barbudo fica louco, derruba a mesa que esta a sua frente e em dois saltos esta no bar. Sacar o revolver e dar tres tiros na moca foi coisa que nao durou tres segundos.

Flor de Canela morreu em meus bracos. Eu a pegara depois de por aquele animal a dormir com um golpe de cassetete da policia americana, que trago sempre comigo. Por estar repreendendo uma garconete, por causa da sua bandeja, me atrasei na minha intervencao, o que deu tempo para o animal cometer a loucura. Resultado: a policia fechou a Cabana de Bambu e voltamos para Georgetown.

Eis-nos de novo em nossa casa. Indara, como uma verdadeira hindu, fatalista, nao muda de carater. Para ela, essa ruina nao tem nenhuma importancia. A gente faz outra coisa, e tudo. Os chineses, do mesmo jeito. Nada muda em nosso harmonioso grupo. Nem uma reprovacao por minha ideia barroca de tirar as mocas na sorte, ideia que, no entanto, foi a causa do nosso fracasso. Com nossas economias, depois de ter pago escrupulosamente todas as nossas dividas e dar uma soma em dinheiro a mae de Flor de Canela, nao ficamos de mau humor. Todas as noites, vamos ao bar onde os forcados se reunem. Passamos noites encantadoras, mas Georgetown, por causa das restricoes da guerra, comeca a me cansar. Quanto ao mais, minha princesa nunca foi ciumenta e eu sempre tive toda liberdade. Mas, agora, ela nao me larga um so instante e fica horas sentada a meu lado, em qualquer lugar onde eu esteja.

As probabilidades de comerciar em Georgetown se complicam. Assim, um belo dia, sinto vontade de partir da Guiana Inglesa para outro pais. Nao e nada arriscado, ha a guerra. Nenhum pais nos devolvera, pelo menos e o que suponho.

FUGA DE GEORGETOWN

Guittou esta de acordo. Ele tambem acha que devem existir paises melhores e mais faceis de se viver do que a Guiana Inglesa. Comecamos a preparar uma fuga. De fato, sair da Guiana Inglesa e um delito muito grave. Estamos em tempo de guerra e nenhum de nos tem passaporte.

Chapar, que se evadiu de Caiena depois de ser desinternado, esta aqui ha tres meses. Trabalha, por 1 dolar e 50 por dia, fazendo doces numa confeitaria chinesa. Ele tambem quer ir embora de Georgetown. Um forcado de Dijon, Deplanque, e um bordeles tambem sao candidatos a fuga. Cuic e o maneta preferem ficar. Sentem- se bem aqui.

Como a saida do Demerara e extremamente vigiada e esta sob o fogo dos ninhos de metralhadoras, dos lanca-torpedos e de canhoes, copiaremos exatamente um barco de pesca inscrito em Georgetown e sairemos, fazendo-nos passar por ele. Eu me recrimino por nao ter reconhecimento para com Indara e nao corresponder como deveria ao seu amor total. Mas nao posso fazer nada, ela se gruda tanto a mim, que isso me irrita; agora, ela me enerva. Os seres simples, claros e sem inibicoes em seus desejos, nao esperam que a pessoa que amam os solicite para fazer amor. Essa hindu reage exatamente como as irmas indias de Guajira. No momento em que sentem vontade de se expandir, oferecem-se e, se a gente nao as toma, a ofensa e muito grave. Uma dor verdadeira e tenaz germina no mais profundo de meu eu e isso me irrita, pois, mais do que as irmas indias, nao quero fazer Indara sofrer e tenho que me esforcar para que ela goze o mais possivel em meus bracos.

Ontem, assisti a coisa mais linda que se pode ver, do ponto de vista mimico, como expressao do que a gente sente. Na Guiana Inglesa existe uma especie de escravatura moderna. Os javaneses vem trabalhar nas plantacoes de algodao, de cana-de-acucar ou de cacau com contratos de cinco e dez anos. O marido e a mulher sao obrigados a sair todos os dias para o trabalho, a menos que estejam doentes. Quando o medico nao os considera doentes, eles tem que dar um mes de trabalho suplementar ao fim do contrato. E outros meses se acrescentam, ainda, por delitos menores. Como todos sao jogadores, endividam-se ate o pescoco na plantacao e, para pagar seus credores, assinam, para receber um premio, um prolongamento de um ou varios anos.

Praticamente, nao saem mais. Para eles, que sao capazes de apostar suas mulheres e cumprir escrupulosamente a palavra, uma so coisa e sagrada: os filhos. Fazem tudo para mante-los frees (livres). Passam as maiores dificuldades e privacoes, mas muito raramente um de seus filhos assina um contrato com a plantacao.

Pois bem, hoje e o casamento de uma moca hindu. Todo mundo esta vestido com mantos compridos: as mulheres de voal branco e os homens com tunicas brancas que descem ate os pes. Muitas flores de laranjeira. A cena, depois de varias cerimonias religiosas, desenrola-se no momento em que o noivo vai levar sua mulher. Os convidados ficam a esquerda e a direita da porta da casa. De um lado, mulheres; do outro, homens. Sentados na soleira da porta aberta, o pai e a mae. Os noivos beijam seus parentes e passam entre as duas fileiras, que tem alguns metros de comprimento. De repente, a noiva escapa do braco do marido e corre para sua mae. A mamae tapa os olhos com uma das maos e com a outra manda-a de volta ao marido.

Este estende os bracos e chama, ela faz gestos com os quais demonstra que nao sabe o que fazer. Sua mae deu-lhe a vida e, muito bem, ela representa uma crianca saindo do ventre de sua mae. Depois, a mae lhe deu o seio. Ela vai esquecer isso tudo para seguir o homem que ama? Talvez, mas nao seja apressado, diz ela com gestos, espere mais um pouco, deixe-me contemplar ainda estes pais tao bons que, ate eu encontrar voce, foram a razao de minha vida.

Entao, ele tambem faz mimica, com a qual faz compreender que a vida exige que ela seja, tambem, esposa e mae. Tudo isso ao som de cantos de jovens e rapazes que lhes respondem. Por fim, depois de ter escapado mais uma vez dos bracos do marido, e ela propria quem da alguns passos, correndo, salta nos bracos do marido, que a leva bem depressa para a carroca, com guirlandas de flores, que os espera.

A fuga e minuciosamente preparada. Um barco grande e comprido, com uma boa vela, uma bujarrona e um leme de primeira qualidade, sao preparados com precaucoes para que a policia nao perceba.

No rio Penitence, o riozinho que desemboca no grande rio, o Demerara, escondemos o barco num trecho que passa pelo nosso bairro. Esta exatamente pintado e numerado como um barco de pesca de chineses matriculado em Georgetown. Iluminada pelos farois, apenas a tripulacao e diferente. Para dar bem a impressao que queremos, nao podemos ficar de pe, pois os chineses do barco copiado sao pequenos e magros, nos somos altos e fortes.

Tudo se passa sem maiores complicacoes e saimos calmamente do Demerara para entrar no mar. Apesar da alegria de termos saido e de termos evitado o perigo de sermos descobertos, uma so coisa me impede de saborear completamente esse exito: e o fato de ter partido como um ladrao, sem ter avisado minha princesa hindu. Nao estou contente comigo mesmo. Ela, seu pai e sua raca nao me fizeram mais do que o bem e em troca eu lhes paguei com o mal. Nao procuro encontrar argumentos para justificar minha conduta. Acho que e pouco elegante o que fiz e nao estou nada contente comigo. Ostensivamente, deixei 600 dolares em cima da mesa, mas o dinheiro nao paga essas coisas recebidas.

Devemos navegar durante 48 horas na direcao norte-norte. Retomando minha antiga ideia, quero ir para as Honduras britanica. Para isso, teremos que pegar dois dias em alto-mar.

A fuga e formada por cinco homens: Guittou, Chapar, Barriere (um bordeles), Deplanque (um cara de Dijon) e eu, Papillon, capitao, responsavel pela navegacao.

Mal completamos trinta horas de mar, somos apanhados por uma tempestade espantosa, seguida de uma especie de tufao, um ciclone. Relampagos, trovoes, chuva, vagalhoes enormes e desordenados, vento de furacao turbilhonando no mar levam-nos, sem que possamos resistir, numa louca e dramatica cavalgada sobre um mar que eu jamais havia visto ou imaginado. Pela primeira vez, em minha experiencia, os ventos giram mudando de direcao, ao ponto de os alisios serem completamente anulados, e a tormenta nos fazer valsar em direcao oposta. Se isso durasse oito dias, voltariamos aos trabalhos forcados nas ilhas.

Esse tufao, alias, foi memoravel, eu soube depois em Trinidad, pelo Sr. Agostini, o consul frances. O tufao derrubou mais de 6 000 coqueiros da sua plantacao. Esse tufao em forma de verruma serrou, completamente, os coqueiros a altura de um homem. Casas foram arrancadas e levadas pelos ares para muito longe, caindo na terra ou no mar. Perdemos tudo: viveres e bagagens, assim como os toneis de agua. O mastro se quebrou, ficando com menos de 2 metros, sem vela, e, o mais grave, o leme se quebrou. Por milagre, Chapar salvou um pequeno remo e e com esse pequeno pau que tento dirigir o barco. Para completar, ficamos todos nus em pelo para confeccionarmos uma especie de vela. Usamos tudo, paletos, calcas e camisas. Nos cinco estamos de cuecas. Essa vela, fabricada com nossas roupas e costurada com um rolinho de arame que havia a bordo, quase nos permite navegar com o mastro quebrado.

Os ventos alisios retomaram seu curso e aproveito para tentar ir direto ao sul, para alcancar nao importa que terra, ate mesmo a Guiana Inglesa. A condenacao que nos espera por la sera bem-vinda. Meus camaradas se comportaram dignamente durante e depois, eu nao diria mais essa tempestade, pois nao seria o bastante, mas sim esse cataclismo, esse diluvio, esse ciclone, melhor.

E somente no fim de seis dias, dos quais dois de completa calmaria, que vemos terra. Com o pedaco de vela que o vento enfuna, apesar dos furos, nao podemos navegar exatamente como queremos. O pequeno remo nao e suficiente para dirigir firmemente a embarcacao. Estando em pelo, temos queimaduras ardentes em todo corpo, o que diminui nossa forca para lutar. Nenhum de nos tem pele sobre o nariz, os narizes estao em carne viva. Os labios, os pes, as entrecoxas e as coxas tambem estao com a carne completamente a mostra. A sede nos atormenta a tal ponto, que Deplanque e Chapar chegaram a beber agua salgada. Depois dessa experiencia sofrem mais ainda. Ha, apesar da sede e da fome que nos atazanam, algo de bom: ninguem, absolutamente ninguem, se queixa. Nenhum de nos jamais da um conselho a outro. O que quer beber agua salgada, o que joga agua do mar em seu corpo, dizendo que isso refresca, logo percebe sozinho que a agua salgada abre chagas e queima ainda mais pela evaporacao.

Sou o unico a ter os olhos completamente abertos e saos, todos os meus camaradas estao com os olhos cheios de pus, que se colam constantemente. Os olhos precisam ser lavados, custe o que custar, apesar da dor, porque faz bem abrir os olhos e enxergar direito. Um sol de chumbo nos ataca as queimaduras com tal intensidade, que e quase irresistivel. Deplanque, meio louco, fala em se atirar na agua.

Ha mais de uma hora me parecia distinguir terra no horizonte. Bem entendido, eu me dirigi imediatamente para ela sem dizer nada, pois nao tinha certeza. Passaros chegam e voam ao nosso redor; portanto, nao me enganei. Seus gritos advertem meus camaradas, que, embrutecidos pelo sol e pela fadiga, deitaram-se no fundo do barco, protegendo o rosto do sol com os bracos.

Guittou, depois de enxaguar a boca para conseguir fazer sair algum som, me diz:

– Esta vendo terra, Papi?

– Estou.

– Em quanto tempo acha que podemos chegar?

– Cinco ou sete horas. Escutem, meus amigos, eu nao posso mais. Alem das mesmas queimaduras que voces, estou com as nadegas em carne viva por causa do atrito na madeira do banco e por causa da agua do mar. O vento nao esta muito forte, estamos avancando tao lentamente, que meus bracos tem caibras constantemente e minhas maos estao adormecidas de apertar durante tanto tempo o remo que nos serve de leme. Querem aceitar uma coisa? Vamos retirar a vela e estende-la sobre o barco, para nos abrigarmos desse sol de fogo ate a noite. O barco ira a deriva, sozinho, para a terra. E preciso fazer isso, a menos que algum de voces queira tomar meu lugar ao leme.

– Nao, nao, Papi. Vamos fazer isso e dormir todos, menos um, a sombra da vela.

E ao sol, as 13 horas, que faco tomarem essa decisao. Com uma satisfacao animal, deito-me no fundo do barco, enfim a sombra. Meus camaradas cederam-me o melhor lugar para que, na frente, eu possa receber o ar de fora. O que esta de guarda fica sentado, mas abrigado a sombra da vela. Todo mundo, mesmo o homem

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