— Eu nao sou louca. A mulher riu.

— E exatamente o que todos dizem aqui.

— Esta bem. Entao sou louca. O que e um louco?

A mulher disse que Veronika nao devia ficar muito tempo em pe, e mandou-a de volta para a sua cama.

— O que e um louco? — insistiu Veronika.

— Pergunte ao medico amanha. E va dormir ou terei — a contragosto — que aplicar lhe aplicar um calmante.

Veronika obedeceu. No caminho de volta, escutou alguem sussurrar de uma das camas:

«Voce nao sabe o que e um louco?»

Por um instante, ela pensou em nao responder: nao queria fazer amigos, desenvolver circulos sociais, arranjar aliados para uma grande sublevacao em massa. Tinha apenas uma ideia fixa: morte. Se fosse impossivel fugir, daria um jeito de se matar ali mesmo, o quanto antes possivel.

Mas a mulher repetiu a mesma pergunta que ela fizera as vigilante.

— Voce nao sabe o que e um louco?

— Quem e voce?

— Meu nome e Zedka. Va ate sua cama. Depois, quando a vigilante achar que voce ja esta deitada , arraste-se pelo chao e venha ate aqui.

Veronika voltou ao seu lugar, e esperou que a vigilante voltasse a se concentrar no livro. O que era um louco? Nao tinha a menor ideia, porque esta palavra era empregada de uma maneira completamente anarquica: diziam, por exemplo, que certos esportistas eram loucos por desejarem quebrar recordes. Ou que os artistas eram loucos, pois viviam de uma maneira insegura, inesperada, diferente de todos os «normais». Por outro lado, Veronika ja vira muita gente andando nas ruas de Lubljana, mal agasalhados durante o inverno, pregando o fim do mundo, empurrando carrinhos de supermercado cheio de sacolas e trapos.

Estava sem sono. Segundo o medico, dormira quase uma semana, tempo demais para quem estava acostumado com uma vida sem grandes emocoes, mas com horarios rigidos de descanso. O que era um louco? Talvez fosse melhor perguntar para um deles.

Veronika agachou-se, tirou a agulha do seu braco, e foi ate onde estava Zedka, tentando nao dar importancia ao estomago que comecava a dar voltas; nao sabia se o enjoo era resultado do seu coracao enfraquecido, ou do esforco que estava fazendo.

— Nao sei o que e um louco — sussurrou Veronika. — Mas eu nao sou. Sou uma suicida frustrada.

— Louco e quem vive em seu mundo. Como os

esquizofrenicos, os psicopatas, os maniacos. Ou seja, pessoas que sao diferentes das outras.

— Como voce?

— Entretanto — continuou Zedka, fingindo nao ter escutado o comentario — voce ja deve ter falar de Einstein, dizendo que nao havia tempo nem espaco, mas uma uniao dos dois. Ou Colombo, insistindo que do outro lado do mar nao estava um abismo, e sim um continente. Ou de Edmond Hillary, garantindo que um homem podia chegar ao topo do Everest. Ou dos Beatles, que fizeram uma musica diferente e se vestiram como pessoas totalmente fora de da epoca. Todas estas pessoas — e milhares de outras — tambem viviam no seu mundo.

«Esta demente esta dizendo coisas que fazem sentido», pensou Veronika, lembrando-se de historias que sua mae contava, sobre santos que garantiam falar com Jesus ou a Virgem Maria. Viviam num mundo a parte?

— Ja vi uma mulher com um vestido vermelho decotado, os olhos vidrados, andando pelas ruas de Lubljana — quando o termometro marcava 5o abaixo de zero. Achei que ela estava bebada e fui ajuda-la, mas ela recusou o meu casaco.

— Talvez, em seu mundo, fosse verao; e seu corpo

estivesse quente pelo desejo de alguem que a esperava. Mesmo que esta outra pessoa existisse apenas em seu delirio, ela tem o direito de viver e morrer como quiser, nao acha?

Veronika nao sabia o que dizer, mas as palavras daquela louca faziam sentido. Quem sabe, nao era ela a mulher que vira seminua nas ruas de Lubljana?

— Vou lhe contar uma historia — disse Zedka. — Um

poderoso feiticeiro, querendo destruir um reino, colocou uma pocao magica no poco onde todos os seus habitantes bebiam. Quem tomasse aquela agua, ficaria louco.

«Na manha seguinte, a populacao inteira bebeu, e todos enlouqueceram, menos o rei — que tinha um poco so para si e sua familia, onde o feiticeiro nao conseguira entrar. Preocupado, ele tentou controlar a populacao, baixando uma serie de medidas de seguranca e saude publica: mas os policiais e inspetores haviam bebido a agua envenenada, e acharam um absurdo as decisoes do rei, resolvendo nao respeita-las de jeito nenhum.

«Quando os habitantes daquele reino tomaram

conhecimento dos decretos, ficaram convencidos de que o soberano enlouquecera, e agora estava escrevendo coisas sem sentido. Aos gritos, foram ate o castelo e exigiram que renunciasse.

«Desesperado, o rei prontificou-se a deixar o trono, mas a rainha o impediu, dizendo: «vamos agora ate a fonte, e beberemos tambem. Assim, ficaremos iguais a eles.»

«E assim foi feito: o rei e a rainha beberam a agua da loucura, e comecaram imediatamente a dizer coisas sem sentido. Na mesma hora, os seus suditos se arrependeram: agora que o rei estava mostrando tanta sabedoria, por que nao deixa-lo governando o pais?

«O pais continuou em calma, embora seus habitantes se comportassem de maneira muito diferente de seus vizinhos. E o rei pode governar ate o final dos seus dias.»

Veronika riu.

— Voce nao parece louca — disse.

— Mas sou, embora esteja sendo curada, porque o meu caso e simples: basta recolocar no organismo uma determinada substancia quimica. Entretanto, espero que esta substancia resolva apenas o meu problema de depressao cronica; quero continuar louca, vivendo minha vida da maneira que sonho, e nao da maneira que os outros desejam. Sabe o que existe la fora, alem dos muros de Villete?

— Gente que bebeu do mesmo poco.

— Exatamente — disse Zedka. — Acham que sao normais, porque todos fazem a mesma coisa. Vou fingir que tambem bebi daquela agua.

— Pois eu bebi, e e este, justamente, o meu problema. Nunca tive depressao, nem grandes alegrias, ou tristezas que durassem muito. Meus problemas sao iguais aos de todo mundo.

Zedka ficou algum tempo em silencio.

— Voce vai morrer, nos disseram.

Veronika hesitou um instante: podia confiar naquela estranha? Mas precisava arriscar.

— So daqui ha cinco, seis dias. Fico pensando se existe um meio de morrer antes. Se voce, ou alguem aqui dentro conseguisse arranjar novos comprimidos, tenho certeza de que meu coracao nao aguentaria desta vez. Entenda o quanto estou sofrendo por ter que ficar esperando a morte, e me ajude.

Antes que Zedka pudesse responder, a enfermeira apareceu com uma injecao.

— Posso aplica-la eu mesma — disse. — Mas, dependendo de sua vontade, posso pedir aos guardas la fora que me ajudem.

— Nao gaste sua energia a toa — disse Zedka para Veronika. — Poupe suas forcas, se quiser conseguir o que me pede.

Veronika levantou-se, voltou a sua cama, e deixou que a enfermeira cumprisse sua tarefa.

Foi seu primeiro dia normal num asilo de loucos. Saiu da enfermaria, tomou cafe no grande refeitorio onde homens e mulheres comiam juntos. Reparou que, ao contrario do que mostravam nos filmes — escandalos, gritarias, pessoas fazendo gestos demenciais — tudo parecia envolto numa aura de silencio opressivo; parecia que ninguem desejava repartir seu mundo interior com estranhos.

Depois do cafe (razoavel , nao se podia culpar as refeicoes pela pessima fama de Villete) — sairam todos para um banho de sol. Na verdade, nao havia sol algum — a temperatura estava abaixo de zero, e o jardim encontrava-se coberto de neve.

— Nao estou aqui para conservar minha vida, mas para perde-la — disse Veronika a um dos enfermeiros.

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