de guarda, mergulha rapidamente no nada. Rendidos de fadiga e gozando essa sombra que enfim nos permite escapar ao sol inexoravel, adormecemos.
Um berro de sirena acorda todo mundo de repente. Afasto a vela, e noite la fora. Que horas podem ser? Quando me sento em meu lugar, ao leme, uma brisa fresca acaricia todo meu pobre corpo pelado e imediatamente sinto frio. Mas que sensacao de bem-estar nao ser queimado!
Erguemos a vela. Depois de ter limpado os olhos com agua do mar – felizmente, so um deles e que esta ardendo e supurado -, vejo terra nitidamente a minha direita e a minha esquerda. Onde estamos? Para qual das duas devo me dirigir? Mais uma vez, ouve-se o uivo da sirena. Compreendo que o sinal vem da terra da direita. Que diabo quer dizer?
– Onde voce acha que estamos, Papi? – diz Chapar.
– Francamente, nao sei. Se essa terra nao for isolada e se isso for um golfo, talvez estejamos na ponta da Guiana Inglesa, a parte que vai do Orinoco (grande rio da Venezuela, que faz fronteira). Mas, se a terra da direita e cortada por uma grande distancia da que esta a esquerda, entao esta terra e uma ilha e e Trinidad. A esquerda seria a Venezuela, portanto estariamos no golfo de Paria.
Minhas lembrancas das cartas maritimas, que tive ocasiao de estudar, dao-me essa alternativa. Se e Trinidad a direita e Venezuela a esquerda, qual das duas vamos escolher? Essa decisao poe o nosso destino em jogo. Nao vai ser muito dificil, por causa desse gostoso vento fresco, nos dirigirmos para a costa. Por enquanto, nao vamos nem para uma, nem para outra. Em Trinidad estao os rosbifes, mesmo governo da Guiana Inglesa.
– Temos certeza de sermos bem tratados – diz Guittou.
– Sim, mas que decisao vao tomar por termos deixado, em tempo de guerra, seu territorio sem autorizacao e clandestinamente?
– E a Venezuela?
– Nao sabemos como e por la – diz Deplanque. – Na epoca do Presidente Gomez, os forcados eram obrigados a trabalhar nas estradas em condicoes extremamente penosas, depois eram devolvidos a Franca.
– Sim, mas agora nao e assim. Estamos em guerra.
– Eles, segundo o que ouvi dizer em Georgetown, nao estao em guerra, sao neutros.
– Tem certeza?
– Tenho.
– Entao e perigoso para nos.
Distinguimos luzes na terra da direita e tambem na da esquerda. Mais uma vez a sirena, que desta vez da tres uivos em seguida. Sinais luminosos aparecem na costa da direita. A lua acaba de sair, esta bastante longe de nos, mas em nossa trajetoria. Em frente, dois imensos rochedos negros e pontudos emergem do mar, muito altos. Deve ser esse o motivo da sirena: avisam-nos de que e perigoso.
– Olhe, boias flutuantes! Ha uma porcao delas. Por que nao esperamos o dia agarrados a uma delas? Baixe a vela, Chapar.
Ele desce imediatamente aqueles trapos de calcas e camisas que pretensiosamente eu chamo de vela. Contendo o barco com o remo, amarro a uma das boias a ponta da embarcacao que, felizmente, ficou com um bom pedaco de corda pendurado no gancho, um pedaco que o tufao nao conseguiu arrancar. Pronto, estamos amarrados. Nao diretamente nessa estranha boia, porque ela nao tem nada em que possa ser amarrada a corda, mas ao cabo que a liga a outra boia. Estamos bem amarrados ao cabo dessa delimitacao de um canal, sem duvida. Sem nos preocuparmos com os uivos que a costa da direita continua a emitir, deitamo-nos todos no fundo do barco, cobertos com a vela, para nos protegermos do vento. Um doce calor invade-me o corpo transido pelo frio e o frescor da noite e certamente sou um dos primeiros a comecar a roncar.
O dia e claro quando acordo. O sol esta saindo de sua cama, o mar esta um pouco agitado e seu azul-verde indica que o fundo e de coral.
– Que vamos fazer? Decidimos ir a terra? Estou morrendo de fome e sede.
E a primeira vez que alguem se queixa depois desses dias de jejum, exatamente sete dias, hoje.
– Estamos tao perto da terra, que nao vai ser dificil alcanca-la – foi Chapar que falou.
Sentado em meu lugar, vejo claramente diante de mim, depois dos dois rochedos que surgem no mar, a fratura da terra. Portanto, a direita e Trinidad, a esquerda a Venezuela. Sem nenhuma duvida, estamos no golfo de Paria e, se a agua esta azul e nao amarelada pelos aluvioes do Orinoco, e porque estamos na corrente do canal que passa entre os dois paises e se dirige para o largo.
– Que vamos fazer? E melhor voltarmos, pois e muito grave a decisao que vamos tomar. A direita, a ilha inglesa de Trinidad; a esquerda, a Venezuela. Por forca das condicoes do barco e do nosso estado fisico, temos que ir o mais depressa possivel para a terra. Ha dois liberados entre nos: Guittou e Corbiere. Nos tres, Chapar, Deplanque e eu, estamos numa situacao mais perigosa. Cabe a nos decidirmos. Que dizem?
– O mais certo e ir para Trinidad. A Venezuela e o desconhecido.
– Nao temos necessidade de tomar decisoes. Essa lancha que vem chegando vai decidir por nos – diz Deplanque.
Uma lancha, de fato, avanca rapidamente para nos. La esta, para a mais de 50 metros. Um homem pega um alto-falante. Percebo uma bandeira que nao e inglesa. Cheia de estrelas, muito bonita, eu nunca vi essa bandeira em minha vida. Mais tarde, essa bandeira vai ser a “minha bandeira”, a da minha nova patria, para mim, o simbolo mais emocionante, o de ter, como todo homem normal, reunidas num pedaco de pano, as qualidades mais nobres de um grande povo, meu povo.
–
– Somos franceses.
–
– Por que?
–
– E por isso que nao se aproximam?
– Sim. Desamarrem, depressa.
– Pronto.
– Em tres segundos, Chapar desfaz o no da corda. Estavamos nem mais, nem menos, amarrados a uma cadeia de minas flutuantes. Um milagre nao termos saltado pelos ares, explica-me o comandante da lancha a qual somos amarrados. Sem subir a bordo, a tripulacao nos passa cafe, leite quente bem acucarado, cigarros.
– Vao para a Venezuela, serao bem tratados, eu lhes asseguro. Nao podemos reboca-los para terra porque temos que ir buscar com urgencia um homem gravemente ferido no farol de Barimas. Principalmente, nao tentem ir a Trinidad, pois ha nove chances em dez que voces choquem em uma mina, e entao…
Depois de um
13 A VENEZUELA
Descubro um mundo,
– Pobres rapazes, em que estado voces estao! – exclamam os homens.
A aldeia de pescadores aonde chegamos chama-se Irapa, municipio de um Estado denominado Sucre. As mocas, todas bonitas, de estatura pequena mas muito graciosas, as mulheres maduras, bem como as velhas, sem excecao, se transformam em enfermeiras, irmas de caridade ou maes extremosas.
Reunidos no galpao de uma casa, onde penduraram cinco redes de la e colocaram mesa e cadeiras, fomos lambuzados com manteiga de cacau da cabeca aos pes. Nem um centimetro de carne viva foi esquecido. Mortos de fome e de canseira, nosso jejum tao prolongado provocou-nos desidratacao, e essa boa gente do litoral sabe que precisamos dormir, mas tambem comer em pequenas quantidades.
Enquanto estamos bem acomodados nas redes, dorme, nao dorme, as enfermeiras improvisadas vao enfiando bocados de comida em nossas bocas, como se fossemos criancinhas. Eu estava tao entregue, tao completamente desprovido de forca quando me estenderam na rede, minhas chagas em carne viva bem besuntadas de manteiga de cacau, que me sentia como que derretendo, dormindo, comendo, bebendo, sem me dar conta exatamente do que se passava.
As primeiras colheradas de um pirao parecido com a nossa tapioca nao foram aceitas pelo meu estomago vazio. Isso aconteceu tambem com os outros. Todos nos vomitamos, varias vezes, uma parte ou toda a comida que as mulheres introduziam em nossas bocas.
Os habitantes dessa aldeia sao muito pobrezinhos. Contudo, cada um deles, sem excecao, contribui para nos ajudar. Dentro de tres dias, gracas aos cuidados dessa boa gente e gracas a nossa juventude, estamos quase de pe. Deixamos as redes durante longas horas e, sentados no rancho coberto de folhas de coqueiro que proporcionam uma sombra fresca, meus camaradas e eu conversamos com esse povo. Nao sao bastante ricos para nos vestir todos de uma so vez. Formaram pequenos grupos de ajuda. Um se ocupa sobretudo de Guittou, outro de Deplanque, etc. Mais ou menos umas dez pessoas cuidam de mim.
Nos primeiros dias, eles nos vestiram com algumas roupas usadas, mas rigorosamente limpas. Agora, cada vez que podem, compram para nos uma camisa nova, uma calca, uma cinta, um par de chinelos. Entre as mulheres que tratam de mim estao algumas mocas muito novas, de tipo indio mas ja misturado com sangue espanhol ou portugues. Uma se chama Tibisay e a outra Nenita. Compraram para mim uma camisa, uma calca e um par de chinelos, que elas chamam
– Nao e preciso perguntar de onde voces vem. Pelas tatuagens, sabemos que voces sao fugitivos da penitenciaria francesa.
Isso me emociona ainda mais. Como! Sabendo que somos homens condenados por delitos graves, evadidos de uma prisao cuja severidade eles conhecem pelos