inocentes. E, agora, o que significa isso, destruir as poucas coisas que possuimos? Sua ira parece justificada, mas nao esqueca que o dia em que nao deixar um minimo de vida agradavel para os forcados, neste dia, entao sim, pode ocorrer uma revolta, a revolta dos desesperados, a revolta de um suicidio coletivo; morrer por morrer, morreremos todos juntos: guardas e forcados. Sr. Dutain, falei de coracao aberto, acredito que o senhor mereca de nos toda a franqueza, pelo simples fato de ter vindo ate a gente para se informar antes de tomar decisoes. Deixe-nos em paz.
– E aqueles que estao comprometidos? – fala de novo Filissari.
– Voces que os procurem. Nos nao sabemos de nada, nao podemos ser uteis para voces a esse respeito. Repito, esta historia e uma loucura de porra-loucas, nada temos a ver com isso.
– Senhor Filissari, depois dos homens entrarem na choca dos perigosos, mande fechar as portas ate nova ordem. Dois guardas na porta, nenhuma sevicia contra esses homens e nada de destruir o que lhes pertence. Vamos.
E foi embora com os outros guardas.
Ufa! Livramos por pouco. Ao fechar a porta, Filissari me sai com esta:
– Voce teve sorte que eu seja napoleonista!
Em menos de uma hora, quase todos os homens do nosso bloco ja entraram. Faltam dezoito: os guardas percebem que, na sua precipitacao, os fecharam em outros blocos. Quando eles se juntam a nos, ficamos sabendo o que aconteceu, pois estes homens estavam no servico. Um ladrao me conta baixinho:
“Imagine, Papi, que a gente tinha puxado uma pedra de quase 1 tonelada durante 400 metros mais ou menos. O caminho onde icamos as pedras nao tem trechos muito ingremes e chegamos ate um poco a mais ou menos 50 metros da casa do comandante. Este poco sempre serviu de parada. Esta a sombra dos coqueiros e na metade do caminho que a gente tem que fazer. Entao, paramos, como de costume, puxamos um grande balde de agua fresca e bebemos. Alguns molharam o lenco para botar na cabeca. Como a parada e de uns dez minutos, o guarda tambem se sentou na beirada do poco. Ele tirou o capacete e estava enxugando a testa e a cabeca com um grande lenco, quando Arnaud se aproximou por tras com uma enxada na mao sem levanta-la, assim ninguem podia gritar para avisar o guarda. Levantar a enxada e abater o gume bem no meio da cabeca do guarda foi um movimento que durou so um segundo. Com a cabeca aberta em dois, o guarda se esticou sem um grito. Assim que ele caiu, Hautin. que estava naturalmente colocado na frente dele, apanhou o fuzil e Marceau lhe tirou o cinturao com o revolver. De revolver na mao, Marceau se voltou para a turma toda e disse: “E uma revolta. Quem estiver com a gente, que nos siga”. Nenhum dos serventes se mexeu, nem gritou, e nenhum dos homens da turma de servico manifestou a intencao de segui-los. Arnaud nos olhou a todos – prossegue o cara – e nos diz: “Corja de covardes, vamos mostrar para voces o que e ser homem!” Arnaud tomou o fuzil das maos de Hautin e os dois correram na direcao da casa do comandante. Marceau ficou ai, um pouco afastado. Ele tinha na mao o revolver grande e dava ordens: “Nao se mexam, nao falem, nao gritem. Voces, arabes sujos, deitem de cara no chao”. De la onde estava, vi tudo o que aconteceu.
“Quando Arnaud estava subindo a escada para entrar na casa do comandante, o arabe que trabalha la, nesse momento preciso, abriu a porta com duas criancas, com uma no colo e dando a mao a outra. Os dois ficaram espantados, o arabe com a guria no colo deu um pontape em Arnaud. Este quis matar o arabe, mas o cara se defendeu botando a crianca na frente dele. Ninguem gritou. Nem o arabe, nem os outros. Quatro ou cinco vezes, o fuzil foi dirigido de angulos diversos contra o arabe. Toda vez, ele botava a guria na frente do cano. Sem subir a escada, Hautin segurou a bainha das calcas do arabe. Ele estava para cair e, ai, de uma vez so, jogou a guria contra o fuzil de Arnaud. Desequilibrando-se na escada, Arnaud, a guria e o arabe, que Hautin puxava pela perna, cairam embolados. Ai surgiram os primeiros gritos, no inicio das criancas, depois do arabe, seguidos pelos insultos de Arnaud e Hautin. O arabe pegou no chao, mais rapido do que eles, a arma que tinha caido, mas segurou-a com a mao esquerda e apenas pelo cano. Hautin pegou novamente a perna dele nas maos. Arnaud lhe segurou o braco direito e lhe deu uma chave de braco. O arabe jogou o fuzil a mais de 10 metros.
“No momento em que os tres se precipitavam para apanha-lo, houve o primeiro tiro, foi um guarda do servico de folhas secas. O comandante apareceu pela janela e comecou a dar tiros, um em cima do outro, mas, com medo de ferir o arabe, atirou no lugar onde estava o fuzil. Hautin e Arnaud fugiram na direcao do campo pela estrada a beira-mar, perseguidos pelos tiros. Hautin, com sua perna dura, corria mais devagar e foi abatido antes de chegar ao mar. Arnaud entrou na agua, voce sabe, entre a piscina em construcao e a dos guardas. La esta sempre cheio de tubaroes. Arnaud foi cercado pelos tiros, ja que um outro guarda veio ajudar o comandante e o guarda das folhas secas. Arnaud estava atras de uma grande pedra.
“- Se entregue – gritaram os guardas – e nos poupamos a sua vida!
“- Nunca – respondeu Arnaud -, prefiro servir de boia para os tubaroes, assim nunca mais verei suas caras de fodidos.
“E entrou no mar, direto no lugar dos tubaroes. Acho que ele levou um tiro, porque, num determinado momento, parou. Apesar disso, os guardas continuaram a atirar. Ele continuou caminhando, sem nadar. O peito dele ainda nao tinha afundado todo na agua, quando os tubaroes atacaram. Vimos muito bem quando ele deu um soco num tubarao que, metade fora da agua, se jogou sobre ele. Depois, foi totalmente esquartejado pelos tubaroes, que puxavam por todos os lados, sem cortar os bracos nem as pernas. Em menos de cinco minutos, tinha desaparecido.
“Os guardas deram pelo menos cem tiros de fuzil na massa constituida por Arnaud e os tubaroes. So morreu um tubarao, cujo corpo chegou na praia de barriga para cima. Como tinham chegado guardas por todos os lados, Marceau pensou em salvar a pele jogando a arma no poco, mas os arabes se levantaram e, com pauladas, com pontapes e com os proprios punhos, o empurraram na direcao dos guardas, dizendo que ele estava metido no golpe. Embora estivesse cheio de sangue e com as maos para cima, os guardas o mataram com tiros de revolver e fuzil e, para acabar com ele, um guarda lhe esmagou a cabeca com uma coronhada de carabina usada como tacape.
“Todos os guardas descarregaram os revolveres sobre Hautin. Cada um tinha 36 tiros; morto ou vivo, ele levou quase 150 tiros. Os sujeitos que foram mortos por Filissari sao homens que os arabes denunciaram como se tivessem tentado, no inicio, seguir Arnaud e que depois desistiram por medo. Mentira pura, porque, se tinha cumplices, ninguem se mexeu.”
Ja faz dois dias que estamos todos trancados nas salas correspondentes a cada categoria. Ninguem sai para trabalhar. Na porta, as sentinelas se revezam a cada duas horas. Proibido falar de um bloco para o outro. Proibido aproximar-se das janelas. E da passagem formada pelas duas fileiras de redes que, ficando um pouco recuado, pela porta gradeada, um preso pode ver o patio. Como reforcos, chegaram guardas de Royale. Nenhum preso sai. Os arabes tambem estao controlados. Todo mundo esta trancado. De vez em quando, sem grito, sem brutalidade, ve-se passar um homem pelado que, seguido por um guarda, se dirige para as solitarias. Pelas janelas laterais, os guardas olham com frequencia para dentro da sala. Na porta, uma a direita, uma a esquerda, ficam as duas sentinelas. A duracao do plantao e curta, duas horas, mas nao se sentam nunca, nem botam a arma a tiracolo: a carabina fica encostada no braco, pronto para atirar.
Resolvemos jogar poquer em pequenos grupos de cinco. Nada de marselhesa, nem de jogos com muita gente, sao muito barulhentos. Marquetti, que tocava uma sonata de Beethoven no violino, foi obrigado a parar.
– Para com esta musica. Nos, guardas, estamos de luto.
Uma tensao pouco comum paira nao so na choca, mas no campo inteiro. Nada de cafe. Nada de sopa. Uma bola de pao pela manha,
– Se voce quiser que se apague o fogo, venha apaga-lo voce mesmo.
Entao, o guarda atirou varias vezes pela janela. Cafe e fogo foram rapidamente destrocados.
Niston recebeu uma bala na perna. Tamanha e a tensao, que a gente pensou que eles comecavam a nos fuzilar e nos jogamos todos de brucos no chao.
O chefe do posto de guarda, neste momento, ainda e Filissari. Ele corre feito louco, acompanhado por seus quatro guardas. O guarda que atirou explica o que aconteceu, e um tipo de Auvergne. Filissari o insulta em corso, e o outro, que nao entende bulhufas, nao sabe o que responder:
– Nao entendo…
Voltamos para as nossas redes. A perna de Niston sangra.
– Nao diga que estou ferido, podem acabar comigo la fora.
Filissari se aproxima da grade. Marquetti fala com ele em corso. Ele diz:
– Faca seu cafe, o que acaba de acontecer nao se repetira.
E vai embora.
Niston teve a sorte de a bala nao ter ficado dentro: penetrou na parte inferior do musculo e saiu na metade da perna. Amarram a perna dele para estancar o sangue e fazem um curativo com vinagre.
– Papillon, saia.
Sao 8 horas da noite, portanto ja esta escuro.
O guarda me chama, nao o conheco, deve ser um bretao.
– Por que vou sair a esta hora? Nao tenho nada para fazer ai fora.
– O comandante quer falar com voce.
– Diga para ele vir aqui. Eu nao saio.
– Recusa?
– Sim, recuso.
Meus amigos me cercam. Fazem um circulo a minha volta. O guarda fala da porta fechada. Marquetti vai ate a porta e diz:
– Nao deixaremos Papillon sair sem a presenca do comandante.
– Mas e ele que o manda buscar.
– Diga para vir ele mesmo.
Uma hora depois, dois jovens guardas aparecem na porta. Estao acompanhados pelo arabe que trabalha na casa do comandante. Aquele que o salvou e que impediu a revolta.
– Papillon, sou eu, Mohamed. Venho busca-lo, o comandante quer falar com voce, ele nao pode vir ate aqui.
Marquetti me diz:
– Papi, o sujeito esta armado com um fuzil.
Saio entao do circulo dos meus amigos e me aproximo da porta. De fato, Mohamed tem um fuzil debaixo do braco. Nos trabalhos forcados acontecem as coisas mais incriveis. Um forcado oficialmente armado de fuzil!
– Venha – me diz o arabe -, estou aqui para lhe proteger e defender, se for necessario.