pior para um medico que receber reclamacoes da familia dos doentes que passavam por Villete. E isso quase sempre acontecia — depois de um periodo num hospital para doentes mentais, raramente um paciente conseguia adaptar-se novamente a vida normal.

Nao era culpa do sanatorio. Nem de nenhum de todos os sanatorios espalhados — so o bom Deus sabia — pelos quatro cantos do mundo, onde o problema de readaptacao dos internos era exatamente igual. Assim como a prisao nunca corrigia o preso -apenas o ensinava a cometer mais crimes, os sanatorios faziam com que os doentes se acostumassem com um mundo totalmente irreal, onde tudo era permitido, e ninguem precisava ter responsabilidade por seus atos.

De modo que so restava uma saida: descobrir a cura para a Insanidade. E o Dr. Igor estava empenhado nisso ate a raiz dos cabelos,, desenvolvendo uma tese que iria revolucionar o meio psiquiatrico. Nos asilos, os doentes provisorios em convivencia com pacientes irrecuperaveis iniciavam um processo de degeneracao social, e uma vez que era impossivel deter esta roda. A tal Zedka Mendel terminaria voltando ao hospital — desta vez por vontade propria, queixando-se de males inexistentes, so para estar perto de pessoas que pareciam compreende- la melhor que o mundo la fora.

Se ele descobrisse, porem, como combater o Vitriolo -para o Dr. Igor, o veneno responsavel pela loucura — seu nome entraria para a Historia, e a Eslovenia seria definitivamente colocada no mapa. Naquela semana, uma chance caida dos ceus aparecera, sob a forma de uma suicida potencial; ele nao estava disposto a desperdicar esta oportunidade por nenhum dinheiro do mundo.

Dr. Igor ficou contente. Embora, por razoes economicas, ainda fosse obrigado a aceitar tratamentos que ha muito tinham sido condenados pela medicina — como o choque de insulina -tambem, por razoes economicas, Villete estava inovando o tratamento psiquiatrico. Alem de possuir tempo e elementos para a pesquisa do Vitriolo, ele ainda contava com o apoio dos donos para manter no asilo o grupo chamado de «a fraternidade». Os acionistas da instituicao tinham permitido que fosse tolerada — note bem, nao encorajada, mas tolerada — uma internacao maior do que o tempo necessario. Eles argumentavam que, por razoes humanitarias, devia-se dar ao recem-curado a opcao de decidir qual o melhor momento de reintegrar-se ao mundo, e isso permitira que um grupo de pessoas resolvesse permanecer em Villete, como em um hotel seletivo , ou um clube onde se reunem aqueles que tem algumas afinidades em comum. Assim, o Dr. Igor conseguia manter loucos e saos no mesmo ambiente, fazendo com que os ultimos influenciassem positivamente os primeiros. Para evitar que as coisas degenerassem — e os loucos terminassem contagiando negativamente os que tinham sido curados, todo membro da Fraternidade devia sair do sanatorio pelo menos uma vez por dia.

Dr. Igor sabia que os motivos dados pelos acionistas para permitir a presenca de pessoas curadas no asilo — «razoes humanitarias», diziam — era apenas uma desculpa. Eles tinham medo de que Lubljana, a pequena e charmosa capital da Eslovenia, nao tivesse um numero suficiente de loucos ricos, capazes de sustentar toda aquela estrutura cara e moderna. Alem do mais, o sistema de saude publica contava com asilos de primeira qualidade, o que deixava Villete em situacao de desvantagem diante do mercado de problemas mentais.

Quando os acionistas transformaram o antigo quartel em sanatorio, tinham como publico alvo os possiveis homens e mulheres afetados pela guerra com a Yugoslavia. Mas a guerra durara muito pouco. Os acionistas apostaram que a guerra ia voltar, mas nao voltou.

Depois, em recente pesquisa, descobriram que as guerras faziam suas vitimas mentais, mas em escala muito menor que a tensao, o tedio, as enfermidades congenitas, a solidao, e a rejeicao. Quando uma coletividade tinha um grande problema para enfrentar — como no caso de uma guerra, ou de uma hiperinflacao, ou de uma peste — notava-se um pequeno aumento no numero de suicidios, mas uma grande diminuicao nos casos de depressao, paranoia, psicoses. Estes voltavam a seus Indices normais logo que tal problema havia sido ultrapassado, indicando — assim entendia o Dr. Igor — que o ser humano so se da ao luxo de ser louco quando tem condicoes para isso.

Diante de seus olhos, estava outra pesquisa recente, desta vez vinda do Canada — eleito recentemente por um jornal americano como o pais do mundo onde o nivel de vida era mais elevado. O Dr. Igor leu:

* De acordo com a Statistics Canada, ja sofreram algum tipo de doenca mental:

40% das pessoas entre 15 e 34 anos; 33% das pessoas entre 35 e 54 anos; 20% das pessoas entre 55 e 64 anos.

* Estima-se que um em cada cinco individuos sofra algum tipo de desordem psiquiatrica.

+ Um em cada oito canadenses serao hospitalizados por disturbios mentais pelo menos uma vez na vida.

«Excelente mercado, melhor que aqui», pensou. «Quanto mais felizes as pessoas podem ser, mais infelizes ficam».

Dr. Igor analisou mais alguns casos, ponderando

cuidadosamente sobre os que devia dividir com o Conselho, e os que podia resolver sozinho. Quando terminou, o dia ja tinha raiado por completo, e ele apagou a luz.

Em seguida mandou entrar a primeira visita — a mae da tal paciente que tentara o suicidio.

— Sou a mae de Veronika. Qual o estado de minha filha?

O Dr. Igor pensou se devia ou nao dizer-lhe a verdade, e poupa-la de surpresas inuteis — afinal de contas, tinha uma filha com o mesmo nome. Mas decidiu que era melhor ficar calado.

— Ainda nao sabemos — mentiu. — Precisamos de mais uma semana.

— Nao sei porque Veronika fez isso — dizia a mulher a sua frente, em prantos. — Nos somos pais carinhosos, tentamos dar a ela, a custa de muito sacrificio, a melhor educacao possivel. Embora tivessemos nossos problemas conjugais, mantivemos nossa familia unida, como exemplo de perseveranca diante das adversidades. Ela tem um bom emprego, nao e feia, e mesmo assim...

— ... e mesmo assim tentou matar-se — interrompeu o Dr. Igor. — Nao fique surpresa, minha senhora, e assim mesmo. As pessoas sao incapazes de entender a felicidade. Se desejar, posso lhe mostrar as estatisticas do Canada.

— Canada?

A mulher olhou-o com surpresa. Dr. Igor viu que havia conseguido distrai-la, e continuou.

— Veja bem: a senhora vem ate aqui nao para saber com vai sua filha, mas para desculpar-se pelo fato de que ela tentou cometer suicidio. Quantos anos ela tem?

— Vinte e quatro.

— Ou seja: uma mulher madura, vivida, que ja sabe bem o que deseja, e e capaz de fazer suas escolhas. O que isso tem a ver com seu casamento, ou com o sacrificio que a senhora e seu marido fizeram? Ha quanto tempo ela mora sozinha?

— Seis anos.

— Esta vendo? Independente ate a raiz da alma. Mesmo assim, porque um medico austriaco — Dr. Sigmund Freud, tenho certeza que a Sra. ja ouviu falar dele — escreveu sobre estas relacoes doentias entre pais e filhos, ate hoje todo mundo se culpa de tudo. Os Indios acham que o filho que se tornou assassino e uma vitima da educacao de seu pais? Responda.

— Nao tenho a menor ideia — respondeu a mulher, cada vez mais surpresa com o medico. Talvez ele tivesse sido contagiado pelos proprios pacientes.

— Pois eu vou lhe dizer a resposta — disse o Dr. Igor. -Os indios acham que o assassino e culpado, e nao a sociedade, nem seus pais, nem seus antepassados. Os japoneses cometem suicidio porque um filho deles resolveu se drogar e sair atirando? A resposta tambem e a mesma: Nao! E olha que, segundo me consta, os japoneses cometem suicidio por qualquer motivo; outro dia mesmo li uma noticia de que um jovem se matou porque nao conseguiu passar no vestibular.

— Sera que eu posso falar com a minha filha? — perguntou a mulher, que nao estava interessada em japoneses, indios ou canadenses.

— Ja, ja — disse o Dr. Igor, meio irritado com a interrupcao. — Mas antes, eu quero que a Sra. entenda uma coisa: afora alguns casos patologicos graves, as pessoas enlouquecem quando tentam fugir da rotina. A senhora entendeu?

— Entendi muito bem — respondeu. — E se o senhor esta achando que nao serei capaz de cuidar dela, pode ficar tranquilo: nunca tentei mudar a minha vida.

— Que bom — o Dr. Igor mostrava um certo alivio. — A senhora ja imaginou um mundo onde, por exemplo, nao fossemos obrigados a repetir todos os dias de nossas vidas a mesma coisa? Se resolvessemos, por

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