tabuas e o rosto do homem com um clarao prateado. Gued olhava diretamente para ela.

— Que mal fizeste tu, Tenar?

— Ordenei que tres homens fossem encerrados numa camara, por baixo do Trono, e deixados morrer a fome. Morreram de fome e de sede. Morreram e estao la enterrados, no Subtumulo. As Pedras Tumulares cairam sobre as suas sepulturas.

E a rapariga interrompeu-se.

— Ha mais ainda?

— Manane.

— Essa morte pesa sobre a minha alma.

— Nao. Ele morreu porque me amava e foi fiel. Pensou que estava a proteger-me. Foi ele que susteve a espada acima do meu pescoco. Quando eu era pequena, ele era bom para mim… quando eu chorava…

Voltou a silenciar-se porque as lagrimas lhe queriam chegar aos olhos, violentas. E contudo, ela nao iria chorar. As suas maos estavam apertadas nas dobras negras do seu vestido.

— Nunca fui boa para ele — continuou. — Nao irei para Havnor. Nao irei contigo. Encontra alguma ilha onde ninguem va, poe-me la e deixa-me. O mal tem de ser pago. Eu nao sou livre.

A luz suave, acinzentada pela nevoa maritima, brilhava no meio deles.

— Ouve, Tenar. Atende-me. Tu eras o receptaculo do mal. O mal foi deitado fora. Acabou. Esta enterrado no seu proprio tumulo. Tu nao tinhas sido feita para a crueldade e para a sombra. Tu tinhas sido feita para guardar a luz, tal como uma lampada acesa guarda e da a sua luz. Eu encontrei a lampada por acender. Nao vou deixa-la numa qualquer ilha deserta, como uma coisa que se achou e deitou fora. Levar-te-ei ate Havnor e direi aos principes de Terramar: «Vejam! No lugar da escuridao, encontrei a luz, o espirito dela. Atraves dela, um mal antigo foi reduzido a nada. Atraves dela, pude sair da sepultura. Atraves dela, o que estava quebrado foi tornado inteiro e, onde havia odio, havera paz.»

— Nao irei — insistiu Tenar numa agonia. — Nao posso. Nao e verdade!

— E depois disso — prosseguiu ele, suavemente —, levar-te-ei para longe dos principes e dos ricos senhores, porque e verdade que nao ha ali lugar para ti. Es demasiado jovem e demasiado sabia. Levar-te-ei para a minha propria terra, para Gont, onde nasci, ate junto do meu velho mestre Oguion. Ele e um velho agora, um muito grande Mago e um homem de coracao paciente. Chamam-lhe «o Silencioso». Vive numa pequena casa nas grandes falesias de Re Albi, muito acima do mar. Tem algumas cabras e uma pequena horta. No Outono, vagueia por toda a ilha, sozinho, nas florestas ou nas encostas das montanhas, atraves dos vales dos rios. Em tempos vivi ali com ele, era eu mais novo que tu es agora. Nao fiquei muito tempo, nao tive o bom senso de ficar. Parti em busca do mal e nao ha duvida de que o encontrei… Mas tu vens a fugir ao mal, em busca de liberdade. Em busca de silencio por algum tempo, ate que encontres o teu proprio caminho. La, junto dele, encontraras bondade e silencio, Tenar. Ai a lampada podera, por algum tempo, arder ao abrigo do vento. Faras isso?

A nevoa marinha passava cinzenta entre os rostos de ambos. O barco erguia-se levemente sobre as longas vagas. Ao redor deles havia a noite, sob eles o mar.

— Farei — acedeu ela com um longo suspiro. E, muito tempo depois: — Ah! Quem me dera que fosse mais breve… que pudesse ir ja…

— Nao faltara muito, pequenina.

— E alguma vez la iras?

— Quando puder, irei.

A luz extinguira-se e, ao redor deles, tudo era escuridao.

Chegaram, depois das alvoradas e dos crepusculos, dos dias calmos e dos ventos gelados, ao Mar Interior. Navegaram pelos canais apinhados, por entre grandes navios, subindo os Estreitos de Ebavnor, entrando na baia que jaz fechada no coracao de Havnor e, atraves da baia, ate ao Grande Porto de Havnor. Viram as brancas torres e toda a cidade branca e radiosa sob a neve. As coberturas das pontes e os telhados vermelhos das casas estavam cobertos de neve e o cordame dos cem navios fundeados no porto de abrigo cintilava de gelo sob o sol de Inverno. Noticia da sua chegada adiantara-se a eles, porque a remendada vela vermelha do Ve- longe era bem conhecida naqueles mares. Uma grande multidao se reunira nos cais cheios de neve e pendoes coloridos ondulavam e batiam sob o vento vivo e frio.

Ereta, Tenar vinha sentada a proa no seu esfarrapado manto de tecido negro. Olhou o anel ao redor do pulso e depois para a costa de muitas cores, apinhada de gente, para os palacios e para as altas torres. Ergueu a mao direita e o sol refletiu-se, lancando um clarao, na prata do anel. Ergueu-se um clamor, alegre e disperso no vento, por sobre a agua inquieta. Gued atracou o barco. Cem maos se estenderam a colher a corda que ele lancara em direcao aos cabecos de amarracao. Saltou depois para o cais e, voltando-se, estendeu a mao para ela, dizendo:

— Vem!

E ela ergueu-se e juntou-se a ele no cais. Gravemente, caminhou a seu lado, subindo as brancas ruas de Havnor, segurando-lhe a mao, como uma crianca regressando a casa.

FICHA TECNICA

Titulo: The Tombs of Atuan

Autora: Ursula K. Le Guin

1970, 1971 by Inter-Vivos Trust for the Le Guin Children

Traducao: Carlos Grifo Babo

Capa: Lupa Design - Danuta Wojciechowska

Composicao: Multitipo - Artes Graficas, Lia.

Impressao e acabamento: Guide - Artes Graficas, Lda.

1a edicao, Lisboa, Maio, 2002

Digitalizacao: Yuna

Revisao: Sayuri

Supervisao: Sayuri

,

Notas

1

Equivalente a quatro arrobas, ou seja, 60 quilogramas. (NT)

Вы читаете Os Tumulos de Atuan
Добавить отзыв
ВСЕ ОТЗЫВЫ О КНИГЕ В ИЗБРАННОЕ

0

Вы можете отметить интересные вам фрагменты текста, которые будут доступны по уникальной ссылке в адресной строке браузера.

Отметить Добавить цитату
×