subir”.

Mas sera que obedecem? E se, por acaso, nesse monte de imbecis, eu caio sobre os dois unicos inteligentes da corporacao? Entao estara tudo perdido. Sera preciso encontrar outra coisa. Procuro, procuro, nao podendo admitir que nao consiga encontrar um meio cem por cento garantido.

Levanto-me para beber um pouco de agua. De tanto pensar, estou com dor de cabeca.

Torno a me deitar sem o lenco, os minutos se escoam lentamente. E esta luz, esta luz na minha cara, Deus do ceu! Molho o lenco e torno a coloca-lo. A agua fresca me faz bem e, com o peso da agua, o lenco adere melhor as palpebras. Daqui por diante empregarei sempre este meio.

Essas longas horas em que arquiteto minha futura vinganca sao tao intensas, que eu me vejo agindo exatamente como se o projeto estivesse em vias de execucao. Toda a noite e mesmo durante uma parte do dia, estou vagando por Paris, como se a minha fuga ja fosse fato consumado. Tenho certeza, hei de escapar e de voltar a Paris. Bem entendido, a primeira coisa a fazer sera apresentar a conta a Polein e, em seguida, aos policiais. E os jurados? Esses calhordas vao continuar a viver tranquilos? Decerto voltaram para casa, esses nojentos, satisfeitissimos por haverem cumprido o seu Dever, com D maiusculo, arrotando importancia, inchados de orgulho, bancando os herois junto aos vizinhos e as respectivas patroas, que os esperam, despenteadas, para papar a sopa.

Muito bem. Que fazer, entao, com os jurados? Nada. Sao uns pobres cretinos. Nao estao preparados para serem juizes. Se um cara for guarda-civil ou alfandegario aposentado, ele reage como guarda-civil ou alfandegario. Se for leiteiro, como um labrego qualquer. Eles ficaram embasbacados pela oratoria do promotor, que nao teve dificuldade em po-los no saco. Eles sao verdadeiramente irresponsaveis. Entao esta decidido, julgado e acertado: nao lhes farei mal nenhum.

Ao descrever todos esses pensamentos, que realmente passaram pela minha cabeca ja faz tantos anos e que agora voltam em tropel com uma terrivel nitidez, penso ate que ponto o silencio absoluto, o isolamento completo, total, infligido a um homem moco, fechado numa solitaria, podem provocar, antes de causarem a loucura, uma verdadeira vida imaginativa. Tao intensa, tao viva, que o homem literalmente se desdobra. Ele sai voando e vai passear onde melhor lhe parece. Rememora sua casa, seu pai, sua mae, sua familia, sua infancia, as diversas etapas da sua vida. E, alem de tudo isso, viaja pelos castelos da Espanha que o seu espirito fecundo inventa, com imaginacao tao incrivelmente aguda, que, nesse desdobramento fabuloso, chega a crer que vive tudo aquilo que esta sonhando.

Trinta e seis anos ja se passaram, mas e sem o menor esforco de memoria que a minha caneta corre para relembrar o que realmente pensei naquele momento da minha vida.

Pois bem, nao vou fazer mal aos jurados. Mas, o promotor publico? Ah, esse nao me escapa! Alias, tenho para ele uma receita ja pronta, dada por Alexandre Dumas em O Conde de Monte Cristo: aquele sujeito metido no calabouco e que deixavam morrer de fome.

E ele o grande responsavel. Abutre vestido de vermelho, merece ser executado da maneira mais horrivel. Logo depois de liquidar Polein e os tiras, tratarei exclusivamente dessa ave de rapina. Alugarei uma casa isolada. Devera ter uma adega muito profunda, com paredes espessas e uma porta pesada. Se a porta nao for bastante grossa, eu a forrarei com um colchao e estopa. Quando tiver a casa, localizarei e raptarei o homem. Como ja terei pregado aneis de ferro na parede, amarro-o com uma corrente logo que chegar. Entao comeco a degustar a boa sopa!

Estou em frente dele, vejo-o com extraordinaria precisao atraves das minhas palpebras fechadas. Sim, olho-o da mesma maneira que ele me olhava no tribunal. A cena e tao clara e nitida, que sinto o calor do seu halito no meu rosto, pois estou perto dele, face a face, quase que nos tocamos.

Seus olhos de gaviao estao deslumbrados e apavorados pelo facho de uma lanterna muito forte que projeto sobre ele. Grossas gotas de suor escorrem em seu rosto congestionado. Sim, ouco minhas perguntas, escuto suas respostas. Vivo intensamente esse momento.

“Seu grandessissimo porco, voce me reconhece? Sou eu, Papillon, que voce despachou tao alegremente para os ‘duros’ (*). Voce acha que valeu a pena ter estudado tantos anos para chegar a ser um homem muito instruido, ter passado noites em claro debrucado sobre os codigos romanos e outros, ter aprendido o latim e o grego, sacrificado anos de juventude, para ser um grande orador? Para chegar a que, seu corno? A criar uma nova e boa lei social? A convencer os povos de que a paz e a melhor coisa do mundo? A pregar a filosofia de uma maravilhosa religiao? Ou simplesmente a influenciar os outros, gracas a superioridade do seu preparo universitario, para que se tornem melhores e deixem de ser malvados? Diga, voce empregou o seu saber para salvar os homens ou para afoga-los?

“Nada disso, uma so aspiracao faz voce agir: subir, subir sempre. Escalar todos os degraus da sua carreira nojenta. A gloria para voce consiste em ser o melhor fornecedor das penitenciarias, o provedor desenfreado do carrasco e da guilhotina.

“Se Deibler (**) fosse um pouco agradecido mandaria a cada fim de ano para voce uma caixa do melhor champanha. Nao foi gracas a voce, especie de porco, que ele conseguiu cortar cinco ou seis cabecas a mais neste ano? De qualquer maneira, sou eu quem prende voce agora, acorrentado solidamente nessa parede. Lembro-me do seu sorriso, lembro-me do seu ar triunfante, quando leram minha condenacao depois do requisitorio. Parece-me que foi ontem e contudo ja se passaram tantos anos. Quantos anos, dez, vinte?”

(*) Condenados a trabalhos forcados, em degredo, na colonia penal.

(**) Carrasco oficial da Franca em 1932.

Mas o que se passa comigo? Por que dez anos? Por que vinte anos? Apalpe-se bem, Papillon, voce e forte, jovem e na barriga tem 5 600 francos. Dois anos, sim, farei dois anos de perpetua, nada mais do que isso – e um juramento que faco a mim mesmo.

Ora, esta ficando bobo, Papillon. Esta celula, este silencio deixam voce louco. Estou sem cigarros. Acabo de fumar o ultimo. Vou andar pela cela. Afinal, nao preciso ter os olhos fechados, nem cobertos com o lenco para continuar a ver o que se vai passar. Muito bem, levanto-me. A celula tem 4 metros de comprimento, ou seja, cinco passos pequenos, desde a porta ate o muro. Comeco a caminhar, com as maos nas costas. E continuo o meu monologo:

“Bem. Como ja lhe disse, revejo muito claramente seu sorriso triunfante. Pois bem, vou transforma-lo numa careta horrorosa. Assim mesmo, voce tem uma vantagem que eu nao tinha: eu nao podia gritar, mas voce pode. Que vou fazer com voce? A receita de Dumas? Deixar voce morrer de fome? Nao, isso nao basta. Primeiro, eu furo os seus olhos. Assim, voce nao podera mais me ver, mas, por outro lado, eu nao terei o prazer de ler as suas reacoes em suas pupilas. Sim, tem razao, nao vou fura-los agora. Fica para mais tarde.

“Vou cortar a sua lingua, essa lingua tao terrivel, que corta como uma faca – mais do que como uma faca, como uma navalha! Essa lingua que voce prostituiu a sua gloriosa carreira. A mesma lingua com que voce fala gostoso a sua mulher, aos seus filhos e a sua amante. Mas, que amante! Uma amante, voce? Nada disso, acho que voce deve ter um macho, isso sim! Voce so pode ser um invertido sem-vergonha. De fato, preciso comecar cortando sua lingua, porque ela e, depois do cerebro, o maior instrumento das suas malvadezas. Gracas a ela, que voce sabe manejar tao bem, conseguiu convencer o juri a responder ‘sim’ as perguntas formuladas.

“Gracas a ela, voce apresentou os policiais como homens corretos, que se sacrificam pelo dever; gracas a ela, a historia falsa da testemunha conseguiu manter-se de pe. Gracas a ela, eu aparecia aos doze patetas dos jurados como o homem mais perigoso de Paris. Se nao fosse essa sua lingua tao perfida, tao habil, tao convincente, tao bem treinada em deformar a gente, os fatos e as coisas, eu estaria ainda sentado no terraco do Grand Cafe da Place Blanche, de onde nunca teria de sair. Entao esta entendido, vou arrancar essa lingua. Mas com que instrumento?”

Caminho pela cela sem parar, minha cabeca esta girando, mas estou sempre face a face com ele… quando, de repente, a lampada se apaga e a luz do dia consegue infiltrar-se, muito fraca, pelas frestas da tabua da janela.

Como? Ja e dia? Passei a noite toda me vingando? Que belas horas acabo de passar! Essa noite tao longa, como foi curta!

Fico escutando, sentado na cama. Nada se ouve. Silencio total. De vez em quando, ouco um ligeiro clique na minha porta. E o guarda que, de chinelos para nao fazer barulho, faz correr o pequeno tampo de ferro, a fim de espiar pelo visor minusculo que lhe permite vigiar-me sem que eu o perceba.

A maquina concebida pela Republica Francesa chegou a segunda etapa. Funciona maravilhosamente, pois na primeira eliminou um homem que lhe podia causar aborrecimentos. Mas isso nao basta. E preciso que esse homem nao morra depressa demais, e preciso que nao escape pelo suicidio. Precisam dele. Que aconteceria com a administracao da penitenciaria se nao houvesse prisioneiros? Estariam bem arranjados. Entao, e preciso vigiar o preso. Ele tem que seguir para a colonia penitenciaria, onde servira para fazer viver outros funcionarios. Volto a ouvir o clique na porta da cela, e isso me faz sorrir.

Nao se preocupe, carcereiro vagabundo, nao vou escapar. Pelo menos, nao da maneira que voce receia: o suicidio.

So peco uma coisa: continuar a viver no melhor estado de saude possivel e partir logo para essa Guiana Francesa, para onde, gracas a Deus, voces fazem a besteira de me enviar.

Eu sei que os seus colegas, meu velho carcereiro que produz o clique a todo momento, nao sao inocentes coroinhas. Voce e um bom velho, comparado com os guardas da colonia penal. Ja sei disso ha muito tempo, pois Napoleao, quando criou a colonia penal e lhe perguntaram: “Quem ira guardar esses bandidos?”, respondeu: “Outros mais bandidos que eles”. Mais tarde pude verificar que o fundador nao havia mentido.

Clique-claque, uma portinhola de 20 centimetros por 20 se abre no meio da porta. Passam o cafe e uma bola de pao de 750 gramas. Ja estando condenado, nao tenho mais o direito de frequentar o restaurante, mas, sempre pagando, posso comprar cigarros e alguma comida numa modesta cantina. Mais alguns dias e nao havera mais nada. A Conciergerie e a antecamara da reclusao. Fumo com delicia um Lucky Strike, cada pacote custa 6,60 francos. Comprei dois. Gasto meu peculio, porque sera confiscado para pagamento das custas judiciarias.

Dega me manda dizer para ir a desinfeccao, por meio de um bilhetinho que encontrei dentro do pao: “Na caixa de fosforos estao tres piolhos”. Tiro os fosforos e encontro os piolhos, gordos e bem vivos. Sei o que isso significa. Vou mostra-los ao vigilante e amanha ele vai me mandar, com todas as minhas roupas, colchao inclusive, para a camara de vapor, para matar todos os parasitas – menos nos, e claro. De fato, no dia seguinte, la me encontro com Dega. Nenhum guarda na camara de vapor. Estamos sos.

– Obrigado, Dega. Gracas a voce, recebi o canudo.

– Nao te incomoda?

– Nao.

– Cada vez que voce for a privada, lave bem antes de tornar a coloca-lo.

– Sim. Creio que ele veda bem, pois as notas dobradas em sanfona estao em perfeito estado. No entanto, ja estou com ele faz sete dias.

– Entao e que e bom mesmo.

– O que voce pensa fazer, Dega?

– Vou me fingir de louco. Nao quero seguir para a colonia. Aqui na Franca cumprirei talvez oito ou dez anos. Tenho conhecidos e poderei conseguir pelo menos cinco anos de indulto.

– Quantos anos voce tem?

– Quarenta e dois.

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