barco se aproxima delas. As quintas e as florestas, os mercados onde se vende tudo o que ha no mundo.

Ela acenou a cabeca. Sabia que ele estava a tentar encoraja-la, mas ela deixara a alegria la era cima nas montanhas, no valezinho iluminado pelo crepusculo, percorrido pelo rio. Havia agora nela um temor que nao cessava de aumentar. Tudo o que havia para a frente era desconhecido. Nada conhecia alem do deserto e dos Tumulos. E isso de que servia? Conhecia todas as voltas de um labirinto em ruinas, sabia as dancas a dancar perante um altar que tombara. E nada sabia de florestas, de cidades, dos coracoes dos homens.

Subitamente, perguntou:

— Ficaras la comigo?

Nao o olhou. Ele ia com o seu disfarce de ilusao, um campones karguiano de pele branca, e nao gostava de o ver assim. Mas a sua voz nao mudara, era ainda a mesma que lhe falara na escuridao do Labirinto.

Gued levou algum tempo a responder.

— Tenar — disse, por fim —, eu vou onde sou enviado. Sigo um chamamento. E ainda nunca me deixou ficar por muito tempo em terra alguma. Estas a compreender? Faco o que tenho de fazer. Para onde vou, tenho de ir sozinho. Enquanto precisares de mim, ficarei contigo em Havnor. E se alguma vez voltares a precisar de mim, chama-me. Eu virei. Viria da minha propria sepultura se me chamasses, Tenar! Mas nao posso ficar contigo.

A isto ela nada respondeu. Pouco depois, Gued acrescentou:

— Nao vais precisar la de mim. Vais ser feliz.

Ela aquiesceu com um movimento de cabeca, aceitando, silenciosa.

E, lado a lado, continuaram o seu caminho em direcao ao mar.

12. VIAGEM

Gued ocultara o seu barco numa gruta, num dos lados de um grande promontorio rochoso, chamado Cabo da Nuvem pelos aldeaos da vizinhanca, um dos quais lhes deu uma tigela de caldeirada para a ceia. Fizeram caminho pela falesia ate a praia, sob a ultima luz de um dia cinzento. A gruta era uma fenda estreita que se aprofundava na rocha cerca de dez metros. O chao arenoso estava umido porque ficava logo acima do nivel da mare alta. A abertura era visivel do mar e Gued disse que nao podiam fazer fogo, nao fosse algum pescador noturno, navegando no seu barquinho ao longo da costa, ve-lo e ficar curioso. Por isso estenderam-se miseramente na areia, que tao macia era ao toque dos dedos, mas dura como rocha para o corpo cansado. E Tenar escutava o oceano, poucos metros abaixo da boca da gruta, rebentando e retrocedendo e reboando nos rochedos, e ainda o seu trovejar praia abaixo, para leste, durante milhas e milhas. E uma vez e outra e outra ainda fazia os mesmos sons que, no entanto, nao eram bem os mesmos. Nunca repousava. Em todas as costas de todas as terras e por todo o mundo, alteava-se naquelas ondas inquietas, e nunca cessava, e nunca se aquietava. O deserto, as montanhas, esses permaneciam quietos. Nao lancavam um brado eterno com voz alterosa e cava. O mar falava incessantemente, mas a sua lingua era-lhe alheia. Ela nao compreendia.

Ao iluminar da primeira luz acinzentada, quando a mare estava baixa, acordou de um sono inquieto e viu o feiticeiro sair da gruta. Observou-o enquanto ele caminhava, de pes nus, um cinto a cingir-lhe o manto, sobre as rochas la em baixo, cobertas do que parecia cabelos pretos, a procura de qualquer coisa. Voltou depois, escurecendo a gruta ao entrar, e, estendendo-lhe uma mao-cheia de umas coisas molhadas e hediondas, semelhantes a pedras purpuras com labios laranja, disse:

— Toma.

— Que e isso?

— Mexilhoes, das rochas. E estas duas sao ostras, ainda melhores. Repara… assim.

Com a pequena adaga da argola das chaves que a rapariga lhe entregara nas montanhas, abriu uma concha e comeu o mexilhao, com a agua do mar a servir de molho.

— Nem sequer o cozinhas? Comeste isso vivo!

E nao quis voltar a olha-lo enquanto ele, envergonhado mas inabalavel, continuou a abrir e a comer os moluscos, um por um.

Depois de acabar, voltou para dentro da gruta e foi ate ao barco, que tinha a proa virada para fora e estava montado sobre varios troncos trazidos pelo mar, a defende-lo do contato com a areia. Tenar olhara para o barco na noite anterior, desconfiada e sem o entender. Era muito maior do que pensara que os barcos fossem, tres vezes a sua propria altura em comprimento. Estava cheio de objetos de que ela desconhecia o uso e parecia perigoso. A cada lado do nariz (que era como ela chamava a proa) tinha um olho pintado e, no seu sono inquieto, sentira constantemente que o barco a fitava.

Gued rebuscou por instantes entre o que havia la dentro e regressou com qualquer coisa. Um bocado de pao duro, bem embrulhado para se manter seco. E ofereceu-lhe uma grande fatia.

— Nao tenho fome.

Ele olhou-lhe o rosto taciturno.

Depois, voltou a embrulhar o pao como antes, po-lo de lado e sentou-se a entrada da gruta.

— Faltam umas duas horas para a mare voltar a subir — disse — e entao podemos partir. Tiveste uma noite pouco sossegada. Porque e que nao dormes agora?

— Nao tenho sono.

Ele nao deu resposta. Deixou-se simplesmente ficar, de lado para ela e de pernas cruzadas, sob o arco escuro das rochas. O altear e mover-se do mar, com o seu brilho, ficava por detras dele, tal como o via do fundo da gruta. Ele nao se movia. Permanecia tao imovel como as proprias rochas. A quietude libertava-se dele e espalhava-se, como os circulos formados por uma pedra lancada a agua. O silencio tornou-se, nao a ausencia da fala, mas uma coisa em si propria, como o silencio do deserto.

Passado muito tempo, Tenar ergueu-se e veio ate a entrada da gruta. Ele nao se moveu. Desceu os olhos para o seu rosto. Era como se tivesse sido fundido em cobre — rigido, os olhos escuros nao completamente cerrados, mas olhando para baixo, a boca serena.

Ele estava tao para alem de Tenar como o oceano.

Onde estava ele agora, em que direcao o espirito caminharia? Nunca poderia segui-lo.

Ele obrigara-a a segui-lo. Chamara-a pelo nome e ela viera rastejando a sua mao, tal como o pequeno coelho do deserto viera do escuro ate ele. E agora que tinha o anel, agora que os Tumulos estavam em ruinas e a sua sacerdotisa renegada para sempre, agora nao precisava dela e partia para onde nao conseguia segui-lo. Nao queria ficar com ela. Iludira-a e deixa-la-ia desolada e so.

Estendeu a mao e, com um unico e celere gesto, arrancou-lhe do cinto a pequena adaga de aco que lhe dera. Ele moveu-se tanto como se teria movido uma estatua.

A lamina da adaga nao tinha mais de dez centimetros e era afiada num dos lados. Era a miniatura das facas usadas nos sacrificios. Fazia parte dos aderecos da Sacerdotisa dos Tumulos, a qual a deve trazer juntamente com a argola das chaves e um cinto de crina de cavalo, e ainda outros artigos, para alguns dos quais se desconhecia qualquer utilidade. Tenar nunca usara a adaga para nada, salvo que, numa das dancas interpretadas durante a lua nova, tinha de a lancar ao ar e voltar a apanha-la perante o Trono. Ela tinha gostado dessa danca. Era uma danca selvagem, sem outra musica que nao fosse o bater dos seus proprios pes. Varias vezes se cortara nos dedos ao ensaia-la, ate ter conseguido o jeito de agarrar o cabo sempre que a apanhava. A pequena lamina era suficientemente afiada para cortar um dedo ate ao osso, ou as arterias de uma garganta. Ela poderia ainda servir os seus Senhores, embora eles a tivessem traido e abandonado. Guiariam e impeliriam a sua mao naquela ultima acao de sombrio negrume. E aceitariam o sacrificio.

Inclinou-se sobre o homem, segurando a faca na mao direita, atras da anca. Nesse momento, ele ergueu lentamente o rosto e olhou para ela. Tinha o aspecto de alguem que vem de muito longe e viu coisas terriveis. O seu rosto estava calmo mas cheio de dor. Ao dirigir o olhar para ela, parecendo ve-la cada vez mais claramente, a sua expressao amenizou-se. E, por fim, disse: «Tenar», como a desejar-lhe boas-vindas e ergueu a mao ate tocar a pulseira de prata, perfurada e trabalhada, que cingia o pulso da rapariga. Fe-lo como se quisesse sossegar-se a si proprio, cheio de confianca. Nao deu qualquer atencao a adaga na mao dela. Desviou a vista para longe, para as ondas que se alteavam sobre as rochas abaixo deles e, com esforco, disse:

— Esta na altura… Na altura de partirmos.

Вы читаете Os Tumulos de Atuan
Добавить отзыв
ВСЕ ОТЗЫВЫ О КНИГЕ В ИЗБРАННОЕ

0

Вы можете отметить интересные вам фрагменты текста, которые будут доступны по уникальной ссылке в адресной строке браузера.

Отметить Добавить цитату
×