trabalhos forcados. Tem alguma coisa a dizer?

Mantenho-me calmo, minha atitude e normal, apenas aperto com mais forca a barra do banco dos reus.

– Sim, senhor presidente, tenho a dizer que sou inocente e que sou vitima de uma trama policial.

Do canto das senhoras elegantes, convidadas, de categoria, sentadas atras da corte, chega um murmurio aos meus ouvidos. Exclamo, em voz controlada:

– Silencio, mulheres cheias de joias que vem aqui para gozar emocoes morbidas. A farsa terminou. Um homicidio foi solucionado pela sua policia e sua Justica; voces, entao, devem estar satisfeitas!

– Guardas – diz o presidente -, levem o condenado.

Antes de sumir, ouco uma voz que grita:

– Nao ligue, meu homem, eu irei la buscar voce.

E a minha Nenette, boa e valente, que reafirma o seu amor.

Os homens do meu ambiente que estao na sala aplaudem. Eles conhecem muito bem a historia desse caso e assim demonstram que estao orgulhosos de mim por eu nao ter “dado o servico” nem denunciado ninguem.

De volta a sala onde nos achavamos antes do inicio dos debates, os guardas colocam-me as algemas e um deles ajusta uma corrente entre o meu pulso direito e o seu pulso esquerdo. Nem uma palavra. Peco um cigarro. O sargento me da um. Cada vez que o ponho ou tiro da boca, o guarda tem de levantar ou abaixar o braco, para acompanhar o movimento.

Fumo, de pe, mais ou menos os tres quartos do cigarro. Ninguem diz nada. Eu e que olho para o sargento e digo: “Vamos”.

Descendo as escadas, escoltado por uns doze guardas, chego ao patio interno do Palacio. A “viuva alegre” la esta a nossa espera. Nao tem divisoes internas. Todos se sentam juntos nos bancos, mais ou menos dez pessoas. O sargento da a ordem: “Conciergerie”.

A CONCIERGERIE

Quando chegamos ao ultimo castelo, que foi de Maria Antonieta, os guardas me entregam ao chefe da guarda, que passa recibo. Vao embora sem dizer nada, mas antes, para minha surpresa, o sargento me aperta as duas maos algemadas.

O guarda-chefe pergunta:

– Quanto te lascaram?

– Prisao perpetua.

– Nao e possivel!

Olha para os guardas e compreende que e verdade. Esse carcereiro de cinquenta anos, que viu tantas coisas e conhece muito bem o meu caso, me diz estas boas palavras:

– Olhe, que sujos! Mas eles estao loucos!

Com bons modos, tira-me as algemas e tem a gentileza de levar-me pessoalmente a uma cela de paredes estofadas, especialmente preparada para os condenados a morte, os loucos, os muito perigosos ou os condenados a prisao perpetua.

– Coragem, Papillon -, diz ele, fechando a porta atras de mim. – Vou mandar algumas roupas e a comida que voce tinha na outra cela. Coragem!

– Obrigado, chefe. Creia, tenho coragem e acho que minha prisao perpetua ficara atravessada na garganta deles.

Alguns minutos depois, ouco um arranhado na porta.

– O que e?

Uma voz responde:

– Nao e nada. Estou so pendurando um cartao.

– Por que? O que esta escrito nele?

– “Trabalhos forcados perpetuos. Vigiar atentamente.”

Eu penso: “Eles sao mesmo loucos. Acreditam, por acaso, que o choque da avalancha que caiu sobre minha cabeca pode me perturbar e me levar ao suicidio? Sou e serei corajoso. Lutarei contra tudo e contra todos. A partir de amanha comecarei a agir”.

Na manha seguinte, tomando meu cafe, perguntei a mim mesmo: “Vou apelar? Por que? Terei mais sorte diante de outro tribunal? E quanto tempo vou perder com isso? Um ano, talvez dezoito meses… e para que? Para receber vinte anos em vez da perpetua?”

Como estou bem decidido a escapar, o prazo nao importa. Lembro-me da frase de um condenado que perguntou ao presidente do tribunal: “Doutor, quanto tempo dura a prisao perpetua na Franca?”

Caminho sem parar em volta da minha cela. Mandei um telegrama a minha mulher para consola-la, e outro a uma irma que procurou defender-me, sozinha, contra todos.

Cai o pano, e o fim da peca. Os meus devem estar sofrendo mais do que eu, e meu pobre pai, no fundo da sua provincia, deve sofrer muito para carregar uma cruz tao pesada.

Tenho um sobressalto: mas afinal, eu sou inocente! Sou, mas para quem? Sim, para quem sou inocente? Digo para mim mesmo: “Sobretudo, nunca se divirta contando que e inocente, todo mundo iria dar risada. Pegar prisao perpetua por causa de um rufiao e, ainda por cima dizer que foi outro quem o matou, seria muito gozado! O melhor e calar a boca”.

Como jamais durante a minha prisao preventiva, tanto na Sante como na Conciergerie, eu tinha imaginado receber uma condenacao tao pesada, nunca tinha me preocupado em saber o que poderia ser o “caminho da podridao”.

Muito bem. A primeira coisa a fazer: entrar em contato com homens ja condenados, capazes, no futuro, de serem companheiros de fuga.

Escolhi um sujeito de Marselha, chamado Dega. Iria certamente encontra-lo no barbeiro. Ele vai todo dia fazer a barba. Peco licenca para ir la tambem. De fato, quando chego, eu o encontro, encostado na parede. Vejo-o justamente quando ele, disfarcadamente, faz passar um outro a sua frente, a fim de poder ficar mais tempo esperando. Coloco-me ao seu lado, afastando um outro sujeito. Murmuro rapidamente:

– Entao, Dega, como vao as coisas?

– Vao indo, Papi. Peguei quinze anos, e voce? Me disseram que te salgaram direitinho.

– Sim. Peguei a perpetua.

– Voce vai apelar?

– Nao. O que e preciso e comer bem e fazer cultura fisica. Conserve as forcas, Dega, porque certamente precisaremos ter bons musculos. Voce esta “carregado”?

– Sim, tenho dez “sacos” (*) em libras esterlinas. E voce?

(*) 10 000 francos de 1932 ou seja, cerca de 5 000 de 1969 (mais ou menos NCr$ 3 800,00).

– Um bom conselho: “carrega” logo. Teu advogado e o Hubert? E uma besta, ele nunca lhe vai entregar o “canudo”. Manda a sua mulher com o “canudo” carregado procurar o Dante. Ela que o entregue a Domingos, o Rico, e eu garanto que ele chegara ate voce.

– Cuidado, o guarda esta olhando.

– Entao, aproveitando para conversar? – diz o guarda.

– Nao e nada – responde Dega. – Ele esta me dizendo que esta doente.

– Que e que ele tem? Uma indigestao de grades? – O gordo carcereiro cai na gargalhada.

Essa e a vida. Ja estou no “caminho da podridao”. Eles morrem de rir, gozando da desgraca de um moco de 25 anos condenado por toda a vida.

E recebi o “canudo”. E um tubo de aluminio, cuidadosamente polido, que se abre desenroscando-se pelo meio. Tem uma rosca macho e uma femea. Contem 5 600 francos em notas novas. Quando me e entregue, beijo esse tubo de 6 centimetros de comprimento, da espessura do polegar; sim, beijo-o antes de coloca-lo no anus. Respiro forte para faze-lo subir ao colon. E o meu cofre. Podem me deixar pelado, me abrir as pernas, me fazer tossir, dobrar em dois, ninguem descobrira se tenho alguma coisa escondida. Ele subiu bem para cima, entrou no intestino grosso. Faz parte de mim mesmo. E a minha vida, a minha liberdade que trago comigo… e o caminho da vinganca, pois eu penso sempre em me vingar! Alias, so penso nisso.

Ja e noite. Estou so em minha cela. Uma forte lampada no teto permite que o guarda me vigie por um orificio na porta. A luz possante ofusca meus olhos. Coloco o lenco dobrado sobre os olhos, pois a claridade e realmente insuportavel. Estendido no colchao sobre a cama de ferro, sem travesseiro, evoco todos os detalhes do desgracado processo.

Chegado a este ponto, para que se possa compreender a continuacao desta longa narrativa, para que se percebam as bases que me serviram de sustentaculo em minha luta, precisarei talvez me alongar bastante para contar tudo que passou pela minha mente nos primeiros dias em que me tornei um enterrado vivo.

O que hei de fazer quando conseguir escapar? Pois agora estou com o canudo e nao duvido um so instante de que um dia hei de fugir.

Em primeiro lugar, voltarei a Paris o mais depressa possivel. O primeiro a liquidar e Polein, a falsa testemunha. Depois, os dois tiras. Mas dois policiais nao bastam, tenho que matar todos os agentes da policia. Pelo menos, o maior numero possivel. Ah, ja sei! Uma vez livre, volto a Paris. Encho uma mala de explosivos. Quantos quilos, nao sei; dez, quinze ou vinte. E procuro calcular quantos explosivos seriam necessarios para fazer o maior numero de vitimas.

Dinamite? Nao, e preferivel cheddite. E por que nao nitroglicerina? Bom, nao tem importancia; pedirei instrucoes aqueles que sabem mais do que eu. Mas os policiais que me deem um credito de confianca, hei de fazer as contas e eles serao bem servidos.

Continuo de olhos fechados e com o lenco sobre as palpebras. Vejo nitidamente a mala, de aparencia inofensiva, carregada de explosivos, e o despertador, bem regulado, que acionara o detonador. Atencao, ela tem que explodir as 10 horas da manha, na sala de relatorios da Policia Judiciaria, no Quai des Orfevres n.° 36, primeiro andar. Nessa hora, la estarao pelo menos 150 investigadores, reunidos para receber ordens e ouvir os relatorios. Quantos degraus para subir? Nao posso me enganar.

Sera preciso calcular rigorosamente o tempo necessario para que a mala chegue da rua ao destino no segundo exato em que deve explodir. E quem carregara a mala? Bem, ai e que tenho de bancar o corajoso. Chego de taxi, bem diante da porta da Policia Judiciaria, e digo aos dois guardas de servico, com voz imperativa: “Me subam esta mala na sala dos relatorios, eu ja os acompanho. Digam ao comissario Dupont que essa mala foi enviada pelo inspetor-chefe Dubois e que eu ja vou

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