Ao som da sua voz, a furia abandonou-a. Sentiu medo.

— Vais deixa-los para tras de ti, Tenar. Agora, es livre — disse Gued, pondo-se de pe com subito vigor. Espreguicou-se e voltou a apertar o cinto a volta do manto, depois do que continuou: — Da-me uma ajuda com o barco. Esta em cima de troncos para poder rolar. Isso mesmo, empurra… Outra vez. Pronto, pronto, ja chega. Agora prepara-te para saltar la para dentro quando eu disser «salta». Este nao e o melhor dos lugares para lancar um barco ao mar. Outra vez, agora. Isso! Salta la para dentro!

E, saltando atras dela, segurou-a quando a rapariga perdeu o equilibrio, fe-la sentar no fundo do barco, firmou as pernas bem abertas e, lancando mao dos remos, impeliu o barco para o largo e por sobre as rochas, aproveitando o refluxo de uma onda, e depois ate passar a ponta do cabo, rodeada do rugido e da espuma das vagas, e finalmente para o mar aberto.

Assim que se viram suficientemente longe das aguas baixas, recolheu os remos e levantou o mastro. O barco parecia muito pequeno a Tenar, agora que estava dentro dele e com todo o oceano de fora.

Ele ergueu a vela. Todos os aprestos tinham um ar de coisas muito e arduamente usadas, embora a vela, de um vermelho baco, estivesse muito bem remendada e o barco tao limpo e arrumado quanto era possivel. Eram como o dono. Tinham ido longe e nao tinham sido tratados com delicadeza.

— Agora — disse ele —, agora estamos longe, agora estamos livres, partimos de vez, Tenar. Nao sentes isso?

E ela sentia-o realmente. Uma escura mao deixara de ter sobre ela um dominio sobre o seu coracao que durara toda a vida. Mas nao sentia alegria, como sentira nas montanhas. Baixou a cabeca sobre os bracos e chorou, e as suas faces estavam salgadas e molhadas. Chorava pelo desperdicio dos seus anos passados na servidao de um mal inutil. Chorava de dor porque estava livre.

O que comecara a aprender era o peso da liberdade. A liberdade e uma carga extrema, um fardo grande e estranho para que o espirito o aceite. Nao e facil. Nao e um dom oferecido, mas uma escolha feita, e a escolha pode ser ardua. A estrada vai subindo em direcao a luz. Mas o caminhante, sob a sua carga, pode nunca atingir o fim.

Gued deixou-a chorar e nao lhe dirigiu quaisquer palavras de conforto. Nem quando ela parou de chorar e se ficou a olhar para tras, na direcao da terra azul de Atuan, nem entao falou. O seu rosto era impassivel e atento, como se estivesse so. Tomava conta da vela e do leme, rapido e silencioso, olhando sempre em frente.

A certa altura, durante a tarde, Gued apontou para a direita do Sol, em cuja direcao seguiam entao.

— Alem e Karego-At — indicou.

E Tenar, seguindo o seu gesto, viu o vulto distante de montes como nuvens, a grande ilha do Rei-Deus. Atuan ja ficara fora de vista, para tras deles. O coracao da rapariga estava pesado. O sol batia-lhe nos olhos como um martelo de ouro.

A ceia foi pao seco e peixe fumado, que coube pessimamente a Tenar, e agua do barril de bordo que Gued enchera num ribeiro que desaguava no Cabo da Nuvem, na noite anterior. Rapida e fria, a noite de Inverno estendeu-se sobre o mar. Muito longe, para norte, viram por pouco tempo o minusculo brilho de luzes e do fogo amarelado nas aldeias distantes na costa de Karego-At. Essas luzes desvaneceram-se numa nevoa que se ergueu do oceano e ficaram sos, na noite sem estrelas, sobre as aguas profundas.

A rapariga enroscara-se a popa. Gued deitou-se a proa, com o barril da agua a servir de almofada. O barco avancava firmemente, com a ondulacao baixa batendo-lhe levemente o costado, embora o vento nao passasse de uma leve brisa de sul. Ali, longe das costas rochosas, tambem o mar era silencioso. Apenas, ao tocar o barco, sussurrava um pouco.

— Se o vento sopra de sul — disse Tenar, sussurrando porque o mar sussurrava tambem —, o barco nao navega para norte?

— Sim, a nao ser que se va em ziguezague. Mas eu pus o vento magico na vela, para o Ocidente. Amanha de manha ja devemos estar fora das aguas karguianas. Entao deixa-lo-ei navegar com o vento do mundo.

— E ele guia-se sozinho?

— Sim — replicou Gued, gravemente —, desde que se lhe de as instrucoes necessarias. Nao precisa de muitas. Ja andou no alto mar, para la da mais longinqua ilha da Estrema Leste. E ja foi a Selidor, onde Erreth- Akbe morreu, no longinquo Ocidente. E um barco sabio e habil o meu Ve-longe. Podes confiar nele.

Deitada no barco que se movia magicamente por sobre o grande abismo, a rapariga olhava para cima, para o escuro. Toda a sua vida olhara o escuro. Mas esta era uma solidao mais vasta, esta noite no oceano. Para ela, nao havia fim. Nao havia teto. Continuava, continuava, mesmo para alem das estrelas. Nao havia Poderes terrenos que a pudessem mover. Existira antes da luz e existiria depois. Existira antes da vida e existiria depois. Prosseguia imutavel para alem do mal.

No escuro, Tenar falou:

— A pequena ilha, onde te foi dado o talisma, e neste mar?

A voz dele, saindo da escuridao, respondeu:

— Sim. Algures. Para sul, talvez. Nao consegui voltar a encontra-la.

— Eu sei quem ela era, a velha que te deu o anel.

— Sabes?

— Contaram-me a historia. Faz parte dos conhecimentos da Primeira Sacerdotisa. Thar contou-me, primeiro quando Kossil tambem estava junto de nos, depois, mais completa, quando estivemos so as duas. Foi a ultima vez que falou comigo antes de morrer. Houve uma casa nobre em Hupun que lutou contra a subida ao poder dos Grao-Sacerdotes em Auabath. O fundador dessa casa era o Rei Thoreg e, entre os tesouros que deixou aos seus descendentes, havia o meio anel que Erreth-Akbe lhe dera.

— E isso realmente que se conta n’O Feito de Erreth-Akbe. Diz… na tua lingua, diz: «Quando o anel foi quebrado, metade ficou na mao do Grao-Sacerdote Intathin e metade na mao do heroi. E o Grao-Sacerdote enviou a metade quebrada para o Sem-Nome, para o Antiquissimo da Terra em Atuan e desceu a escuridao, aos lugares perdidos. Mas Erreth-Akbe pos a metade quebrada nas maos da donzela Tiarath, filha do rei sage, dizendo: “Que permaneca na luz, no dote da donzela, que continue nesta terra ate que as metades sejam reunidas.” Assim falou o heroi antes de partir para ocidente.»

— E assim deve ter passado de filha para filha naquela casa, ao longo de todos os anos. Nao estava perdida a metade, como a tua gente pensou. Mas quando os Grao-Sacerdotes se fizeram a si proprios Reis-Sacerdotes e depois, quando os Reis-Sacerdotes criaram o Imperio e comecaram a chamar a si proprios Reis-Deuses, durante todo esse tempo a casa de Thoreg ia-se tornando cada vez mais pobre e mais fraca. E por fim, segundo Thar me contou, so restavam dois seres da linhagem de Thoreg, criancas ainda, um rapaz e uma rapariga. O Rei-Deus em Auabath era entao o pai daquele que governa agora. Mandou roubar as criancas do seu palacio em Hupun. Havia a profecia de que um dos descendentes de Thoreg de Hupun havia de provocar um dia a queda do Imperio e isso assustou-o. Mandou entao raptar as duas criancas e leva-las para uma ilha deserta, algures no meio do mar, e que ali fossem deixadas sem nada para alem das roupas que usassem e um pouco de comida. Temia mata-las pelo punhal, pela corda ou pelo veneno. Eram de sangue real e o assassinato de reis acarreta uma maldicao, mesmo sobre os deuses. Os seus nomes eram Ensar e Anthil. Foi Anthil quem te deu a metade do anel quebrado.

Gued permaneceu silencioso por longo tempo. Por fim, disse:

— E finalmente a historia fica completa, tal como o anel ficou completo. Mas e uma historia cruel, Tenar. As criancas, aquela ilha, os dois velhos que eu vi… Quase nao sabiam fala humana alguma.

— Queria pedir-te uma coisa.

— Pede.

— Eu nao quero ir para as Terras Interiores, para Havnor. Nao pertenco ai, a essas grandes cidades e entre gente desconhecida. Nao pertenco a terra nenhuma. Trai o meu proprio povo. Nao tenho povo. E fiz uma coisa muito ma. Poe-me sozinha numa ilha, como os filhos do rei foram deixados, numa ilha isolada onde nao haja gente, onde nao haja ninguem. Deixa-me e leva o anel para Havnor. E teu, nao meu. Nao tem nada a ver comigo. E a tua gente tambem nao. Deixa-me sozinha!

Lentamente, gradualmente, mas mesmo assim sobressaltando-a, uma luz apareceu como o nascer da Lua no negrume a sua frente, a luz de feitico que surgia quando ele ordenava. Aderia a extremidade do bordao que ele segurava na vertical, sentado a proa, virado para ela. Iluminava a base da vela e a amurada do barco e as

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