— Tu — declarei a minha mae — vais fazer o favor de te retirares!
A minha voz, quase selvagem, assustou-a: saiu, sem dizer palavra, para o lado da cozinha.
— Que faz o senhor aqui? — disse de novo a Astarito. Va-se embora!
Olhou-me, pareceu mover os labios, mas nada disse. Tinha os olhos revirados sobre as palpebras, vendo- se quase o branco; cheguei a pensar que fosse desmaiar.
— Va-se embora! — repeti, batendo com o pe no chao. Ou entao chamo gente… Chamo um dos meus amigos que mora ca em baixo.
Muitas vezes depois perguntei a mim mesmo porque nao fizera Astarito chantagem pela segunda vez: porque nao me teria ele ameacado, se eu nao cedesse, de contar a Gino o que se tinha passado em Viterbo. Esta chantagem seria doravante muito mais bem sucedida, pois que me tinha de facto possuido, e havia testemunhas que nao me permitiriam negar. Conclui que da primeira vez me tinha apenas desejado, mas que da segunda era realmente impelido pelo amor. O amor quer ser retribuido, e se Astarito me amava devia sentir quanto era insuficiente para ele possuir-me como naquele dia em Viterbo, muda, inerte, como morta. Por outro lado, daquela vez eu estava bem decidida a declarar a verdade; depois de tudo, se Gino me amava, devia compreender e perdoar-me. A minha atitude resoluta convenceu certamente Astarito da inutilidade de segunda chantagem.
A minha ameaca de chamar gente nada respondeu, mas pegou no chapeu e dirigiu-se para a porta. Quando chegou perto, baixou a cabeca e pareceu recolher-se um momento, para falar. Levantou os olhos para mim remexendo os labios, mas toda a coragem pareceu abandona-lo; olhou-me fixamente e ficou mudo.
Este segundo olhar pareceu-me muito longo. Acabou por esbocar com a cabeca um cumprimento e saiu fechando a porta.
Fui depois, furiosa, a cozinha e perguntei a minha mae:
— Que disseste a esse homem?
— Eu? Nada! — respondeu ela, assustada. — perguntou-me a que genero de trabalho nos entregavamos e disse-me que queria mandar fazer umas camisas.
— Se vais a casa dele, mato-te — gritei-lhe.
Olhou-me com olhar apavorado e respondeu:
— Nao e preciso la ir! Pode muito bem mandar fazer as suas camisas a outra pessoa!
— Nao te falou de mim?
— Perguntou-me quando te casavas.
— E tu, que lhe respondeste?
— Que te casavas em Outubro.
— Nao te deu dinheiro?
— Nao. Porque? — perguntou fingindo admiracao. — Devia dar-mo?
Pelo tom da sua voz adquiri a conviccao de que Astarito lhe dera dinheiro. Cai sobre ela e segurei-lhe violentamente o braco.
— Diz a verdade! Ele deu-te dinheiro! — gritei-lhe.
— Nao. Nao me deu.
Ela conservava a mao no bolso do avental. Apertei-lhe o pulso com uma violencia terrivel e vi saltar do bolso ao mesmo tempo que a mao uma nota de banco dobrada em duas. Assim que a deixei, ela curvou-se para a apanhar com uma tal avidez, uma tal cobica, que a minha furia cessou. Lembrei-me da emocao e da felicidade que me invadira a alma quando recebera as notas de Astarito em Viterbo. Senti que nao tinha o direito de condenar minha mae por ela experimentar os mesmos sentimentos que eu e ceder as mesmas tentacoes. Naquela altura teria preferido nada ter perguntado, nem ter visto aquela nota.
Limitei-me a observar com voz normal:
— Afinal, sempre to tinha dado!
E sem esperar mais explicacoes sai da cozinha. Ao jantar, algumas suas alusoes fizeram-me compreender que desejava tornar a falar de Astarito e do dinheiro. Mas eu desviei a conversa e ela nao insistiu.
No dia seguinte, Gisela veio sem Ricardo a pastelaria onde habitualmente nos encontravamos. Ainda nao se tinha sentado e ja me dizia sem mais preambulos:
— Hoje tenho de falar-te de uma coisa muito importante.
Uma especie de pressentimento obrigou-me a olha-la exangue.
— Se e uma ma noticia — supliquei-lhe com voz branda — peco-te que nao ma des.
— Nao e boa, nem e ma — respondeu vivamente. — E uma noticia… eis tudo. Ja te disse que Astarito…
— Nao quero ouvir falar mais de Astarito.
— Mas ouve… nao sejas crianca. Pois, como te disse, o Astarito e um homem importante… um graudo da policia e da politica.
Senti-me um pouco reconfortada. Nunca me ocupara de politica.
Declarei sem esforco:
— Mesmo que esse Astarito fosse ministro, para mim era a mesma coisa!
— Uff! Como tu es… Ouve em vez de me interromperes! — declarou Gisela. — Astarito disse-me que era absolutamente necessario que fosses ter com ele ao ministerio… precisa de falar-te… mas nao de amor — acrescentou rapidamente. — Precisa de falar-te de uma coisa muito importante… De uma coisa que te diz respeito.
— Que me diz respeito?
— Sim… e para teu bem… pelo menos foi o que ele me disse.
Porque teria eu decidido naquele momento aceitar o convite de Astarito, apesar de todas as minha resolucoes contrarias? Nem eu mesma sei. Respondi, mais morta que viva:
— Esta bem. Irei.
Gisela ficou um pouco desconcertada com a minha passividade.
Foi entao que se apercebeu da minha palidez e do meu ar assustado:
— Que tens? — disse-me. — Porque e da policia? Mas nada tem contra ti! Nenhuma intencao tem de te prender.
Levantei-me, embora me sentisse vacilante.
— Esta bem — repeti. — Irei; qual e o ministerio?
— O Ministerio do Interior. Mesmo em frente do Supercinema. Mas ouve…
— A que horas?
— Por toda a manha… Mas ouve…
— Ate logo.
Nessa noite dormi muito pouco. Fora a sua paixao, nao atingia o que Astarito me podia querer, mas um pressentimento que me parecia infalivel dizia-me que nada podia ser de bom. O lugar onde me tinha chamado fez-me supor que o assunto devia ter alguma ligacao com a policia. Por outro lado, eu sabia, como sabem todos os pobres, que logo que a policia se mete nalguma coisa nunca e por bem. Depois de examinar minuciosamente a minha conduta, acabei por concluir que Astarito queria exercer sobre mim outra chantagem utilizando qualquer informacao que obtivera sobre a vida de Gino. Eu nao conhecia a vida de Gino; era possivel que ele se tivesse comprometido politicamente.
Nunca me ocupara de politica, mas nao era parva a ponto de ignorar que havia muita gente que nao suportava o regime fascista e que homens da profissao de Astarito eram precisamente encarregados de dar caca a esses inimigos do governo. A minha imaginacao pintava de cores negras o dilema diante do qual Astarito me iria colocar: ou cedia de novo ou prendia Gino. A minha angustia baseava-se no facto de eu nao querer de modo algum ceder a Astarito, mas tao-pouco permitir que metessem Gino na prisao. Quando fazia estas reflexoes nao experimentava qualquer compaixao por Astarito; odiava-o, simplesmente. Parecia-me um homem desprezivel e baixo, indigno de viver, que era preciso punir impiedosamente! Entre outras solucoes, a ideia de matar Astarito vinha-me com facilidade ao espirito. Mas, mais do que uma solucao, era uma divagacao morbida da insonia; e de facto, como estas ideias loucas que nunca se traduzem em decisoes objectivas e firmes, acompanhou-me ate ao romper do dia. Via-me a por na minha mala a faca bem afiada e pontiaguda com que minha mae descascava as batatas; procurar Astarito; ouvia-o dizer-me o que eu imaginara e com toda a forca do meu braco forte cravava- lhe a minha faca no pescoco, entre a orelha e o seu alto colarinho de goma. Imaginava-me a sair da sala, fingindo a maior calma e correr a refugiar-me em casa de Gisela, ou de qualquer outra pessoa amiga. Mas, mesmo