– Sim, Papillon, vou po-lo em liberdade amanha, mas gostaria que voce levasse consigo o pobre Picolino, por quem tanto interesse tem demonstrado. Ele nao possui qualquer identidade, mas vou conseguir uma carteira para ele. Quanto a voce, aqui esta uma carteira de identidade, perfeitamente em ordem e com seu nome verdadeiro. As condicoes sao as seguintes: voce tem que viver numa cidadezinha do interior durante um ano, antes de poder se estabelecer numa grande cidade. Sera uma especie de liberdade provisoria, nao vigiada, mas que nos permitira ver voce viver e observar a maneira como voce se defende na vida. Se no fim de um ano, como acredito, o chefe civil da localidade lhe der um atestado de boa conduta, entao ele proprio dara fim ao seu confinamiento. Creio que Caracas sera para voce a cidade ideal. De qualquer maneira, voce esta autorizado a viver legalmente neste pais. Seu passado, para nos, nao interessa. Fica a seu cargo demonstrar que voce esta a altura da oportunidade que lhe damos de se transformar em homem respeitavel. Espero que, antes de cinco anos, voce se tornara meu patricio, mediante uma naturalizacao que lhe dara nova patria. Que Deus o acompanhe! Obrigado por concordar em tomar conta desse destroco que e o Picolino. So posso liberta-lo se alguem assumir por escrito a responsabilidade de tratar dele. Esperemos que num hospital ele consiga ficar bom.

E amanha as 7 horas que vou poder sair em plena liberdade, na companhia de Picolino. Uma onda de calor invade meu coracao; finalmente, deixei para sempre o caminho da podridao. Estamos em agosto de 1944. Ha treze anos que estou esperando este dia.

Quis ficar sozinho na minha casinha da horta. Pedi desculpas aos meus companheiros, preciso estar so. A emocao e muito forte e muito bela para que eu a possa mostrar aos outros. Viro e reviro nas maos a carteira de identidade que me foi entregue pelo diretor: minha fotografia no canto esquerdo, em cima o numero 1 728 629, emitida em 3 de julho de 1944. Bem no centro, meu sobrenome; embaixo, meu nome de batismo. Atras, a data do nascimento, 16 de novembro de 1906. O documento de identidade esta perfeitamente em ordem; esta mesmo assinada e carimbada pelo diretor da Identificacao. Minha situacao na Venezuela: “Residente”. E formidavel, essa palavra “residente” significa que sou domiciliado na Venezuela. Meu coracao bate descontroladamente. Gostaria de me por de joelhos e agradecer a Deus, mas nao sei rezar e nao fui batizado. A que Deus vou me dirigir se nao pertenco a nenhuma religiao? Ao bom Deus dos catolicos? dos protestantes? dos judeus? dos muculmanos? Qual deles vou escolher para lhe dedicar a oracao que vou ser obrigado a inventar em todas as palavras, ja que nao sei nenhuma oracao completa? Mas por que procuro hoje o Deus a quem me dirigir? Pois em toda a minha vida, quando o chamei ou o amaldicoei, nao pensei nesse Deus menino Jesus em sua manjedoura, ao lado do boi e do burro? Sera que no meu subconsciente ainda guardo rancor as boas freiras da Colombia? E. entao, por que nao pensar somente no unico, no sublime bispo de Curacau, Dom Irenee de Bruyne, ou, ainda mais longe, no bom padre da Conciergerie?

Amanha estarei livre, completamente livre. Dentro de cinco anos serei venezuelano naturalizado, pois estou certo de nao cometer nenhuma falta nesta terra que me deu asilo e me renovou a confianca. Preciso ser, na vida, duas vezes mais honesto que qualquer um.

De fato, se sou inocente do homicidio de que me acusaram, e pelo qual um promotor, alguns tiras e doze jurados cretinos me despacharam para os duros, isto so pode acontecer porque eu era um vagabundo, um marginal. Foi porque eu era um aventureiro que puderam facilmente tecer em torno de mim aquele amontoado de mentiras. Abrir os cofres dos outros nao e profissao muito recomendavel e a sociedade tem o direito e o dever de se defender. Se fui lancado, finalmente, no caminho da podridao foi porque, devo reconhece-lo honestamente, eu era candidato permanente a ser para la enviado algum dia. Se o castigo nao foi digno de um pais como a Franca, se uma sociedade tem o dever de se defender, mas nao de se vingar tao sordidamente, isso e outra questao. Meu passado nao pode ser apagado com uma simples esfregadela de esponja, preciso me reabilitar aos meus proprios olhos e, a seguir, aos olhos dos outros. Agradeca portanto, Papi, ao bom Deus dos catolicos, prometa-lhe fazer algo muito importante.

– Meu Deus, perdoe se nao sei rezar, mas olhe dentro de mim e vera que nao tenho palavras bastantes para expressar minha gratidao por voce ter me conduzido ate aqui. A luta foi dura, a subida desse calvario que me foi imposto pelos homens nao foi facil e, por certo, se consegui ultrapassar todos os obstaculos e continuar a viver com saude ate este dia bendito, foi porque voce tinha a mao sobre mim para me ajudar e proteger. Que posso fazer para provar que estou sinceramente agradecido pela sua bondade?

– Renunciar a vinganca.

Sera que ouvi, ou pensei ter ouvido essa frase? Nao sei, mas ela me atingiu tao brutalmente (como se fosse uma bofetada), que quase acredito que a escutei realmente.

– Oh, nao! Isso nao! Nao me peca isso. Essa gente me fez sofrer demais. Como e que voce quer que eu perdoe os tiras corruptos, a falsa testemunha, Polein? Como vou desistir de arrancar a lingua do promotor desumano? Nao e possivel. Voce esta pedindo muita coisa. Nao, nao e nao! Sinto muito contraria-lo, mas por preco nenhum deixarei de executar minha vinganca.

Saio, tenho medo de fraquejar, nao quero abdicar. Dou alguns passos na minha horta. Toto esta arranjando as hastes de feijao para que subam e se enrolem nas estacas. Os tres se aproximam de mim: Toto, o parisiense esperancoso das “bocas do lixo” da Rua de Lappe, Antartaglia, batedor de carteira, nascido na Corsega, mas que durante muitos anos “aliviou” os bolsos dos parisienses, e Deplanque, natural de Dijon, que matou um cafetao seu colega. Olham para mim, seus rostos mostram alegria pela minha liberdade. Logo sera a vez deles, decerto.

– Voce nao trouxe da aldeia uma garrafa de vinho ou de rum para festejar a partida?

– Me desculpem, mas eu estava tao emocionado, que nem pensei nisso. Me perdoem o esquecimento.

– Mas nao, nada temos a perdoar, vou fazer um bom cafe – diz Toto.

– Voce esta contente, Papi, porque voce esta definitivamente livre depois de tantos anos de luta. Estamos felizes por voce.

– Espero que logo chegara a vez de voces.

– Certo – diz Toto -, o capitao me disse que a cada quinze dias vai sair um de nos. O que vai fazer quando estiver em liberdade?

Hesitei um ou dois segundos, mas, corajosamente, embora receando parecer um pouco ridiculo diante desse degredado e dos dois duros, respondi:

– O que vou fazer? Ora, nao e complicado: vou comecar a trabalhar e hei de ser sempre honesto. Neste pais que me abriu um credito de confianca, eu teria vergonha de cometer um delito.

Em vez de uma resposta ironica, fico surpreendido, porque todos os tres dizem, quase ao mesmo tempo:

– Eu tambem decidi viver corretamente. Voce tem razao, Papillon, vai ser duro, mas vale a pena e esses venezuelanos merecem o nosso respeito.

Nao acredito no que ouco. Toto, o malandro do submundo do bairro da Bastilha, agora com essas ideias? E realmente assombroso! E Antartaglia, que viveu toda a vida esvaziando os bolsos dos outros, falando desse jeito? E maravilhoso. E Deplanque, cafetao inveterado, renunciando aos seus projetos de achar uma mulher para explora-la? Isso e ainda mais espantoso. Todos comecamos a rir juntos.

– Puxa! Esta historia entao vale ouro e, se voce voltar amanha a Montmartre, aparecer na Place Blanche, e contar ao pessoal, ninguem vai acreditar!

– Os homens da nossa laia vao acreditar, sim. Eles compreenderiam, meu chapa. Os que nao podem admitir isso sao os burgueses decadentes. A grande maioria dos franceses deformados nao admite que uma pessoa possa, com o passado que temos, se transformar num homem de bem em todos os sentidos. Ai esta a diferenca entre o povo venezuelano e o nosso. Eu lhes contei a opiniao daquele sujeito de Irapa, um pobre pescador, explicando ao chefe civil que um homem nunca esta perdido para sempre, que e preciso lhe dar uma chance e ajuda-lo para que se transforme em pessoa honesta. Esses pescadores quase analfabetos do golfo de Paria, no fim do mundo, perdidos no imenso estuario do Orinoco, tem uma filosofia humanista que falta a muitos dos nossos concidadaos. Excesso de progresso mecanico, vida agitada, sociedade que so tem um ideal: novas invencoes mecanicas, vida sempre mais facil e melhor. Saborear as descobertas da ciencia como se lambe um sorvete e coisa que provoca uma sede de conforto ainda maior e o desejo de lutar constantemente para o conseguir. Tudo isso mata a alma, destroi a compaixao, a solidariedade, a compreensao e a nobreza. Nao ha tempo para cuidar dos outros, e muito menos dos que ja sofreram alguma condenacao. Ate mesmo as autoridades deste sertao sao diferentes das nossas, pois elas sao responsaveis pelo sossego publico e, apesar disso, se arriscam a graves aborrecimentos, so por estarem convencidas de que vale a pena arriscar um pouco para salvar um homem. E isso e uma coisa magnifica.

Ganhei um belo terno azul-marinho, oferecido pelo meu aluno, hoje coronel. Ele partiu faz um mes para a escola de oficiais, classificado entre os tres primeiros no concurso. Estou satisfeito em ter contribuido para o seu sucesso, com as aulas que lhe dei. Antes de partir, ele me ofereceu roupas quase novas que me vao muito bem. Vou sair decentemente vestido gracas a ele, Francisco Bolagno, cabo da guarda nacional, casado e pai de familia.

Esse oficial superior, hoje coronel da guarda nacional, me honrou durante 26 anos com a sua amizade nobre e indestrutivel. Simboliza realmente a retidao, a nobreza e os sentimentos mais elevados que um homem pode possuir. Apesar da sua alta posicao na hierarquia militar, nunca deixou de me testemunhar a sua fiel amizade, nem de me ajudar em tudo e por tudo. Devo muito ao Coronel Francisco Bolagno Utrera.

Sim, vou fazer o impossivel para me tornar e permanecer honesto. O unico inconveniente e que nunca trabalhei, nao sei fazer nada. Terei que fazer qualquer coisa para ganhar a vida. Nao ha de ser facil, mas tenho certeza de que conseguirei. Amanha serei um homem igual aos outros. Promotor, voce perdeu a partida: sai definitivamente do caminho da podridao.

Viro-me e reviro-me na rede, no nervosismo da ultima noite de minha odisseia como prisioneiro. Levanto-me, atravesso a horta, que trabalhei tao bem nestes ultimos meses. A lua ilumina tudo como se fosse dia. A agua do rio corre sem ruido para a embocadura. Nao se ouvem passaros, estao dormindo. O ceu esta cheio de estrelas, mas a lua brilha tanto, que e preciso ficar de costas para ela, para poder ver as estrelas. A minha frente, a floresta virgem, com apenas uma clareira, onde se ergue a aldeia de El Dorado. Descanso nessa profunda paz da natureza. Minha agitacao diminui aos poucos e a serenidade do momento da a calma de que necessito.

Consigo imaginar muito bem o lugar onde, amanha, desembarcarei da chata para pisar a terra de Simon Bolivar, o homem que libertou este pais do jugo espanhol e que legou aos seus filhos os sentimentos de humanidade e de compreensao, gracas aos quais tenho hoje a possibilidade de recomecar a minha vida.

Estou com 37 anos, sou ainda moco. Meu estado tisico e perfeito. Nunca estive seriamente doente e posso afirmar que meu equilibrio mental e perfeitamente normal. O caminho da podridao nao deixou marcas degradantes em mim porque, na realidade, acredito que nunca me adaptei a ele.

Nas primeiras semanas da minha liberdade, terei que achar um modo de ganhar a vida, e terei ainda que tratar e fazer viver o pobre Picolino. Foi uma grande responsabilidade que assumi. Contudo, apesar de constituir um fardo pesado para mim, vou cumprir a promessa feita ao diretor e nao abandonar esse infeliz ate que possa interna-lo num hospital, entregue a maos competentes.

Vou comunicar a meu pai que estou livre? Ha muitos anos que ele nao tem noticias minhas. Como vou saber onde esta morando? As unicas noticias que teve a meu respeito foram as visitas da policia, em cada uma das minhas evasoes. Nao, nao adianta ter pressa. Nao tenho o direito de remexer na ferida que talvez os anos transcorridos ja cicatrizaram. Vou escrever para ele quando estiver bem de vida, quando tiver adquirido uma situacao modesta mas estavel, livre de problemas, e quando lhe puder dizer: “Paizinho, teu filho esta livre, tornou-se homem bom e honesto. Vive deste ou daquele jeito. Nao precisas mais baixar a cabeca quando falam dele, e e por isso mesmo que te escrevo, e para te dizer que te amo e que te venero sempre”.

Estamos em plena guerra mundial. Quem sabe se os alemaes se instalaram em minha pequena aldeia natal? O departamento de Ardeche nao e uma regiao muito importante da Franca. A ocupacao ali nao deve ser muito rigorosa. Que e que os alemaes iriam fazer la, a nao ser colher castanhas? Sim, so vou escrever para casa quando estiver com a vida em ordem.

E agora, para onde vou? Acho que ficarei nas minas de ouro, num lugar chamado Callao. Ai poderei passar o ano que me pediram para viver numa pequena

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