ofensas nunca a atingiam, pois era superior a todos. Quem, daquele grupo, tivera coragem de desejar a morte? Quais daquelas pessoas podia querer lhe ensinar sobre a vida, se estavam todos escondidos atras dos muros de Villete? Nunca iria depender da ajuda deles para nada — mesmo que tivesse que esperar cinco ou seis dias para morrer.

«Um dia ja passou. Sobram apenas quatro ou cinco».

Andou um pouco, deixando que o frio abaixo de zero

entrasse por seu corpo e acalmasse o sangue que corria depressa, o coracao que batia rapido demais.

«Muito bem, aqui estou eu, com as horas literalmente contadas, e dando importancia para os comentarios de gente que nunca vi, e que em breve nunca mais verei. E eu sofro, me irrito, quero atacar e defender. Para que perder tempo com isso? «

A realidade, porem, e que estava gastando o pouco tempo que lhe sobrava, para lutar por seu espaco num ambiente estranho, onde era preciso resistir, ou os outros impunham suas regras.

«Nao e possivel. Eu nunca fui assim. Eu nunca lutei por bobagens. «

Parou no meio do jardim gelado. Justamente porque achava que tudo era bobagem, ela terminara aceitando o que a vida lhe tinha naturalmente imposto. Na adolescencia, achava que era cedo demais para escolher; agora, na juventude, se convencera que era tarde demais para mudar.

E onde gastara toda a sua energia, ate o momento? Tentando fazer com que tudo em sua vida continuasse o mesmo. Sacrificara muitos de seus desejos, para que seus pais a continuassem amando como a amavam quando crianca, embora sabendo que o verdadeiro amor se modifica com o tempo, e cresce, e descobre novas maneiras de se expressar. Certo dia, quando escutara a mae — aos prantos — lhe dizer que o casamento havia acabado, Veronika fora em busca do pai, chorara, ameacara, e finalmente arrancara a promessa de que ele nao sairia de casa -sem imaginar o preco alto que os dois deviam estar pagando por causa disso.

Quando resolveu arranjar um emprego, deixou de lado uma proposta tentadora numa companhia que acabava de se instalar em seu recem-criado pais, para aceitar o trabalho na biblioteca publica, onde o dinheiro era pouco, mas era seguro. Ia trabalhar todos os dias, no mesmo horario, sempre deixando claro aos seus chefes de que nao a vissem como uma ameaca, ela estava satisfeita, nao pretendia lutar para crescer: tudo que desejava era o salario no final do mes.

Alugou o quarto no convento porque as freiras exigiam que todas as inquilinas voltassem em determinada hora, e depois passavam a chave na porta: quem ficasse do lado de fora, tinha que dormir na rua. Ela sempre podia dar uma desculpa verdadeira aos namorados, para nao ser obrigada a passar a noite em hoteis ou leitos estranhos.

Quando sonhava em casar, imaginava-se sempre num pequeno chale fora de Lubljana, com um homem que fosse diferente do seu pai, que ganhasse apenas o suficiente para sustentar a familia, que ficasse contente com o fato de que os dois estavam juntos numa casa com a lareira acesa, olhando as montanhas cobertas de neve.

Educara a si mesmo para dar aos homens uma quantia exata de prazer — nem mais, nem menos, apenas o necessario. Nao sentia raiva de ninguem, porque isso significava ter que reagir, combater um inimigo — e depois ter que aguentar consequencias imprevisiveis, como vinganca.

Quando conseguiu quase tudo o que desejava na vida, chegou a conclusao que a sua existencia nao tinha sentido, porque todos os dias eram iguais. E decidira morrer.

Veronika tornou a entrar, e foi direto ao grupo reunido em um dos cantos da sala. As pessoas conversavam, animadas, mas silenciaram assim que ela chegou.

Foi direto ate o homem mais idoso, que parecia ser o chefe. Antes que alguem pudesse dete-la, deu-lhe um sonoro tapa no rosto.

— Vai reagir? — perguntou alto, para que todos na sala ouvissem. — Vai fazer alguma coisa?

— Nao. — O homem passou a mao no rosto. Um pequeno filete de sangue escorreu do seu nariz. — Voce nao vai nos perturbar por muito tempo.

Ela deixou a sala de estar e caminhou para a sua

enfermaria, com ar triunfante. Tinha feito algo que jamais fizera em sua vida.

Tres dias se passaram deste o incidente com o grupo que Zedka chamava de «A Fraternidade». Arrependera-se do tapa — nao por medo da reacao do homem, mas porque fizera algo diferente. Em breve, podia terminar convencida de que a vida valia a pena, um sofrimento inutil — ja que teria que partir deste mundo de qualquer maneira.

Sua unica saida foi afastar-se de tudo e de todos, tentar de todas as maneiras ser como era antes, obedecer as ordens e regulamentos de Villete. Adaptou-se a rotina imposta pela casa de saude: acordar cedo, cafe da manha, passeio no jardim, almoco, sala de estar, novo passeio no jardim, ceia, televisao, e cama.

Antes de dormir, uma enfermeira sempre aparecia com medicamentos. Todas as outras mulheres tomavam comprimidos, ela era a unica a quem aplicavam uma injecao. Nunca reclamou; apenas quis saber porque lhe davam tanto calmante, ja que nunca tivera problemas para dormir. Explicaram que a injecao nao era um sonifero, mas um remedio para o seu coracao.

E assim, obedecendo a rotina, os dias do hospicio

comecaram a ficar iguais. Quando ficam iguais, passam mais rapido: mais dois ou tres dias, e nao seria necessario escovar os dentes ou pentear o cabelo. Veronika percebia o seu coracao enfraquecendo rapidamente: perdia o folego com facilidade, sentia dores no peito, nao tinha apetite, e ficava tonta cada vez que fazia qualquer esforco.

Depois do incidente com a Fraternidade, chegara a pensar algumas vezes: «se eu tivesse uma escolha, se tivesse compreendido antes que meus dias eram iguais porque eu assim os desejava, talvez...»

Mas a resposta era sempre a mesma: «nao ha talvez, porque nao ha escolha». E a paz interior voltava, porque tudo estava determinado.

Neste periodo, desenvolveu uma relacao (nao uma amizade, porque amizade exige uma longa convivencia, e isso seria impossivel) com Zedka. Jogavam baralho — o que ajuda o tempo a passar mais rapido — e as vezes caminhavam juntas, em silencio, pelo jardim.

Na manha daquele dia, logo depois do cafe, todos sairam para o «banho de sol» — conforme exigia o regulamento. Um enfermeiro, porem, pediu que Zedka voltasse a enfermaria, pois era o dia do «tratamento».

Veronika estava tomando cafe com ela, e escutou o comentario.

— O que e «tratamento»?

— E um processo antigo, da decada dos sessenta, mas os medicos acham que pode acelerar a recuperacao. Voce quer ver?

— Voce disse que tinha depressao. Nao basta tomar o remedio para repor a tal substancia que falta?

— Voce quer ver? — insistiu Zedka.

Ia sair da rotina, pensou Veronika. Ia descobrir novas coisas, quando nao precisava aprender mais nada — apenas ter paciencia. Mas sua curiosidade foi mais forte, e ela fez que sim com a cabeca.

— Isto nao e uma exibicao — reclamou o enfermeiro.

— Ela vai morrer. E nao viveu nada. Deixa que venha conosco.

Veronika assistiu a mulher ser amarrada na cama, sempre com um sorriso nos labios.

— Conta o que esta acontecendo — disse Zedka para o enfermeiro. — Ou ela vai ficar assustada.

Ele virou-se e mostrou uma injecao. Parecia feliz de ser tratado como um medico, que explica aos estagiarios os procedimentos corretos e os tratamentos adequados.

— Nesta seringa, esta uma dose de insulina — disse, dando as suas palavras um tom grave e tecnico. — E usada por diabeticos para combater as altas doses de acucar. Entretanto, quando a dose e muito mais elevada que a habitual, a queda na taxa de acucar provoca o estado de coma.

Ele bateu levemente na agulha, retirou o ar, e aplicou-o na veia do pe direito de Zedka.

— E isso que vai acontecer agora. Ela vai entrar num coma induzido. Nao se assuste se seus olhos ficarem vidrados, e nao espere que a reconheca enquanto estiver sob o efeito da medicacao.

— Isso e horroroso, desumano. As pessoas lutam para sair, e nao para entrar em coma.

— As pessoas lutam para viver, e nao para cometerem suicidio — respondeu o enfermeiro, mas Veronika ignorou a provocacao. — E o estado de coma deixa o organismo em repouso; suas funcoes sao drasticamente

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