— Sei disso — respondeu Mari. — Ja conversamos a
respeito muitas vezes. E sei tambem onde voce quer chegar: e hora de sair.
Eduard olhou o ceu; sera que ela sentia o mesmo?
— E e por causa da garota — continuou Mari. — Ja vimos muita gente morrer aqui dentro, sempre no momento em que nao esperavam, e geralmente depois de terem desistido da vida. Mas esta e a primeira vez que isso acontece com uma pessoa jovem, bonita, saudavel — com tanta coisa pela frente para viver.
«Veronika e a unica que nao desejaria continuar em Villete para sempre. E isto nos fez perguntar: e nos? O que procuramos aqui?»
Ele fez um sinal afirmativo com a cabeca.
— Entao, ontem a noite, eu tambem me perguntei o que estava fazendo neste sanatorio. E achei que seria muito mais interessante estar na praca, nas Tres Pontes, no mercado em frente ao teatro — comprando macas e discutindo o tempo. Claro que estaria lidando com coisas ja esquecidas — como contas a pagar, dificuldades com os vizinhos, olhar ironico de gente que nao me compreende, solidao, reclamacoes de meus filhos. Mas penso que isso tudo faz parte da vida, e o preco de enfrentar estes pequenos problemas e bem menor que o preco de nao reconhece-los como nosso.
«Estou pensando em ir a casa de meu ex-marido hoje, so para dizer «obrigado». O que voce acha?
— Nada. Sera que devia ir ate a casa dos meus pais, e dizer o mesmo?
— Talvez. No fundo, a culpa de tudo que acontece em nossa vida e exclusivamente nossa. Muitas pessoas passaram pelas mesmas dificuldades que passamos, e reagiram de maneira diferente. Nos procuramos o mais facil: uma realidade separada.
Eduard sabia que Mari tinha razao.
— Estou com vontade de recomecar a viver, Eduard. Cometendo os erros que sempre desejei e nunca tive coragem. Enfrentando o panico que pode voltar a surgir, mas cuja presenca apenas me dara cansaco, porque sei que nao vou morrer ou desmaiar por causa dele. Posso arranjar novos amigos, e ensina-los a serem loucos, para que sejam sabios. Direi que nao sigam o manual do bom comportamento, descubram suas proprias vidas, desejos, aventuras, e VIVAM! Citarei o Eclesiastes para os catolicos, o Corao para os islamicos,a Torah para os judeus, os textos de Aristoteles para os ateus. Nunca mais quero ser advogada, mas posso usar minha experiencia para dar conferencias sobre homens e mulheres que conheceram a verdade desta existencia, e cujos escritos podem ser resumidos em uma unica palavra: «Vivam». Se voce viver, Deus vivera com voce. Se voce se recusar a correr seus riscos, Ele retornara ao distante Ceu, e sera apenas um tema de especulacao filosofica.
«Todo mundo sabe disso. Mas ninguem da o primeiro passo. Talvez por medo de ser chamado de louco. E, pelo menos, este medo nos nao temos, Eduard. Ja passamos por Villete.
— So nao podemos ser candidatos a Presidencia da Republica. A oposicao ia explorar muito o nosso passado.
Mari riu e concordou.
— Cansei desta vida. Nao sei se vou conseguir superar meu medo, mas estou farta da Fraternidade, deste jardim, de Villete, de fingir que sou louca.
— Se eu fizer isso, voce faz?
— Voce nao fara isso.
— Quase fiz, ha alguns minutos atras.
— Nao sei. Cansei disso tudo, mas ja estou acostumada.
— Quando entrei aqui, com diagnostico de esquizofrenia, voce passou dias, meses, me dando atencao e me tratando como um ser humano. Eu tambem estava me acostumando com a vida que decidira levar, com a outra realidade que criei, mas voce nao deixou. Eu a odiei, e hoje a amo. Quero que voce saia de Villete, Mari, como eu sai do meu mundo separado.
Mari afastou-se sem dar resposta.
Na pequena — e nunca frequentada — biblioteca de Villete, Eduard nao achou o Corao, nem Aristoteles, nem outros filosofos que Mari se referira. Mas ali estava o texto de um poeta:
«Por isso disse para mim mesmo: «a sorte do insensato sera tambem a minha».
«Vai, come teu pao com alegria,
e bebe gostosamente o teu vinho
porque Deus ja aceitou tuas obras.
Que tuas vestes sejam brancas todo o tempo,
e nunca falte perfume em tua cabeca.
Desfruta a vida com a mulher amada
em todos os teus dias de vaidade que Deus
te concedeu debaixo do sol.
Porque esta e tua porcao na vida
e no trabalho que te afadigas debaixo do sol.
Segue os caminhos do teu coracao
e o desejo dos teus olhos,
sabendo que Deus te pedira contas».
— Deus pedira contas no final — disse Eduard em voz alta E eu direi: «por algum tempo da minha vida fiquei olhando o
vento, me esqueci de semear, nao desfrutei meus dias, nem sequer bebi o vinho que me era oferecido. Mas um dia me julguei pronto, e voltei ao meu trabalho. Contei aos homens as minhas Visoes do Paraiso, como Bosch, Van Gogh, Wagner, Beethoven, Einstein, e outros loucos fizeram antes de mim. Bom, Ele dira que eu sai do hospicio para nao ver uma menina morrendo, mas ela estara la no ceu, e intercedera por mim.
— O que voce esta dizendo? interrompeu o encarregado da biblioteca.
— Quero sair de Villete agora— respondeu Eduard, num tom de voz mais alto do que o normal. — Tenho o que fazer.
O empregado apertou uma campainha, e em pouco tempo dois enfermeiros apareceram.
— Quero sair — repetiu Eduard, agitado. — Estou bem, deixe-me falar com o Dr. Igor.
Mas os dois homens ja o tinham agarrado, um por cada braco. Eduard tentava soltar-se dos bracos dos enfermeiros, mesmo sabendo que era inutil.
— Voce esta tendo uma crise, fique tranquilo — disse um deles. — Vamos cuidar disso.
Eduard comecou a debater-se.
— Deixem-me falar com o Dr. Igor. Tenho muito o que dizer a ele, tenho certeza que vai entender!
Os homens ja o arrastavam para a enfermaria.
— Soltem-me! — gritava. — Deixem-me falar pelo menos um minuto!
O caminho para a enfermaria passava pelo meio da sala de estar, e todos os outros internos estavam ali reunidos. Eduard debatia-se, e o ambiente comecou a ficar agitado.
— Deixe-o livre! Ele e louco!
Alguns riam, outros batiam com as maos nas mesas e cadeiras.
— Isto e um hospicio! Ninguem e obrigado a se comportar como voces!
Um dos homens sussurrou para o outro:
— Precisamos assusta-los, ou daqui a pouco a situacao se tornara incontrolavel.
— So ha um jeito.
— Dr. Igor nao vai gostar.
— Sera pior ver este bando de maniacos quebrando seu sanatorio adorado.
Veronika acordou sobressaltada, suando frio. O barulho la fora era grande, e ela precisava de silencio para continuar a dormir. Mas a barulheira continuava.
Levantou-se meia tonta, e caminhou ate a sala de estar, a tempo de ver Eduard sendo arrastado, enquanto outros enfermeiros chegavam as pressas com seringas preparadas.
— O que voces estao fazendo? gritou.
— Veronika!
O esquizofrenico tinha falado com ela! Tinha dito o seu nome! Numa mistura de vergonha e surpresa, tentou aproximar-se, mas um dos enfermeiros a impediu.