estava sentindo algo que nunca se permitira: odio.
Odio. Algo quase tao fisico como paredes, ou pianos, ou enfermeiras — ela quase podia tocar a energia destruidora que saia do seu corpo. Deixou que o sentimento viesse, sem se preocupar se era bom ou nao — bastava de auto-controle, de mascaras, de posturas convenientes, Veronika agora queria passar seus dois ou tres dias de vida sendo a mais inconveniente possivel.
Comecara dando um tapa no rosto de um homem mais velho, tivera um ataque com o enfermeiro, recusara-se a ser simpatica e conversar com os outros quando queria ficar sozinha, e agora era livre o suficiente para sentir odio — embora esperta o bastante para nao comecar a quebrar tudo a sua volta, e ter que passar o final de sua vida sob o efeito de sedativos, numa cama da enfermaria.
Odiou tudo o que pode naquele momento. A si mesma, ao mundo, a cadeira que estava na sua frente, a calefacao quebrada num dos corredores, as pessoas perfeitas, os criminosos. Estava internada num hospicio, e podia sentir coisas que os seres humanos escondem de si mesmos — porque somos todos educados apenas para amar, aceitar, tentar descobrir uma saida, evitar o conflito. Veronika odiava tudo, mas odiava principalmente a maneira como conduzira sua vida — sem jamais descobrir as centenas de outras Veronikas que habitavam dentro dela, e que eram interessantes, loucas, curiosas, corajosas, arriscadas.
Em dado momento, comecou a sentir odio tambem pela pessoa que mais amava no mundo: sua mae. A excelente esposa que trabalhava de dia e lavava os pratos de noite, sacrificando sua vida para que a filha tivesse uma boa educacao, soubesse tocar piano e violino, se vestisse como uma princesa, comprasse os tenis e calcas de marca, enquanto ela remendava o velho vestido que usava ha anos.
«Como posso odiar quem apenas me deu amor? « pensava Veronika, confusa, e querendo corrigir seus sentimentos. Mas ja era tarde demais, o odio estava solto, ela abrira as portas do seu inferno pessoal. Odiava o amor que lhe tinha sido dado — porque nao pedia nada em troca — o que e absurdo, irreal, contra as leis da natureza.
O amor que nao pedia nada em troca conseguia enche-la de culpa, de vontade de corresponder as suas expectativas, mesmo que isso significasse abrir mao de tudo que sonhara para si mesma. Era um amor que tentara lhe esconder, durante anos, os desafios e a podridao do mundo — ignorando que um dia ela iria se dar conta disso, e nao teria defesas para enfrenta-los.
E seu pai? Odiava seu pai, tambem. Porque, ao contrario de sua mae que trabalhava o tempo todo, ele sabia viver, a levava aos bares e ao teatro, divertiam-se juntos, e quando ainda era jovem ela o amara em segredo, nao como se ama um pai, mas um homem. Odiava-o porque ele fora sempre tao encantador e tao aberto com todo mundo — menos com sua mae, a unica que realmente merecia o melhor.
Odiava tudo. A biblioteca com seu monte de livros cheios de explicacoes sobre a vida, o colegio onde fora obrigada a gastar noites inteiras aprendendo algebra, embora nao conhecesse nenhuma pessoa — exceto os professores e matematicos — que precisassem de algebra para serem mais felizes. Por que lhe tinham feito estudar tanto algebra, ou geometria, ou aquela montanha de coisas absolutamente inuteis?
Veronika empurrou a porta da sala de estar, chegou diante do piano, abriu sua tampa, e — com toda a forca — bateu com as maos no teclado. Um acorde louco, sem nexo, irritante, ecoando pelo ambiente vazio, batendo nas paredes, voltando aos seus ouvidos sob a forma de um ruido agudo, que parecia arranhar sua alma. Mas isso era o melhor retrato de sua alma naquele momento.
Tornou a bater com as maos, e mais uma vez as notas dissonantes reverberaram por toda parte.
«Sou louca. Posso fazer isso. Posso odiar, e posso espancar o piano. Desde quando os doentes mentais sabem colocar as notas em ordem?»
Bateu no piano uma, duas, dez, vinte vezes — e a cada vez que fazia isso, seu odio parecia diminuir, ate que passou por completo .
Entao, novamente, uma profunda paz inundou-a, e Veronika tornou a olhar o ceu estelado, com a lua em quarto crescente — sua favorita — enchendo de luz suave o lugar onde se encontrava. Veio de novo a sensacao de que Infinito e Eternidade andavam de maos dadas, e bastava contemplar um deles — como o Universo sem limites para notar a presenca do outro, o Tempo que nao termina nunca, que nao passa, que permanece no Presente, onde estao todos os segredos da vida. Entre a enfermaria e a sala ela fora capaz de odiar, tao forte e tao intensamente, que nao lhe sobrara nenhum rancor no coracao. Deixara que seus sentimentos negativos, represados durante anos em sua alma, viessem finalmente a tona. Ela os tinha sentido, e agora nao eram mais necessarios — podiam partir.
Ficou em silencio, vivendo seu momento Presente, deixando que o amor ocupasse o espaco vazio que o odio deixara. Quando sentiu que chegara o momento, virou-se para a lua e tocou uma sonata em sua homenagem — sabendo que ela a escutava, ficava orgulhosa, e isto provocava ciumes nas estrelas. Tocou entao uma musica para as estrelas, outra para o jardim, e uma terceira para as montanhas que nao podia ver de noite, mas sabia que estavam la.
No meio da musica para o jardim, outro louco apareceu -Eduard, um esquizofrenico que estava alem da possibilidade de cura. Ela nao se assustou com sua presenca: ao contrario, sorriu, e para sua surpresa ele sorriu de volta.
Tambem no seu mundo distante, mais distante do que a lua, a musica era capaz de penetrar e fazer milagres.
«Tenho que comprar um novo chaveiro»pensava o Dr. Igor, enquanto abria a porta do seu pequeno consultorio no Sanatorio de Villete. O antigo estava caindo aos pedacos, e o pequeno escudo de metal que o enfeitava acabara de cair no chao.
Dr. Igor abaixou-se e pegou-o. O que iria fazer com este escudo, mostrando o brasao de Lubljana? Melhor jogar fora. Mas podia mandar conserta-lo, pedindo que refizessem uma nova alca de couro — ou podia da-lo a seu neto, para brincar. Ambas as alternativas lhe pareceram absurdas; um chaveiro custava muito barato, e seu neto ano tinha o menor interesse em escudos -passava o tempo todo vendo televisao, ou divertindo-se com jogos eletronicos importados da Italia. Mesmo assim, nao jogou fora; colocou-o no bolso, para decidir mais tarde o que fazer com ele.
Por isso era um diretor de sanatorio, e nao um doente; porque refletia muito antes de tomar qualquer atitude.
Acendeu a luz — amanhecia cada vez mais tarde, a medida que avancava o inverno. A ausencia de luz, , assim como as mudancas de casa ou os divorcios, eram os principais responsaveis pelo aumento do numero de casos de depressao. Dr. Igor torcia para que a primavera chegasse logo, e resolvesse metade dos seus problemas.
Olhou a agenda do dia. Precisava estudar algumas medidas para nao deixar que Eduard morresse de fome; sua esquizofrenia fazia com que fosse imprevisivel, e agora ele deixara de comer por completo. Dr. Igor ja receitara alimentacao intravenosa, mas nao podia manter aquilo para sempre; Eduard tinha 28 anos, era forte, e mesmo com o soro ia terminar definhando, ficando com aspecto esqueletico.
Qual seria a reacao do pai de Eduard, um dos mais conhecidos embaixadores da jovem republica eslovena, um dos artifices das delicadas negociacoes com a Yugoslavia, no comeco dos anos 90? Afinal, este homem havia conseguido trabalhar durante anos para Belgrado, sobrevivera aos seus detratores — que o acusavam de haver servido ao inimigo — e continuava no corpo diplomatico, so que desta vez representando um pais diferente. Era um homem poderoso e influente, temido por todos.
Dr. Igor se preocupou um instante — como antes se preocupara com o escudo do chaveiro — mas logo afastou o pensamento da cabeca: para o Embaixador, tanto fazia que seu filho tivesse uma boa ou ma aparencia; nao pretendia leva-lo a festas oficiais, ou fazer com que o acompanhasse pelos lugares do mundo
onde era designado como representante do Governo. Eduard, estava em Villete — e ali continuaria para sempre, ou pelo tempo que o pai continuasse ganhando aqueles salarios enormes.
Dr. Igor decidiu que retiraria a alimentacao intravenosa, e deixaria Eduard definhar mais um pouco, ate que tivesse, por ele mesmo, vontade de comer. Se a situacao piorasse, faria um relatorio e passaria a responsabilidade ao conselho de medicos que administrava Villete. «Se voce nao quiser entrar em apuros, sempre divida a responsabilidade», lhe ensinara seu pai, tambem ele um medico que tivera varias mortes em suas maos, mas nenhum problema com as autoridades.
Uma vez receitada a interrupcao do medicamento de
Eduard, Dr. Igor passou para o proximo caso: o relatorio dizia que a paciente Zedka Mendel ja terminara seu periodo de tratamento, e podia receber alta. Dr. Igor queria conferir com seus proprios olhos: afinal, nada