– Voce esta louco! Se voce apanhar dez ou quinze anos, sai daqui velho. Voce tem medo de ir para os “duros”?
– Sim, tenho medo da colonia penal, nao tenho vergonha de dizer, Papillon. Veja, e terrivel na Guiana. Cada ano ha uma perda de noventa por cento. Um comboio substitui outro e os comboios sao de 1 800 a 2 000 homens. Se voce nao pega a lepra, apanha a febre amarela, ou a disenteria (que nao perdoa), ou a tuberculose, o paludismo, a malaria infecciosa. Se voce escapa de tudo isso, tem uma grande chance de ser assassinado para lhe roubarem o canudo ou entao de morrer durante uma evasao. Acredite, Papillon, nao e para lhe tirar a coragem que digo isso, mas conheci varios forcados que voltaram a Franca depois de terem cumprido pequenas penas, de cinco ou sete anos, e sei o que estou dizendo. Sao verdadeiros farrapos humanos. Passam nove meses por ano no hospital e, no que se refere as fugas, dizem que nao e sopa, como muita gente acredita.
– Acredito em voce, Dega, mas tenho confianca em mim e la nao hei de esquentar lugar durante muito tempo, fique certo. Sou marinheiro, conheco o mar e voce pode estar certo de que nao demoro a dar o fora. E voce? Ja pensou no que e cumprir dez anos de reclusao? Se descontarem cinco, o que nao e certo, pensa que podera aguentar, sem ficar louco, no isolamento completo? Neste momento, nesta cela, onde estou sozinho, sem livros, sem sair, sem poder falar com ninguem, as 24 horas de cada dia nao devem ser multiplicadas por sessenta minutos, mas por seiscentos, e ainda assim estara longe da verdade.
– E possivel, mas voce e moco e eu tenho 42 anos.
– Escuta, Dega, francamente, de quem voce tem mais medo? Nao e dos outros sentenciados?
– Sim, francamente, Papi. Todo mundo sabe que sou milionario, e dai a me assassinarem pensando que eu carrego cinquenta ou cem mil “pacotes” e so um passo.
– Escuta, vamos fazer um pacto? Voce me promete nao bancar o louco e eu prometo estar sempre perto de voce. Cada um se encosta no outro. Eu, nem precisa que diga, sou forte e rapido, aprendi a lutar muito moco e sei muito bem manejar a faca. Portanto, quanto aos outros forcados, pode ficar sossegado: seremos nao so respeitados, mas temidos. Para a fuga, nao precisamos de ninguem. Voce tem grana, eu tenho grana, sei usar uma bussola e dirigir um barco. Que e que voce quer mais?
Ele me olha bem firme nos olhos… nos abracamos. O pacto esta assinado.
A porta se abre dentro de alguns instantes. Ele parte para um lado com seus trocos e eu sigo para o meu. Nao ficamos muito longe um do outro e vamos poder as vezes conversar no barbeiro, no medico ou na capela aos domingos.
Dega se estrepou no negocio dos bonus falsos da Defesa Nacional. Eram fabricados por um falsario, de modo muito original. Ele clareava os bonus de 500 francos e tornava a imprimir em cima, com toda a perfeicao, titulos de 10 000 francos. O papel permanecia o mesmo, eles eram aceitos com toda a confianca pelos comerciantes e pelos bancos. A coisa durava havia muitos anos e a secao de fraudes financeiras do Departamento de Investigacoes nao sabia mais onde dar com a cabeca, ate que um dia um tal de Brioulet foi preso em flagrante. Louis Dega estava bem sossegado a frente do seu bar em Marselha, onde se reunia todas as noites a fina flor do submundo do sul da Franca e que servia de ponto de encontro internacional para os grandes traficantes do vicio de todo o mundo.
Era milionario em 1929. Um dia, uma mulher bem vestida, moca e bonita, aparece no bar. Quer falar com Monsieur Louis Dega.
– Sou eu, minha senhora, que deseja? Entre na sala ao lado, por favor.
– Acontece que eu sou a mulher de Brioulet – disse ela. – Ele esta preso em Paris, por haver passado bonus falsos. Estive com ele no parlatorio da prisao da Sante e ele me mandou pedir ao senhor 20 000 francos para pagar o advogado.
E entao que um dos grandes reis do vicio da Franca, Dega, diante do perigo de uma mulher que estava a par do seu papel no negocio, so encontra a unica resposta que nao deveria dar:
– Minha senhora, nao conheco o seu homem e, se voce precisa de dinheiro, va fazer a vida. Ganhara mais dinheiro do que precisa, bonita como e.
A coitada da mulher, muito ofendida, sai correndo, em lagrimas, e vai contar toda a cena ao seu marido. Indignado, Brioulet, no dia seguinte, conta tudo o que sabia ao juiz de instrucao, acusando formalmente Dega de ser o homem que fornecia os bonus falsos. Um mes mais tarde, Dega, o falsario, o gravador e onze cumplices eram presos na mesma hora em diferentes lugares e logo trancafiados. Compareceram ao tribunal do Sena e o processo durou catorze dias. Cada acusado foi defendido por um grande advogado. Brioulet nunca se retratou. Conclusao: por causa de uns desgracados 20 000 francos e uma palavra idiota, o maior lider do vicio na Franca, arruinado, envelhecido de um decenio, pegou quinze anos de trabalhos forcados. Esse era o homem com quem eu acabava de assinar um pacto de vida e de morte.
O Dr. Raymond Hubert me veio visitar. Nao estava muito animado. Nao lhe fiz qualquer recriminacao.
Um, dois, tres, quatro, cinco, meia volta… Um, dois, tres, quatro, cinco, meia volta. Ha varias horas que faco essas idas e vindas da janela a porta da minha cela. Fumo, sinto-me consciente, equilibrado e capaz de aguentar qualquer coisa. Prometo a mim mesmo nao pensar mais na vinganca, por enquanto.
Deixemos o promotor no ponto em que ficou, amarrado as argolas do muro, a minha frente, sem que eu tenha decidido ainda de que maneira acabar com ele.
De repente, um grito, um grito desesperado, agudo, horrivelmente angustiado, consegue atravessar a porta da minha cela. Que sera isso? Parece que estao torturando um homem; contudo, aqui nao estamos na policia judiciaria. Nao ha meio de saber o que se passa. Esses gritos na noite me perturbam. Talvez seja um louco. E tao facil ficar louco nestas celas onde nada chega ate nos. Falo sozinho, em voz alta, pergunto a mim mesmo: “E o que e que voce tem com isso? Pense em voce, so em voce e em Dega, seu novo socio”. Abaixo, levanto, finalmente dou um soco no peito. Doeu muito, portanto tudo vai bem. Os musculos dos meus bracos funcionam perfeitamente. E as pernas? Felicitacoes, pois ha mais de dezesseis horas que estou andando e nao sinto nenhum cansaco.
Os chineses inventaram a gota de agua que cai sobre a cabeca do prisioneiro. Os franceses, por sua vez, inventaram o silencio. Suprimem qualquer meio de distracao. Nem livros, nem papel, nem lapis, a janela fortemente gradeada esta completamente tapada por tabuas, com alguns buraquinhos para deixar passar um pouco de luz muito filtrada.
Muito impressionado pelo grito dilacerante, volto-me como um animal preso numa gaiola. Tenho realmente a sensacao de estar abandonado por todos e estar literalmente enterrado vivo. Sim, estou completamente so e tudo o que chegar ate mim nao sera mais que um grito.
Abrem a porta. Aparece um velho padre. Voce nao esta sozinho, ha um padre ai, na sua frente.
– Meu filho, boa noite. Desculpe nao ter vindo antes, mas estava de ferias. Como vai voce? – E o bom velho padre entra sem cerimonia na cela e senta-se sem hesitacao no meu catre.
– De onde voce e?
– Do departamento de Ardeche.
– Seus pais?
– Mamae morreu quando eu tinha onze anos. Meu pai gostava muito de mim.
– Que fazia ele?
– Era professor primario.
– Ainda e vivo?
– Sim.
– Por que voce fala no passado, se ele esta vivo?
– Porque ele esta vivo, mas eu estou morto.
– Oh, nao diga isso! Que foi que voce fez?
Como num relampago, passa pela minha cabeca a ideia de que seria ridiculo dizer que sou inocente. Respondo logo:
– A policia diz que matei um homem e, se ela diz isso, deve ser verdade.
– Era um comerciante?
– Nao, era um rufiao.
– E e por causa de uma historia de submundo que condenaram voce aos trabalhos forcados perpetuos? Nao compreendo, Foi um assassinato?
– Nao, um homicidio.
– E inacreditavel, meu pobre filho. Que posso fazer por voce? Quer rezar comigo?
– Seu padre, me perdoe, nao recebi nenhuma educacao religiosa, nao sei rezar.
– Nao tem importancia, meu filho, vou rezar por voce. O bom Deus ama todos os seus filhos, batizados ou nao. Repita cada palavra que eu digo, voce quer?
Seus olhos sao tao suaves, sua cara redonda mostra tanta luminosa bondade, que tenho vergonha de recusar e, tendo-se ajoelhado, faco como ele: “Pai nosso, que estais no ceu…” As lagrimas me vem aos olhos e o bom padre, vendo isso, recolhe na minha cara, com seu dedo gordo, uma grossa lagrima, que leva aos labios e bebe.
– Suas lagrimas, meu filho, sao para mim a maior recompensa que Deus podia me enviar hoje atraves de voce. Obrigado.
E, levantando-se, ele me beija na testa.
Estamos novamente sentados no catre, lado a lado.
– Ha quanto tempo que voce nao chorava?
– Catorze anos.
– Catorze anos, por que?
– No dia da morte da minha mae.
Pega a minha mao e diz:
– Perdoa aos que tanto te fizeram sofrer.
Arranco a minha mao da sua e, de um pulo, estou novamente de pe no meio da cela.
– Ah, nao! Isso nao! Nunca hei de perdoar. E o senhor quer que lhe diga uma coisa, padre? Pois bem, cada dia, cada noite, cada hora, cada minuto, passo meu tempo a imaginar quando, como, de que maneira poderei matar todos aqueles que me enviaram para ca.
– Voce diz e acredita nisso, meu filho. Voce e moco, muito moco. Quando tiver mais idade, renunciara as ideias de castigo e de vinganca.
Agora, 34 anos mais tarde, penso como ele.
– Que posso fazer por voce? – repete o padre.
– Um delito, padre.
– Qual?
– Ir a cela 37 para dizer a Dega que mande fazer pelo seu advogado um pedido para ser transferido a Central de Caen; diga a ele que ja fiz meu pedido hoje.