As ideias da minha mae sobre religiao eram as mesmas que sobre a familia e o casamento; fora piedosa e praticante e tudo lhe tinha corrido mal; por isso ja nao acreditava. Quando uma vez lhe disse que a nossa recompensa estava no outro mundo, ela enfureceu-se e declarou-me que a recompensa a queria ja e neste mundo e que se nao a tinha era porque “tudo isso nao passava de mentiras”! Contudo, tendo comecado por ser piedosa, ela tinha-me dado, como ja disse, uma educacao religiosa. So no decorrer dos ultimos anos e que mudara de ideias.
No dia seguinte de manha, quando entrei para o carro de Gino ele disse-me que os patroes tinham ido para fora por alguns dias e nos podiamos encontrar-nos na moradia. O meu primeiro movimento foi de alegria, porque — julgo ja o ter dito — amar agradava-me e gostava de fazer amor com Gino. Mas logo a seguir lembrei-me da promessa feita ao meu confessor e declarei:
— Nao, nao posso.
— Porque?
— Porque nao e possivel!
— Esta bem! — disse com um suspiro de condescendencia. — Entao sera amanha…
— Nao… amanha tambem nao… nunca mais!
— Ah! Nunca mais! — repetia ele afectando assombro. — Nunca! Entao penso que ao menos me iras dar uma explicacao…
Tinha uma expressao desconfiada e ciumenta.
— Gino — disse-lhe muito depressa… — Amo-te… muito… Nunca te amei tanto como neste momento… Mas e justamente por te amar… que acho melhor que ate ao dia do nosso casamento nada haja entre nos, e nada… quero dizer… que nao tenhamos relacoes.
— Ah! Agora esta tudo explicado! — declarou maldosamente. — Tens medo que eu ja nao queira casar contigo, hem?
— Nao, estou certa de que casaras. Se eu tivesse essa desconfianca nao fazia todos estes preparativos… Nao teria gasto o dinheiro que a minha mae levou toda a sua vida a por de lado.
— Oh! Como tu poes nos pincaros esse dinheiro da tua mae! — disse-me.
Depois, tornando-se tao desagradavel que nem o reconhecia:
— Entao, porque?
— Fui-me confessar e o meu confessor proibiu-me de ter relacoes contigo ate que estejamos casados.
Ele fez um gesto de desapontamento e soltou uma exclamacao de teve em mim o efeito de uma praga.
— Mas com que direito e que esse padre vem meter o nariz nas nossas coisas?
Preferi nao lhe responder. Ele insistiu:
— Entao, porque nao respondes?
— Nada mais tenho para dizer.
Sem duvida que eu lhe devia ter parecido inflexivel, porque de repente, mudando de ideias, declarou:
— Esta bem, esta! Entao queres que te leve outra vez para a cidade?
— Como quiseres.
Devo dizer que foi esta a unica vez que ele foi pouco gentil e desagradavel para mim. No dia seguinte parecia resignado e mostrou-se como sempre tinha sido: afectuoso, cortes e amavel.
Continuamos a ver-nos todos os dias, como de costume; somente nao nos possuiamos e limitavamo-nos a conversar. De tempo a tempo, dava-lhe um beijo, coisa que ele tinha resolvido nunca mais me pedir. Parecia-me que beija-lo nao era pecado, porque, no fim de contas, eramos noivos e casariamos em breve.
Quando me recordo desses dias imagino que se Gino se resignou tao depressa a esse papel de noivo respeitador foi com a esperanca de que as nossas relacoes arrefecessem gradualmente e lhe fosse possivel levar as coisas a um rompimento definitivo. Depois de longos e extenuantes dias de noivado, acontece a muitas raparigas encontrarem-se livres sem outra perda que a da sua juventude evaporada. Com esta ordem do meu confessor, ofereci-lhe sem o saber o pretexto que ele procurava para relaxar as nossas relacoes. Como ele tinha um caracter egoista e fraco, e como o prazer que lhe davam as nossas intimidades era mais forte do que a vontade de me abandonar, por ele nunca teria tido coragem para o fazer. Mas a intervencao do confessor permitiu-lhe adoptar uma solucao hipocrita e aparentemente desinteressada.
Ao fim de algum tempo, comecou a encontrar-se comigo menos frequentemente; nao todos os dias, mas dia sim dia nao. Percebi que o trajecto dos nossos passeios de automovel encurtava gradualmente e que ele cada vez dava menos atencao as minhas conversas sobre o casamento. Mas, mesmo dando-me conta, embora obscuramente, de todas estas mudancas de atitude, de nada suspeitava, nao so porque estas mudancas se iam processando quase insensivelmente, mas tambem porque ele continuava a portar-se comigo da forma habitual: afectuoso e gentil. Um dia, por fim, tomou um ar contrito e anunciou-me que, por razoes de familia, a data do nosso casamento tinha de ser adiada.
— Isso contraria-te muito? — acrescentou, ao verificar que eu nao comentara a novidade e me limitava a olhar em frente, com um ar amargo e sonhador.
— Nao, nao! — disse contendo-me. — Nao tem importancia… paciencia… assim terei tempo de acabar o meu enxoval.
— E absolutamente falso! Contraria-te e muito! Ele tinha curiosidade em saber ate que ponto o atraso do casamento me desgostava.
— Ja te disse que nao.
— Entao se isso nao te contraria, quer dizer que nao me amas sinceramente e que no fundo talvez ate nao te contrariasse se nao nos casassemos?
— Nao digas isso! — proferi com pavor. — Para mim seria uma coisa terrivel! Nem quero pensar!
Nesse mesmo momento nao compreendi a expressao que o seu rosto tomou. Com efeito, ele quis ver ate que ponto eu ainda estava interessada nele e percebeu com grande desapontamento que o meu sentimento por ele era ainda muito forte.
Se o adiamento do meu casamento nao levantou suspeitas no meu espirito confirmou a impressao de minha mae e de Gisela. Minha mae nao fez comentarios imediatos; isso acontecia-lhe as vezes, e esta atitude era estranha, atendendo ao seu caracter impulsivo e violento. Mas uma noite, depois de me servir o jantar, como habitualmente, de pe, em silencio, eu fiz ja nao sei bem que alusao ao meu casamento. Entao ela declarou:
— Tu sabes como chamavam no meu tempo as raparigas, como tu, que estao sempre a espera de se casar e nunca o conseguem?
Empalideci e o meu coracao deixou de bater.
— Como? — perguntei-lhe.
— A rapariga da despensa! — disse calmamente minha mae. — Ele guarda-te na despensa como um resto de carne assada… Em determinada altura, a forca de estar guardada na despensa, a carne estraga-se. Entao, deita-se fora!
Tive um acesso de raiva e gritei:
— Nao e verdade! Apesar de tudo, e a primeira vez que nos adiamos… e apenas por alguns meses… A verdade e que tu detestas o Gino por ele nao ter dinheiro e ser chauffeur.
— Eu nao detesto ninguem.
— Sim, tu detesta-o… e tambem te arrependeste de teres dado o teu dinheiro para o nosso quarto. Mas nao tenhas medo…
— Minha filha, o amor torna-te idiota!
— Nao tenhas medo — disse eu. — Todas as coisas que faltam ele as pagara… e seras reembolsada das que compramos com o teu dinheiro. Olha!
E, levada pela minha exaltacao, abri a mala e mostrei as notas que Astarito me tinha dado.
— E dinheiro dele! — continuei.
Estava tao doida por ele que ao dizer estas mentiras quase tinha a impressao de que era verdade.
— Foi ele quem me deu estas notas, e ainda tem mais! O seu olhar caiu sobre o dinheiro; o seu rosto tomou uma expressao tao arrependida e vexada que me encheu de remorsos. Havia ja muito tempo que nao a tratava tao mal e ao mesmo tempo apercebia-me de que acabara de dizer uma mentira e que no fim de contas este dinheiro nao tinha sido o Gino quem mo havia dado. Sem dizer uma palavra, levantou a mesa, levou os