garra direita. Isto entretanto nao provava nada.
Como os registros mostravam, haviam existido animais na Terra capazes de colecionar objetos estranhos, frequentemente feitos pelo homem e usados de maneira extraordinaria. Se nao estivesse completamente documentado, ninguem teria acreditado na mania do passaro-construtor australiano ou do ratao americano de colecionar objetos coloridos ou brilhantes e ate mesmo arruma-los de maneira artistica.
A Terra estivera cheia de tais misterios que agora nunca mais seriam resolvidos. Talvez o scorp thalassiano estivesse seguindo esta mesma tradicao irracional, por motivos igualmente inescrutaveis. Havia varias teorias. A mais popular, porque exigia menos da mentalidade do scorp, era de que o bracelete era meramente um ornamento.
Fixa-lo no lugar devia ter exigido uma certa destreza, e houvera muitos debates sobre se a criatura poderia faze-lo sozinha. Esta ajuda, e claro, podia ter sido humana. Talvez o scorp fosse o bicho de estimacao que fugira de algum cientista excentrico, mas isto parecia muito improvavel. Como em Thalassa todo mundo se conhecia, tal segredo nao poderia ser mantido por muito tempo. E havia outra teoria ainda mais exagerada e que no entanto merecia maiores elucubracoes. Talvez o bracelete fosse uma divisa de posto.
26. A ASCENSAO DO FLOCO DE NEVA
Tratava-se de um trabalho que exigia uma grande habilidade intercalada com longos periodos de tedio, que davam a Owen Fletcher tempo de sobra para pensar. Tempo demais, de fato. Ele era um pescador de molinete, puxando uma presa de seiscentas toneladas com uma linha de resistencia quase inimaginavel. Um dia aquela sonda cativa, auto-orientada, iria mergulhar em direcao a Thalassa, desenrolando o cabo atras dela ao longo de uma complexa curva de trinta mil quilometros. Ela se dirigiria automaticamente ate a carga que a esperava, e entao, quando todas as verificacoes estivessem completas, o icamento comecaria. Os momentos criticos seriam a decolagem, quando o floco de neve fosse arrancado da usina de congelamento, e a aproximacao final com a Magalhaes, quando o imenso hexagono de gelo fosse colocado em repouso a apenas um quilometro da nave. A ascensao comecaria a meianoite, e de Tarna ate a orbita estacionaria, na qual a Magalhaes flutuava, levaria apenas seis horas. Se a Magalhaes estivesse sob a luz do dia durante o encontro e a montagem, a primeira prioridade seria manter o floco de neve na sombra, para que os raios de sol de Thalassa nao evaporassem a preciosa carga
no espaco. Uma vez que estivesse seguro atras do grande escudo de radiacao, as garras dos teleoperadores-robos arrancariam a folha de material isolante que protegera o gelo em sua ascensao para a orbita. Em seguida o dispositivo de ascensao teria que ser removido e mandado de volta em busca de outra carga. Algumas vezes a imensa chapa de metal, em forma de uma tampa para cacarola hexagonal projetada por algum cozinheiro excentrico, prendia-se no gelo e era preciso um pouco de aquecimento cuidadosamente regulado para soltala. E finalmente uma placa de gelo geometricamente perfeita flutuaria imovel a cem metros da Magalhaes, e entao a parte realmente delicada teria inicio. A combinacao de seiscentas toneladas de massa com zero de peso encontrava-se inteiramente fora do alcance das reacoes instintivas humanas e apenas os computadores poderiam determinar os empuxos necessarios, em que direcao e em que momento, para colocar em posicao o iceberg artificial.
Havia sempre a possibilidade de alguma emergencia ou problema inesperado, alem da capacidade ate mesmo do robo mais inteligente, e embora Fletcher ainda nao tivesse precisado intervir, ele estaria pronto se a ocasiao surgisse. Dizia para si mesmo que estava ajudando a construir uma gigantesca colmeia de gelo. A primeira camada estava quase completa, e ainda faltavam duas.
Descontando a possibilidade de acidentes, o escudo estaria terminado dentro de outros cento e cinquenta dias. Seria testado, entao, sob baixa aceleracao, para comprovar se todos os blocos se tinham fundido adequadamente, e neste momento a Magalhaes partiria no trecho final de sua jornada para as estrelas. Fletcher, conscientemente, fazia este trabalho com sua mente, nao com o seu coracao. Este ja estava perdido em Thalassa. Ele tinha nascido em Marte e este mundo possuia tudo que seu planeta desolado nao tivera. Ele vira o trabalho de geracoes de seus ancestrais dissolver-se em chamas.
Por que comecar tudo de novo, dentro de seculos, num outro mundo, quando o Paraiso estava ali? E e claro, a moca estava esperando por ele, la na Ilha do Sul. Ja havia praticamente decidido que, quando surgisse a oportunidade, abandonaria a nave. Os terrestres poderiam seguir sem ele, para lancar sua forca e suas habilidades, ou talvez estracalhar seus coracoes e corpos contra as rochas teimosas de Sagan 2. Ele lhes desejava boa sorte, mas quando tivesse terminado sua tarefa, ali seria o seu lar. Trinta mil quilometros abaixo, Brant Falconer tambem tinha chegado a uma decisao crucial.
— Eu vou para a Ilha do Norte.
Mirissa ficou em silencio, e entao, depois do que pareceu a Brant um tempo muito longo, ela disse: — Por que? — Nao havia surpresa nem desapontamento em sua voz, tanta coisa havia mudado. Mas antes que pudesse responder, Mirissa acrescentou: — Voce nao gosta daqui? — Talvez seja melhor la do que aqui, como as coisas estao agora. Este nao e mais o meu lar.
— Sempre sera o seu lar.
— Nao enquanto a Magalhaes estiver em orbita. Mirissa estendeu a mao no escuro para o estranho ao lado dela. Pelo menos ele nao recuou.
— Brant — disse —, eu nunca tencionei fazer isso. certeza que nem mesmo Loren. E tenho — Isso nao ajuda muito, nao e? Francamente, eu nao sei o que voce ve nele. Mirissa quase sorriu. Quantos homens, ela pensou, ja nao teriam dito a mesma coisa a tantas mulheres no curso da historia humana? E quantas mulheres ja nao teriam dito: o que voce ve nela? Nao havia modo de responder, isso era claro, e qualquer tentativa so pioraria as coisas. Mas algumas vezes ela tinha tentado, para sua propria satisfacao, descobrir o que a havia unido a Loren desde o primeiro instante em que se viram. A maior parte ficava por conta da misteriosa quimica do amor, alem de qualquer analise racional, inexplicavel para qualquer um que nao partilhasse da mesma ilusao. Mas havia outros elementos que poderiam ser claramente identificados e explicados em termos logicos. Era util saber de que se tratava, afinal, um dia (como estava perto!) tal sabedoria poderia ajuda-la a enfrentar o momento da separacao. Em primeiro lugar havia aquela aura tragica cercando todos os terrestres, ela nao subestimava a importancia desse fator, mas Loren o compartilhava com todos os seus companheiros. O que e que ele tinha em especial que ela nao podia encontrar em Brant? Como amantes, havia pouco a escolher entre eles. Era possivel que Loren fosse mais imaginativo e Brant mais apaixonado, embora talvez se tivesse tornado um pouco mecanico nas ultimas semanas. Ela seria perfeitamente feliz com ambos. Nao, nao era isso. Talvez estivesse procurando um ingrediente que nem sequer existia. Nao havia um elemento unico e sim uma constelacao de qualidades. Seus instintos, abaixo do nivel do pensamento consciente, haviam feito a soma total e Loren saira com alguns pontos a frente de Brant. Poderia ser tao simples assim?
Mas havia pelo menos um aspecto em que Loren, de longe, eclipsava Brant. Ele tinha ambicao, forca de vontade, coisas raras em Thalassa. Sem duvida, fora escolhido por essas qualidades e iria necessitar delas nos seculos do porvir. Brant nao tinha ambicao nenhuma, embora fosse um pouco empreendedor. Seu projeto de armadilha para peixes ainda nao terminado era prova disso. Tudo que ele pedia do universo era que lhe fornecesse maquinas interessantes para brincar, e Mirissa as vezes pensava que ele a incluia nesta categoria. Loren, por outro lado, pertencia a estirpe dos grandes exploradores e aventureiros. Ele ajudaria a fazer historia, sem se submeter meramente aos imperativos. E no entanto podia, cada vez com mais frequencia, ser humano e caloroso. E mesmo enquanto congelava os mares de Thalassa o seu coracao comecava a derreter.
— O que voce vai fazer na Ilha do Norte? — sussurrou Mirissa (de fato, ambos ja tratavam a decisao dele como irreversivel).
— Eles querem que eu ajude a equipar o Calypso. Os nortistas realmente nao entendem de mar. Mirissa sentiu-se aliviada. Brant nao estava simplesmente fugindo. Ele tinha trabalho a fazer. Trabalho que o ajudaria a esquecer, ate que, talvez, surgisse a ocasiao em que novamente se lembrasse.