venezuelanas.
Essa colonia de trabalhos forcados e a coisa mais dura que ja vi em toda a minha vida, a mais selvagem e a mais desumana, onde as bordoadas chovem constantemente sobre os presos. E um quadrado de apenas 150 metros de lado, cercado por fios de arame farpado. Cerca de quatrocentos homens dormem ali ao relento, pois nao ha mais que algumas folhas de zinco servindo de abrigo em volta do campo.
Sem que nos tenham dado qualquer palavra de explicacao, sem justificarem essa decisao, somos incorporados ao presidio de El Dorado as 3 horas da tarde, quando ali chegamos, esgotados pela viagem, sempre acorrentados no caminhao. As 3 e meia, sem que se faca a chamada ou o registro dos nossos nomes, os guardas acenam para nos e entregam uma pa para dois de nos e uma picareta para os outros tres. Cercados por cinco soldados, de fuzil e nervo de boi na mao, comandados por um cabo de esquadra, somos levados, sob ameaca de pancadas, ao local de trabalho. Compreendemos logo que e uma especie de demonstracao de forca, encenada pela guarda dessa penitenciaria. Seria perigosissimo nao obedecermos, no momento. Mais tarde, veremos o que se pode fazer.
Chegando ao lugar onde os sentenciados estao trabalhando, mandam-nos abrir uma trincheira ao lado da estrada que estao construindo na floresta virgem. Obedecemos sem dizer palavra e trabalhamos sem levantar a cabeca, cada um de acordo com sua capacidade. Isso nao nos impede de ouvir os insultos e as pancadas selvagens que os demais prisioneiros recebem a todo momento. Nenhum do nosso grupo recebe uma so chicotada. Essa sessao de trabalho forcado, que nos proporcionaram logo apos a nossa chegada, era sobretudo destinada a nos fazer ver como sao tratados os prisioneiros.
Era um sabado. Depois do trabalho, cobertos de suor e de poeira, fomos incorporados a esse campo de prisioneiros, sem o menor registro ou formalidade.
– Os cinco caienenses, por aqui – e o cabo dos presos que esta falando. E um mestico de 1 metro e 90 de altura. Tem o seu nervo de boi na mao. Esse imundo brutamontes e o encarregado da disciplina no recinto do campo.
Indicaram-nos o lugar onde devemos pendurar as redes, perto da porta de entrada do campo, ao ar livre. Mas ali, pelo menos, ha um teto de folhas de zinco e, assim, estaremos mais ou menos abrigados da chuva e do sol.
A grande maioria dos prisioneiros e colombiana e os restantes sao venezuelanos. Nenhum dos campos disciplinares das penitenciarias francesas pode se comparar com o horror desta colonia de trabalho. Um burro morreria com os maus-tratos suportados por esses homens. Contudo, quase todos aparentam saude, porque ha uma coisa: a alimentacao destinada aos sentenciados, aqui, e muito farta e apetitosa.
Nosso grupo reune-se num pequeno conselho de guerra. Se um de nos for espancado por um soldado, o melhor a fazer e parar de trabalhar, debrucar-se no chao e, seja qual for o tratamento infligido, nao se levantar. De qualquer maneira, tera que aparecer uma autoridade, a qual poderemos perguntar como e por que estamos neste campo de trabalhos forcados sem ter cometido qualquer delito. Os dois libertos, Guittou e Barriere, dizem que vao pedir para serem devolvidos a Franca. A seguir, decidimos chamar o cabo dos presos. Sou eu que devo falar com ele. Ele e chamado de “Negro Blanco”. Guittou vai procura-lo. O carrasco chega, sempre de chicote na mao. Nos cinco, franceses, colocamo-nos em circulo em volta dele.
Sou eu quem toma a palavra:
– Queremos dizer a voce umas poucas palavras: comprometemo-nos a nao cometer jamais qualquer infracao ao regulamento, assim voce nao tera motivo para esbordoar qualquer um de nos. Mas, como reparamos que voce agride qualquer um sem o menor motivo, nos chamamos voce para avisar que, no dia que voce espancar um de nos, e um homem morto. Esta entendido?
– Sim – diz o Negro Blanco.
– Mais uma advertencia.
– O que e? – diz ele, com voz rouca.
– Se voce tiver que repetir o que acabamos de dizer, diga isso a um oficial e nao a um soldado.
– Esta entendido – e ele se retira.
Esta cena se passa no domingo, dia de folga dos presos. Aparece um sujeito cheio de galoes.
– Como e que voce se chama? – diz ele para mim.
– Papillon.
– E voce o chefe dos caienenses?
– Somos cinco e todos sao chefes.
– Por que foi voce que tomou a palavra para falar com o cabo dos presos?
– Porque sou eu quem fala melhor espanhol.
Agora e um capitao da guarda nacional que fala comigo. Diz que nao e ele o comandante da guarda. Ha dois chefes mais graduados que ele, mas nao estao aqui. Desde que chegamos, e ele quem esta no comando. Os dois mais graduados chegarao terca-feira.
– Voce ameacou, em seu nome e no dos seus companheiros, matar o cabo dos presos se ele batesse num de voces. E verdade?
– E verdade, e voces tem que nos levar a serio. Mas tambem disse a ele que nao dariamos qualquer pretexto para justificar um castigo corporal. O senhor sabe, capitao, que nenhum tribunal nos condenou, pois nao cometemos nenhum delito na Venezuela.
– Nada sei a respeito. Voces chegaram no campo sem qualquer papel, apenas com uma nota do diretor que esta na aldeia: “Por esses homens para trabalhar assim que chegarem”.
– Pois, senhor capitao, ja que e militar, deve ser bastante justo para, enquanto aguarda a chegada dos chefes, dar ordem aos soldados para nos darem um tratamento diferente do que dao aos outros presos. Afirmo mais uma vez que nao somos nem podemos ser condenados, porque nao cometemos nenhum delito na Venezuela.
– Vou dar ordens nesse sentido. Espero que nao tenham me enganado.
Tenho tempo de observar os presos toda a tarde desse primeiro domingo. A primeira coisa que me espanta e que todos estao bem de saude. Em segundo lugar, as pancadas se tornaram tao rotineiras, que eles se acostumaram com elas; hoje, por exemplo, domingo, dia de descanso, em que poderiam facilmente evitar as bordoadas comportando-se bem, parece que eles encontram um prazer masoquista em brincar com o fogo. Nao param de fazer coisas proibidas: jogar dados, ter contato sexual com uns jovens nas privadas, roubar um companheiro, dizer obscenidades as mulheres que vem da aldeia trazer doces ou cigarros aos presos. Elas tambem fazem trocas. Uma cesta trancada, um objeto esculpido, por algum dinheiro ou pacotes de cigarros. Pois bem, ha alguns presos que dao um jeito de pegar atraves do arame farpado aquilo que a mulher oferece para vender e saem correndo sem lhe entregar o objeto negociado, escondendo-se no meio dos outros. Conclusao: os castigos corporais sao aplicados tao indiscriminadamente e por motivos futeis, que o couro dos presos esta completamente curtido pelos chicotes; reina o terror no campo de concentracao, sem qualquer beneficio para a ordem ou a sociedade, e a brutalidade de nada serve para reeducar esses desgracados.
Contudo, a reclusao na Ilha de Saint-Joseph, com o seu silencio obrigatorio, e bem mais terrivel do que isto. Aqui, o medo e momentaneo e o fato de poder conversar a noite, fora das horas de trabalho, bem como a alimentacao, rica e abundante, permitem que um homem chegue ao fim da sua pena, que em nenhum caso pode ultrapassar cinco anos.
Passamos o domingo fumando e tomando cafe, sempre conversando so entre nos. Alguns colombianos se aproximam, mas nos os afastamos, com boas maneiras porem com firmeza. E preciso que nos considerem prisioneiros a parte, do contrario estamos fritos.
No dia seguinte, segunda-feira, as 6 horas, depois de haver comido fartamente, vamos para o trabalho com os outros. Eis como se prepara o trabalho: duas fileiras de homens, frente a frente, cinquenta prisioneiros, cinquenta soldados. Um soldado para cada preso. Entre cada fileira, cinquenta ferramentas: picaretas, pas ou machados. As duas filas de homens se observam: os prisioneiros, angustiados, e os soldados, nervosos e sadicos.
O sargento grita: “Fulano, picareta!”
O desgracado se abaixa as pressas e, no momento em que agarra a picareta para lanca-la ao ombro e partir correndo para o trabalho, o sargento grita: “Numero”, o que equivale a dizer: “Soldado, um, dois, etc.” O soldado pula atras do coitado e’ o acoita com seu nervo de boi. Essa cena horrorosa repete-se duas vezes por dia. No caminho entre o campo e o local de trabalho, a gente tem a impressao de que sao tropeiros, tocando seus burros a chicote.
Estavamos gelados de pavor e apreensivos, aguardando a nossa vez. Felizmente, conosco foi diferente.
– Os cinco caienenses, por aqui! Os mais mocos peguem estas picaretas e voces, os mais velhos, estas duas pas.
Sem correr mas em marcha batida, vigiados por quatro soldados e um cabo, vamos para o campo de trabalho, uma clareira na floresta. Esta jornada foi mais longa e mais desesperadora que a primeira. Alguns homens especialmente manjados, no limite das suas forcas, gritavam como loucos e imploravam de joelhos que nao lhes batessem mais. A tarde, deviam limpar os restos de uma queimada, juntando numa so pilha os tocos e os galhos ainda fumegantes. Outros deviam rocar atras deles. E, assim, umas oitenta ou cem fogueiras ja quase consumidas deviam se transformar num unico braseiro no centro do campo. A golpes de nervo de boi, cada soldado espancava seu prisioneiro para que recolhesse os residuos e os levasse correndo para o meio da area. Essa corrida diabolica provocava em alguns deles verdadeira crise de loucura e, na sua precipitacao, eles agarravam as vezes os galhos pelas pontas ainda em brasa. As maos queimadas, estupidamente acoitados, pisando descalcos sobre galhos ou brasas ainda fumegantes, essa fantastica cena durou tres horas. Nenhum de nos foi convidado a participar da limpeza dessa clareira recem-desmoitada. Foi melhor assim, porque haviamos decidido, trocando curtas frases, sem levantar a cabeca, enquanto trabalhavamos na enxada, que saltariamos sobre os cinco pracas, inclusive os cabos, que os desarmariamos e dariamos tiros nessa sucia de brutos.
Hoje, terca-feira, nao saimos para o trabalho. Fomos chamados ao escritorio dos dois majores da guarda nacional. Os dois oficiais estao muito surpresos por estarmos em El Dorado sem qualquer documento que comprove a decisao de algum tribunal. De qualquer maneira, eles nos prometem pedir amanha explicacoes ao diretor da colonia penal.
Nao demorou muito. Esses dois majores da guarda da penitenciaria sao certamente muito severos, pode-se mesmo dizer que exageram na repressao, mas sao corretos, pois exigiram que o diretor da colonia viesse pessoalmente nos dar explicacoes.
Aqui esta ele, diante de nos, acompanhado pelo seu cunhado, Russian, e pelos dois oficiais da guarda nacional.
– Franceses, eu sou o diretor da colonia de El Dorado. Voces quiseram falar comigo. Que desejam?
– Em primeiro lugar, qual foi o tribunal que, sem nos ouvir, nos condenou a cumprir uma pena nesta colonia de trabalhos forcados? Por quanto tempo e por qual delito? Chegamos por mar a Irapa, na Venezuela. Nao cometemos o menor delito. Entao, o que estamos fazendo aqui? E como se justifica que sejamos obrigados a trabalhar?
– Em primeiro lugar, estamos em guerra. Portanto, precisamos saber exatamente quem voces sao.
– Muito bem, mas isto nao justifica a nossa incorporacao neste presidio.
– Voces sao fugitivos da justica francesa. Por isso, precisamos saber se voces estao sendo reclamados por ela.
– Certo; mas volto a insistir: por que nos trata como se tivessemos uma pena a cumprir?
– Por enquanto, voces estao aqui devido a uma lei sobre vagabundos e meliantes; voces estao aqui em deposito, aguardando esclarecimentos e