o Natal… Um belo dia, acabaras tu propria por compreender, e seras tu a deixa-lo.
Estas palavras faziam-me pena e tornavam-me furiosa. Mas, num certo sentido, eu ja me tinha vingado na minha mae. E depois, se eu tivesse dito o que pensava, teria que cortar relacoes com Gisela, e eu nao o queria fazer, porque apesar de tudo era a minha unica amiga. Ter-lhe-ia respondido que ela nao queria que eu me casasse porque sabia que Ricardo nunca casaria com ela. Esta era a verdade, mas uma verdade muito dura de ouvir, e nao me parecia justo ferir Gisela unicamente porque, logo que ela me falava de Gino, se deixava levar — talvez com sentido de defesa — por um vil sentimento de inveja e ciume. Limitei-me pois a retorquir-lhe :
— Queres que nunca mais falemos disto? A ti, no fundo, que te importa que eu me case ou nao? E a mim nao me da prazer voltar ao assunto.
Gisela levantou-se bruscamente do toucador e veio sentar-se na cama, ao meu lado:
— Que me importa a mim, dizes tu? — protestou com vivacidade.
Depois, passando-me o braco em volta da cintura:
— A mim, pelo contrario, faz-me raiva que te pretendam prejudicar!
— Mas isso nao e verdade! — disse eu em voz baixa.
— Queria ver-te feliz — prosseguiu.
Calou-se um momento, depois perguntou, como que por acaso:
— A proposito… Astarito atormenta-me constantemente para te tornar a ver… Diz que nao pode viver sem ti… Esta realmente preso… Queres marcar-lhe um encontro?
— Nao me fales de Astarito! — respondi-lhe.
— Reconheceu que se portou mal contigo, naquele dia, em Viterbo — continuou — mas no fundo ama-te e esta pronto e reparar a sua falta de correccao.
— A unica maneira que ele tem de a reparar e nunca mais me aparecer!
— Vamos! Vamos! Alem disso, e um homem serio e que te ama muito… Ele quer absolutamente ver-te, falar-te… Porque nao se encontram voces num cafe, por exemplo, na minha presenca?
— Nao! — disse eu com decisao. — Nao o quero tornar a ver.
— Vais arrepender-te.
— Vai tu com ele… com o Astarito!
— Eu? Ia ja, minha filha! E um homem generoso, que nao olha ao dinheiro… Mas e a ti que ele quer… realmente uma ideia fixa.
— Esta bem! Mas eu nada quero dele.
Insistiu ainda muito a favor de Astarito, mas nao me deixei convencer. No cumulo do meu desejo desesperado de me casar e de ter familia, estava firmemente decidida a nao me deixar seduzir, nem pela razao, nem pelo dinheiro. Tinha esquecido ate o fremito de prazer que Astarito me tinha provocado quando me introduzira a forca aquele dinheiro na mao quando regressavamos de Viterbo. Como aconteceu frequentemente, era justamente porque receava que Gisela e minha mae tivessem razao e que, por um motivo ou por outro, o meu casamento nao se realizasse, que eu me agarrava a ideia desse casamento com uma esperanca ainda mais forte e encarnicada.
6
Enquanto esperava, tinha pago todas as prestacoes dos meus moveis e pusera-me a trabalhar mais que nunca para ganhar mais dinheiro para pagar o meu enxoval. De manha posava no atelier e a tarde fechava-me no grande quarto com minha mae para trabalhar ate a noite. Ela cosia a maquina junto da janela, e eu, sentada a mesa, ao pe dela, cosia a mao. Minha mae tinha-me ensinado a trabalhar em roupa interior, no que eu desde o principio me mostrara muito jeitosa e rapida. Havia sempre uma quantidade de casas para fazer e uma letra a bordar em cada camisa; eu fazia as letras particularmente bem, duras e tao em relevo que pareciam sair do tecido. A roupa interior para homem era a nossa especialidade, mas as vezes acontecia ter de confeccionar qualquer camisa ou combinacao ou cuecas de mulher, sempre coisas vulgares, nao so porque minha mae nao seria capaz de fazer coisas delicadas, mas tambem porque nao conhecia senhoras que lhe fizessem encomendas. Quando cosia, o meu espirito perdia-se em divagacoes sobre Gino, o casamento, o meu passeio a Viterbo, minha mae — a minha vida, em suma —, e o tempo passava depressa. O que pensava minha mae nunca o soube, mas era bem certo que o seu cerebro estava ocupado, porque, enquanto trabalhava a maquina, tinha de tempo a tempo uma expressao furiosa, e se eu lhe falava nessa altura respondia-me mal. Para a noite, quando comecava a escurecer, eu limpava o vestido de linhas e, pondo o meu fato mais bonito, ia ter com Gisela ou Gino, quando estava livre. Hoje pergunto a mim propria se seria feliz nesse tempo. Num certo sentido era, porque desejava ardentemente qualquer coisa que considerava proxima e possivel. Aprendi depois que a verdadeira infelicidade vem quando, ja nao ha esperanca; torna-se entao inutil passar bem ou mal e de nada se precisa.
Mais de uma vez, no decurso deste periodo, apercebi-me de que Astarito me seguia na rua. Ia para o atelier de manha muito cedo. Habitualmente Astarito, imovel, num vao de escada, no outro lado da rua, esperava que eu saisse. Nunca atravessava e enquanto eu me encaminhava rapidamente para a praca. junto das casas, ele limitava-se a seguir-me do outro lado, mais devagar, junto das muralhas. Julgo que me observava e isso bastava- lhe: era bem a imagem de um homem perdidamente apaixonado. Quando eu chegava a praca, ele ia postar-se na paragem do electrico fronteira aquela em que eu estava.
Continuava a observar-me, mas se eu deitava uma olhadela para o seu lado isso bastava para que disfarcasse e olhasse para a frente, fingindo interessar-se pela chegada do meu electrico.
Nenhuma mulher teria ficado indiferente perante um amor como aquele; embora firmemente decidida a nao lhe tornar a falar, experimentava por vezes uma especie de compaixao lisonjeada. Depois Gino chegava no carro, ou as vezes no electrico. E quando eu subia, fosse para o automovel, fosse para o electrico, Astarito ficava no seu refugio a ver afastar-me.
Uma dessas tardes, quando vinha jantar, entrei na sala grande e encontrei Astarito, de pe, o chapeu na mao, apoiado a mesa e conversando com minha mae. Quando o vi em minha casa, a ideia de tudo o que ele poderia ter dito a minha mae para a persuadir a intervir a seu favor, esqueci toda a compaixao e fui tomada de raiva.
— Que faz o senhor aqui? — perguntei.
Olhou-me e vi na sua cara a mesma expressao convulsa e tremula que tivera no carro quando iamos a caminho de Viterbo e me dissera que eu lhe agradava. Mas desta vez ele nem conseguia falar.
— Este senhor diz que te conheceu e que queria cumprimentar-te — comecou minha mae em ar confidencial.
Pelo seu tom compreendi que Astarito lhe falara exactamente no sentido que eu pensava e que talvez ate mesmo lhe tivesse dado dinheiro.