— Mesmo assim, precisa sair para o banho de sol.

— Voces e que sao sao loucos: nao ha sol!

— Mas ha luz, e ela ajuda a acalmar os internos. Infelizmente nosso inverno dura muito; se nao fosse assim, teriamos menos trabalho.

Era inutil discutir: saiu, caminhou um pouco, olhando tudo a sua volta, e procurando disfarcadamente uma maneira de fugir. O muro era alto, como exigiam os construtores de quarteis antigos, mas as guaritas para sentinelas estavam desertas. O jardim era contornado por predios de aparencia militar, que hoje abrigavam enfermarias masculinas, femininas, os escritorios de administracao, e as dependencias dos empregados. Ao final de uma primeira e rapida inspecao, notou que o unico lugar realmente vigiado era o portao principal, onde todos que entravam e saiam tinham suas identidades verificadas por dois guardas.

Tudo parecia estar voltando ao lugar no seu cerebro. Para fazer um exercicio de memoria, comecou a tentar lembrar-se de pequenas coisas — como o lugar onde deixava a chave do seu quarto, o disco que acabara de comprar, o mais recente pedido que lhe fizeram na biblioteca.

— Sou Zedka — disse uma mulher, se aproximando.

Na noite anterior, nao pudera ver seu rosto — estivera agachada ao lado da cama todo o tempo da conversa. Ela devia ter aproximadamente 35 anos, e parecia absolutamente normal.

— Espero que a injecao nao tenha causado muito problema. Com o tempo o organismo se acostuma, e os calmantes perdem o efeito.

— Estou bem.

— Aquela nossa conversa ontem a noite...o que voce me pediu, lembra?

— Perfeitamente.

Zedka pegou-a por um braco, e comecaram a caminhar juntas, por entre as muitas arvores sem folhas do patio. Alem dos muros, podia-se ver as montanhas desaparecendo nas nuvens.

— Esta frio, mas e uma bonita manha — disse Zedka. — E curioso, mas minha depressao nunca aparecia em dias como este, nublado, cinzento, frio. Quando o tempo estava assim, eu sentia que a natureza estava de acordo comigo, mostrava minha alma. Por outro lado, quando aparecia o sol, as criancas comecavam a brincar nas ruas, e todos estavam contentes com a beleza do dia, eu me sentia pessima. Como se fosse injusto que toda aquela exuberancia se mostrasse, e eu nao pudesse participar.

Com delicadeza, Veronika soltou-se do braco da mulher. Nao gostava de contatos fisicos.

— Voce interrompeu sua frase. Voce estava falando do meu pedido.

— Tem um grupo aqui dentro. Sao homens e mulheres que ja podiam ter alta, estar em casa — mas nao querem sair. As razoes para isto sao muitas: Villete nao e tao mal como dizem, embora esteja longe de ser um hotel de cinco estrelas. Aqui dentro, todos podem dizer o que pensam, fazer o que desejam, sem ouvir qualquer tipo de critica: afinal de contas, estao em um hospicio. Entao, na hora das inspecoes do governo, estes homens e mulheres comportam-se como se estivessem num grau de insanidade perigosa, ja que alguns deles estao aqui as custas do Estado. Os medicos sabem disso, mas parece que existe uma ordem dos donos, deixando que esta situacao permaneca como esta — ja que existem mais vagas do que doentes.

— Eles podem arranjar os comprimidos?

— Procure entrar em contacto com eles; chamam seu grupo de A Fraternidade.

Zedka apontou para uma mulher com cabelos brancos, que conversava animadamente com outras mulheres mais jovens.

— Seu nome e Mari, e ela e da Fraternidade. Pergunte a ela.

Veronika comecou a andar na direcao de Mari, mas Zedka a interrompeu:

— Agora nao: ela esta se divertindo. Nao ira interromper o que lhe da prazer, so para ser simpatica com uma estranha.Se ela reagir mal, voce nunca mais voce tera uma chance de aproximar-se. Os loucos sempre acreditam na primeira impressao.

Veronika riu com a entonacao que Zedka dera para a palavra loucos. Mas ficou inquieta, porque aquilo tudo estava parecendo normal, bom demais. Depois de tantos anos indo do trabalho para o bar, do bar para a cama de um namorado, da cama para o quarto, do quarto para a casa da mae — agora ela estava vivendo uma experiencia com a qual nunca sonhara: o asilo, a loucura, o hospicio. Onde as pessoas nao sentiam vergonha de confessar-se loucas. Onde ninguem interrompia o que gostava, so para ser simpatico com os outros.

Comecou a duvidar se Zedka estava falando serio, ou se era uma maneira que os doentes mentais adotam para fingir que vivem num mundo melhor que os outros. Mas que importancia tinha isso? Estava vivendo algo interessante, diferente, jamais esperado: imagine um lugar onde as pessoas se fingem de loucas, para fazer exatamente o que querem?

Neste exato momento, o coracao de Veronika deu uma pontada. A conversa com o medico voltou imediatamente ao seu pensamento, e ela se assustou.

— Quero andar sozinha — disse para Zedka. Afinal de contas, era tambem uma louca, e nao precisava ficar querendo agradar ninguem.

A mulher se afastou, e Veronika ficou contemplando as montanhas alem dos muros de Villete. Uma leve vontade de viver pareceu surgir, mas Veronika a afastou com determinacao.

«Preciso arranjar logo os comprimidos».

Refletiu sobre sua situacao ali; estava longe de ser a ideal. Mesmo que lhe dessem a possibilidade de viver todas as loucuras que tinha vontade, nao saberia o que fazer.

Nunca tivera nenhuma loucura.

Depois de algum tempo no jardim, foram ate o refeitorio e almocaram. Em seguida, os enfermeiros conduziram homens e mulheres ate uma gigantesca sala de estar, com muitos ambientes -mesas, cadeiras, sofas, um piano, uma televisao, e amplas janelas de onde se podia ver o ceu cinzento e as nuvens baixas. Nenhuma delas tinha grades, porque a sala dava para o jardim. As portas estavam fechadas por causa do frio, mas bastava girar a macaneta, e poderia sair para caminhar de novo entre as arvores.

A maior parte das pessoas foi para a frente da

televisao. Outros olhavam o vazio, alguns conversavam em voz baixa consigo mesmo — mas quem nao fizera isso em algum momento de sua vida? Veronika reparou que a mulher mais velha, Mari, estava agora junto a um grupo maior, num dos cantos da gigantesca sala. Alguns dos internos passeavam ali perto, e Veronika tentou juntou-se a eles: queria escutar o que estavam dizendo.

Procurou disfarcar ao maximo suas intencoes. Mas quando chegou perto, eles se calaram e — todos juntos — olharam para ela.

— O que voce quer? — disse um senhor idoso, que

parecia ser o lider da Fraternidade (se e que tal grupo realmente existia, e Zedka nao era mais louca do que aparentava).

— Nada, So estava passando.

Todos se entreolharam, e fizeram alguns gestos

demenciais com a cabeca. Um comentou com o outro: «ela so estava passando!» Outro repetiu, em voz mais alta, e — em pouco tempo -todos comecaram a gritar a mesma frase.

Veronika nao sabia o que fazer, e ficou paralisada de medo. Um enfermeiro, forte e mal encarado, veio saber o que estava acontecendo.

— Nada — respondeu um do grupo. — Ela so estava passando. Esta parada ai, mas vai continuar a passar!

O grupo inteiro caiu na gargalhada. Veronika assumiu um ar ironico, sorriu, deu meia-volta e afastou-se, para que ninguem notasse que seus olhos se enchiam de lagrimas. Saiu direto para o jardim, sem agasalho. Um enfermeiro tentou convence-la a voltar, mas logo apareceu outro, que sussurrou algo — e os dois a deixaram em paz, no frio. Nao adiantava cuidar da saude de uma pessoa condenada.

Estava confusa, tensa, irritada consigo mesma. Jamais se deixara levar por provocacoes; aprendera desde cedo que era preciso manter o ar frio, distante, sempre que uma nova situacao que se apresentasse. Aqueles loucos, entretanto, tinham conseguido fazer com que tivesse vergonha, medo, raiva, vontade de mata-los, de feri- los com palavras que nao ousara dizer.

Talvez os comprimidos — ou o tratamento para tira-la da coma — a tivessem transformado numa mulher fragil, incapaz de reagir por si mesma. Ja enfrentara situacoes muito piores na sua adolescencia, e, pela primeira vez, nao conseguira controlar o choro! Precisava voltar a ser quem era, saber reagir com ironia, fingir que as

Вы читаете Veronika decide morrer
Добавить отзыв
ВСЕ ОТЗЫВЫ О КНИГЕ В ИЗБРАННОЕ

0

Вы можете отметить интересные вам фрагменты текста, которые будут доступны по уникальной ссылке в адресной строке браузера.

Отметить Добавить цитату