livros ou jornais, essas humildes criaturas acham natural nos socorrer e nos ajudar? Vestir alguem quando a gente e rica ou abastada, dar de comer a um estrangeiro que tem fome quando nada falta em casa para a familia e para si proprio, e de qualquer maneira uma demonstracao de bondade. Mas dividir em dois um pedaco de broa de milho ou de mandioca, especie de torta cozida no forno, preparada por suas proprias maos, e que nao e bastante para si mesmo e para os seus, repartir a refeicao frugal, que mais serve de subalimentacao que de nutricao, com um estrangeiro e, ainda mais, um fugitivo da justica, isto e admiravel!

Hoje de manha, toda a gente, homens e mulheres, esta silenciosa. Eles parecem estar contrariados e preocupados. Que se passa? Tibisay e Nenita estao perto de mim. Pela primeira vez nestes ultimos quinze dias pude fazer a barba. Ja ha oito dias somos hospedes dessa gente que tem o coracao na mao. Havendo-se formado uma pele muito fina sobre as minhas queimaduras, arrisquei-me a raspar a barba. Por causa da barba, as mulheres so faziam uma vaga ideia da minha idade. Agora estao satisfeitas de verem que sou jovem e o dizem sem rebucos. Tenho 35 anos, mas aparento so 28 ou trinta. Sim, estou percebendo que todas essas mulheres e esses homens hospitaleiros estao preocupados por nossa causa.

– Que esta acontecendo? Fale, Tibisay, que foi que houve?

– Estamos esperando as autoridades de Guiria, uma aldeia vizinha de Irapa. Aqui nao ha chefe civil (comissario), mas, nao se sabe como, a policia soube que voces estao aqui, e esta para chegar.

Uma preta forte e bonita se aproxima, acompanhada por um moco de torso nu, calca branca enrolada nos joelhos, de corpo herculeo e bem proporcionado. Chama-se Negrita – e um modo carinhoso de chamar as mulheres de cor, muito usado na Venezuela, onde nao existe nenhum preconceito racial ou religioso.

– Senor Enriquez - diz Negrita -, a policia vai chegar. Nao sei se e para seu bem ou para seu mal. Voce nao quer se esconder por algum tempo na montanha? Este meu irmao pode leva-lo para uma casinha onde ninguem podera encontra-lo. Tibisay, Nenita e eu levaremos todo dia comida para voce e comunicaremos as noticias.

Muito emocionado, quero beijar a mao dessa boa mulher, mas ela nao deixa e, com muito gentileza, me da um beijo na face.

Chegam uns cavaleiros a galope. Todos trazem um machete, especie de facao que serve para cortar a cana-de-acucar e que fica pendurado no lado esquerdo da cinta, como se fosse uma espada; do lado direito, um revolver dentro de sua capa. Eles apeiam. Um homem de cara mongolica, olhos obliquos de indio, pele bronzeada, alto e seco, de seus quarenta anos, com um grande chapeu de palha de arroz na cabeca, aproxima-se de nos.

– Bom dia. Eu sou o chefe civil (o delegado de policia).

– Bom dia, meu senhor.

– Voces ai, por que nao avisaram antes que tinham cinco fugitivos de Caiena? Ja faz oito dias que estao aqui, pelo que me disseram.

– E que estavamos esperando que pudessem andar e estivessem curados das queimaduras.

– Viemos busca-los e leva-los para Guiria. Um caminhao vai chegar mais tarde.

– Um cafezinho?

– Pois nao, muito obrigado.

Sentados em circulo, todos tomam cafe. Olho para o comissario da policia e seus ajudantes. Eles nao tem cara de ruins. Tenho a impressao de que estao obedecendo a ordens, contrariados.

– Voces sao evadidos da Ilha do Diabo?

– Nao, viemos de Georgetown, na Guiana Inglesa.

– Por que nao ficaram por la?

– A vida la e muito dura.

Sorrindo, ele diz:

– Voces pensaram que estariam melhor aqui do que com os ingleses?

– E verdade, porque somos latinos que nem voces.

Um grupo de sete ou oito homens se aproxima do nosso circulo. A sua frente esta um homem de cinquenta anos, cabelos brancos, 1 metro e 75 ou mais de altura, pele cor de chocolate claro. Olhos imensos, negros, denotando inteligencia e animo pouco comuns. Sua mao direita esta colocada sobre o cabo de um machete pendurado na cinta.

– Chefe, que vai fazer com esses homens?

– Vou leva-los para a prisao de Guiria.

– Por que nao os deixa viver aqui conosco? Cada familia tomara conta de um.

– Nao e possivel, e ordem do governador.

– Mas eles nao praticaram nenhum delito em territorio venezuelano.

– Sei disso. Mas, apesar de tudo, sao homens muito perigosos; para terem sido condenados ao presidio de Caiena, devem ter cometido crimes muito graves. Alem disso, sao fugitivos sem documentos de identidade e a policia francesa certamente vai pedir a extradicao deles, quando souber que estao na Venezuela.

– Nos queremos que fiquem aqui com a gente.

– Nao e possivel, e ordem do governador.

– Tudo e possivel. Que e que o governador sabe da vida desses desgracados? Um homem nunca esta completamente perdido. Qualquer que seja o mal que ele possa ter feito no passado, em certo momento da sua vida ele tem uma chance de se recuperar e de se transformar num homem bom e util a sociedade. Nao e verdade, digam voces todos?

– E verdade – respondem os homens e as mulheres em coro. – Deixem os coitados aqui com a gente, vamos ajuda-los a refazer a vida deles. Em oito dias, ja os conhecemos bem e estamos certos de que sao bons rapazes.

– Gente mais civilizada do que nos colocou eles no calabouco, para que nao pudessem mais praticar o mal – diz o comissario.

– Chefe, o que e que o senhor chama de civilizacao? O senhor pensa que, porque nos temos elevadores, avioes e trens subterraneos, isso prova que os franceses sao mais civilizados do que essa gente que nos recebeu e tratou? Pois fique sabendo que na minha opiniao ha mais civilizacao humana, mais riqueza de alma, mais compreensao em cada membro desta comunidade, que vive com simplicidade no meio da natureza, embora desprovida dos beneficios da civilizacao mecanica. Mas, se eles nao tem o conforto do progresso, tem o sentido da caridade crista muito mais desenvolvido que os pretensos civilizados do mundo. Prefiro um analfabeto deste povoado a um doutor em letras da Sorbonne de Paris, se este tiver um dia a alma do promotor que me fez condenar. O primeiro e sempre um homem, o segundo esqueceu que e.

– Eu compreendo, mas tenho que executar ordens. Esta chegando o caminhao. Por favor, me ajude, tenha uma atitude sensata, para que tudo se passe sem incidentes.

Cada grupo de mulheres abraca aquele de que elas trataram. Tibisay, Nenita e Negrita me abracam chorando. Cada homem nos aperta a mao, demonstrando assim o seu sentimento de tristeza pela nossa volta a prisao.

Ate logo, gente de Irapa, gente nobre que teve a coragem de enfrentar e censurar as proprias autoridades para defender uns pobres-diabos ate ontem desconhecidos. O pao que comi com voces, o pao que voces tiveram a coragem de tirar da propria boca para nos dar, esse pao, simbolo da fraternidade humana, foi para mim o sublime exemplo dos tempos antigos: “Nao matar, fazer o bem aos que sofrem mais, mesmo a custa de privacoes. Ajudar sempre quem e mais infeliz do que voce”. E, se mais tarde eu alcancar a liberdade, ajudarei os outros cada vez que puder, conforme me ensinaram os primeiros venezuelanos que encontrei.

E encontrei muitos outros depois.

O PRESIDIO DE EL DORADO

Duas horas mais tarde, chegamos a uma grande aldeia, porto de mar que tem a pretensao de ser cidade: chama-se Guiria. O chefe civil (especie de prefeito de departamento na Franca) nos entrega ele mesmo ao comandante da policia. No comissariado; nao nos tratam mal, mas nos submetem a longo interrogatorio; e o encarregado, sujeito tapado, nao quer de modo nenhum acreditar que tenhamos vindo da Guiana Inglesa, onde eramos livres. Alem disso, quando nos pede para explicar o motivo da nossa chegada a Venezuela num estado de nudez e de esgotamento, depois de uma viagem tao curta de Georgetown ao golfo de Paria, ele diz que estamos cacoando dele com a nossa historia do furacao.

– Dois grandes transportes de banana se perderam totalmente nesse tornado, um cargueiro carregado de minerio de bauxita afundou com toda a equipagem e voces, numa embarcacao de 5 metros, aberta as intemperies, conseguiram se salvar? Quem vai acreditar nessa historia? Nem mesmo o mendigo debil mental que pede esmola no mercado. Voces estao mentindo, ha qualquer coisa suspeita nesse negocio.

– O senhor pode pedir informacoes em Georgetown.

– Nao quero bancar o idiota diante dos ingleses.

Esse escrivao ou investigador, sujeito cretino e cabecudo, incredulo e cheio de si, faz nao sei que especie de relatorio, destinado nao sei a quem. De qualquer maneira, certa manha somos acordados as 5 horas, acorrentados, carregados num caminhao, com destino desconhecido.

Conforme expliquei, o porto de Guiria fica no golfo de Paria, diante de Trinidad. Tem a vantagem de estar na proximidade da foz do Orinoco, rio enorme, quase tao grande como o Amazonas.

Acorrentados num caminhao, onde estamos cinco camaradas mais dez policiais, rodamos para Ciudad Bolivar, importante capital do Estado do mesmo nome. A viagem, toda feita em estradas de terra, foi muito cansativa. Policias e presos, apertados, sacudidos dentro do caminhao, pulavam mais do que numa montanha russa. A viagem durou cinco dias. A noite, dormiamos dentro do proprio caminhao e, de madrugada, partiamos novamente, numa corrida louca para um destino desconhecido.

A mais de 1 000 quilometros do mar, numa floresta virgem cortada por uma faixa de estrada que vai de Ciudad Bolivar a El Dorado, foi que terminamos nossa viagem arrasadora.

Tanto prisioneiros como soldados se achavam bastante machucados quando chegamos a povoacao de El Dorado.

Mas o que e El Dorado? A principio, foi a esperanca dos conquistadores espanhois: vendo que os indios vindos dessa regiao traziam ornamentos de ouro, acreditaram cegamente que naquele lugar havia uma montanha de ouro, ou, pelo menos, metade ouro, metade terra. Resultado: hoje, El Dorado nao e mais que uma aldeia a beira de um rio cheio de caribes ou piranhas, peixes carnivoros que em alguns minutos devoram um homem ou um animal; um rio tambem repleto de peixes-eletricos, ali chamados tembladores, que, girando em volta da sua presa, homem ou bicho, matam a vitima por meio de descargas eletricas e, a seguir, chupam o corpo em decomposicao. No meio desse rio ha uma ilha e, bem no centro, um verdadeiro campo de concentracao. Sao as gales

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