— Nao, nao. Tu nao precisas de tecer encantamentos. Precisas e de falar com outros homens e outras mulheres!

— Mas como e uma pedrinha na lingua dos dragoes?

— Tolk — respondeu ele. — Mas nao estou a tomar-te como minha aprendiza de feiticeira. Estou a ensinar-te a lingua que as pessoas falam no Arquipelago, nas Terras Interiores. Eu tive de aprender a tua lingua antes de vir ate aqui.

— Mas falas de uma maneira esquisita.

— Com certeza que sim. E agora, arkemmi kabat. — E estendeu as maos para que ela lhe desse a pedrinha.

— Tenho mesmo de ir para Havnor? — perguntou ela.

— E para onde irias tu, Tenar?

A rapariga hesitou.

— Havnor e uma bela cidade — continuou ele. — E tu trazes-lhe o anel, o sinal de paz, o tesouro perdido. Vao receber-te em Havnor como uma princesa. Honrar-te-ao pela grande dadiva que lhes trazes, dar-te-ao as boas-vindas e farao com que te sintas bem-vinda. O povo dessa cidade e nobre e generoso.

Chamar-te-ao a Dama Branca porque a tua pele e clara e amar-te-ao ainda mais por seres tao jovem. E tambem porque es bela. Teras cem vestidos como aquele que te mostrei com uma ilusao, mas esses serao verdadeiros. Iras encontrar louvor, gratidao e amor. Tu, que so conheceste a solidao, a inveja e a sombra.

— Houve Manane — interpos ela, na defensiva, com um quase tremer dos labios. — Ele amava-me e foi bom para mim, sempre. Ele protegeu-me o melhor que soube e a paga que lhe dei foi a morte. Ele caiu no poco negro. Nao quero ir para Havnor. Nao quero ir para la. Quero ficar aqui.

— Aqui, em Atuan?

— Nas montanhas. Onde estamos agora.

— Tenar — disse ele na sua voz serena e grave —, ficaremos entao. Nao tenho a minha faca e, se nevar, vai ser dificil. Mas, desde que consigamos encontrar comida…

— Nao. Eu sei que nao podemos ficar. Estou so a ser tonta. E, com estas palavras, Tenar ergueu-se, espalhando cascas de nozes em redor, para por mais lenha no fogo. Depois ficou muito quieta e direita, delgada no seu vestido e manto negros, manchados de sujidade.

— Tudo o que sei de nada serve agora — disse, finalmente, — e nao aprendi mais nada. Tentarei aprender.

Gued desviou a vista com um esgar, como de alguma dor.

No dia seguinte atravessaram o cume da cordilheira de cor fulva. Na estreita passagem soprava um vento forte, trazendo neve, que os fustigava e cegava. Assim, foi so depois de terem percorrido um longo caminho na descida do outro lado, saindo de sob as nuvens de neve dos picos, que Tenar viu a terra para la da muralha montanhosa. Tudo era verde. Verde dos pinheiros, dos prados, dos campos lavrados e dos alqueives. Mesmo em pleno Inverno, quando as matas estavam nuas e as florestas cheias de ramos cinzentos, era uma terra verde, humilde e suave. Avistaram-na de um alto e rochoso declive na encosta da montanha. Sem uma palavra, Gued apontou para ocidente, onde o Sol comecava a baixar sob nuvens espessas como natas batidas. O proprio Sol estava escondido, mas havia uma cintilacao no horizonte, quase como o esplendor das paredes de cristal no Subtumulo, uma especie de brilho jovial a libertar-se da orla do mundo.

— O que e aquilo? — perguntou a rapariga. E logo ele:

— O mar.

Pouco depois ela viu algo de nao tao maravilhoso, mas mesmo assim maravilhoso que bastasse. Tinham chegado a uma estrada e seguiram por ela. Ao lusco-fusco, a estrada levou-os ate uma aldeia, dez ou doze casas alinhadas ao longo dela. A rapariga olhou alarmada para o companheiro quando percebeu que estavam entre gente. Ao lado dela, usando a roupa de Gued e com o seu modo de andar e os seus sapatos, caminhava outro homem. Tinha a pele branca e nem vestigios de barba. Ele lancou-lhe um olhar de relance e os seus olhos eram azuis. Um dos olhos piscou-lhe.

— Sera que os engano? — perguntou. — E que tal a tua roupa? A rapariga olhou para baixo, para si propria. Tinha vestido um conjunto de saia e jaqueta a camponesa, e um grande xale de la vermelho.

— Oh! — exclamou ela, estacando. — Oh, tu es… tu es Gued! E, ao dizer-lhe o nome, viu-o claramente, o rosto escuro e sulcado de cicatrizes que conhecia, os escuros olhos. No entanto, ali estava o estranho de pele leitosa.

— Nao digas o meu nome-verdadeiro em frente de outros. Nem eu direi o teu. Somos irmaos, vindos de Tenacba. E acho que sou capaz de pedir uma ceiazinha, se der com uma cara simpatica.

Pegou-lhe na mao e entraram na aldeia. E sairam dela na manha seguinte, de estomagos cheios e tendo dormido um bom sono num palheiro.

— E costume os Magos pedirem esmola? — perguntou Tenar, enquanto percorriam a estrada entre campos verdes, onde pastavam cabras e pequenas vacas malhadas.

— Porque perguntas?

— Pareces habituado a pedir. Alias, fizeste-o muito bem.

— Bem, e verdade. Se quiseres ver as coisas assim, toda a vida pedi. Sabes, os feiticeiros nao tem grandes posses. A bem dizer, quando vagueiam pelo mundo, nada tem para alem do seu bordao e das roupas. Sao recebidos de boa vontade pela maioria das pessoas, que lhes dao alimento e abrigo. E certo que oferecem alguma retribuicao.

— Que retribuicao?

— Bom, por exemplo, aquela mulher na aldeia. Curei-lhe as cabras.

— Que e que tinham elas?

— Estavam as duas com infeccoes nas tetas. Eu guardava cabras quando era pequeno.

— Disseste-lhe que as tinhas curado?

— Nao. Como e que podia? E porque havia de o fazer?

Depois de uma pausa, ela observou:

— Estou a ver que a tua magia afinal nao e so boa para as coisas importantes.

— Hospitalidade — contrapos ele —, a bondade para um estranho, e uma coisa muito importante. Agradecer e o bastante, claro, mas tive pena das cabras.

De tarde chegaram a uma grande vila. Era construida com tijolos de barro e toda murada, a maneira karguiana, com ameias salientes, torres de vigia aos quatro cantos e uma unica porta, por onde guardadores de gado iam conduzindo um grande rebanho de carneiros. Os telhados vermelhos de uma centena ou mais de casas espreitavam por sobre as muralhas de tijolos amarelados. A entrada, perfilavam-se dois guardas ostentando os capacetes com plumas vermelhas dos servidores do Rei-Deus. Tenar vira homens com elmos assim virem, talvez uma vez por ano, ao Lugar, escoltando ofertas de escravos ou dinheiro para o templo do Rei-Deus. Quando, ao passarem por fora das muralhas, falou disso a Gued, ele respondeu:

— Tambem eu os vi antes, quando era ainda rapaz. Vieram numa batida ate Gont. E chegaram a minha aldeia, para a saquear. Mas foram afugentados. Houve depois uma batalha na Foz-do-Ar, na costa. Foram mortos muitos homens, centenas, dizem. Bem, talvez agora, que o anel esta unido e a Runa Perdida foi refeita, nao haja mais dessas batidas e mortandades entre o Imperio Karguiano e as Terras Interiores.

— Seria uma loucura se tais coisas continuassem — comentou Tenar. — Que iria o Rei-Deus fazer com tantos escravos?

O companheiro pareceu ponderar aquelas palavras durante algum tempo. Depois perguntou:

— Queres tu dizer, se o territorio dos Kargs derrotasse o Arquipelago?

Ela assentiu com um aceno de cabeca.

— Nao me parece que isso tivesse grandes possibilidades de acontecer.

— Mas repara como o Imperio e forte… Ve essa grande cidade, com as suas muralhas e todos os seus homens. Como poderiam as tuas terras defronta-los, se fossem atacadas?

— Esta nao e uma grande cidade — disse ele, cautelosa e docemente. — Tambem eu a teria julgado tremenda, ao acabar de deixar a minha montanha. Mas ha muitas, muitas cidades em Terramar, entre as quais esta e apenas uma vila. E ha muitas, muitas terras. Has de ve-las, Tenar.

Sem responder, a rapariga continuou a andar na estrada, uma expressao obstinada no rosto.

— E maravilhoso ve-las, avistar as novas terras como que a erguerem-se do mar a medida que o nosso

Вы читаете Os Tumulos de Atuan
Добавить отзыв
ВСЕ ОТЗЫВЫ О КНИГЕ В ИЗБРАННОЕ

0

Вы можете отметить интересные вам фрагменты текста, которые будут доступны по уникальной ссылке в адресной строке браузера.

Отметить Добавить цитату
×