e a visibilidade baixou a uns poucos metros. Mercer freou de maneira tao repentina que Calvert quase veio chocar-se contra ele; Myron e que realmente se chocou contra Calvert, por pouco nao o jogando fora da balaustrada.
— Calma! — disse Mercer. — Vamos abrir mais a fila, de modo que mal possamos ver uns aos outros. E nao se deixem acelerar, pois eu posso ser obrigado a parar de repente.
Num fantasmagorico silencio, continuaram a descer escorregando atraves do nevoeiro. Calvert conseguiu ainda ver Mercer como uma vaga sombra dez metros adiante dele, e quando olhava para tras distinguiu o vulto de Myron as suas costas, separado pela mesma distancia. Sob certos aspectos, isso era ainda mais fantastico do que descer na escuridao total da noite ramaiana; naquela ocasiao, pelo menos, a luz do projetor lhes mostrava o caminho. Mas agora, era como mergulhar em alto mar com pouca visibilidade.
Impossivel calcular que distancia haviam percorrido. Calvert conjeturou que estivessem quase a alcancar o quarto nivel quando Mercer repentinamente tornou a frear. Depois que os tres se reuniram, ele cochichou:
— Prestem atencao! Voces nao ouvem alguma coisa?
— Sim — disse Myron depois de escutar durante um minuto. — Parece ser o vento.
Calvert tinha suas duvidas. Voltou a cabeca para todos os lados, procurando determinar a direcao de onde provinha o debilissimo murmurio que chegava ate eles atraves do nevoeiro. Por fim abandonou a tentativa como inutil.
Continuaram a descida, alcancaram o quarto nivel e partiram para o quinto. O som ia se tornando cada vez mais forte — e mais obsessivamente familiar. Estavam na metade do quarto lance de escadaria quando Myron gritou:
— Agora reconhecem?
Teriam identificado o som ha muito tempo se fosse algo que pudessem associar com qualquer mundo que nao fosse a Terra. Atraves da neblina, vindo de uma origem cuja distancia nao podia ser avaliada, chegava aos ouvidos dos tres homens o reboar ininterrupto de uma cascata. Alguns minutos depois o teto de nuvens cessou tao abruptamente como havia comecado. Os tres mergulharam na intensa claridade do dia ramaiano, que a luz refletida pelas nuvens baixas tornava mais ofuscante ainda. La estava a ja conhecida planicie curva — agora mais aceitavel ao espirito e aos sentidos porque ja nao se podia ver o seu circulo completo. Nao era muito dificil fazer de conta que estavam olhando ao longo de um largo vale e que a curva ascendente do Mar era em realidade uma curva para fora.
Pararam na quinta e penultima plataforma a fim de informar que haviam atravessado a cobertura de nuvens e proceder a uma cuidadosa observacao do terreno. Tanto quanto pudessem ver, nada mudara la embaixo na planicie; mas ca em cima, na cupula setentrional, Rama havia engendrado um novo portento.
Era essa, pois, a origem do som que tinham ouvido! Descendo de uma fonte oculta entre as nuvens a tres ou quatro quilometros dali, havia uma catarata, que por longos minutos eles contemplaram em silencio, quase sem poder acreditar nos seus olhos. A logica lhes dizia que nesse mundo rodopiante nenhum objeto em queda livre podia mover-se em linha reta, mas havia qualquer coisa de horrivelmente inatural numa queda dagua que se curvava lateralmente para ir terminar a muitos quilometros do ponto situado diretamente abaixo da sua origem…
— Se Galileu tivesse nascido neste mundo — disse Mercer afinal, — teria enlouquecido procurando deduzir as leis da dinamica.
— Pois eu, que pensava conhece-las, estou enlouquecendo de qualquer jeito — replicou Calvert. — Isto nao o perturba, Professor?
— Por que havia de me perturbar? — disse o Sargento Myron. — E uma demonstracao perfeitamente natural do Efeito de Coriolis. Quem me dera poder mostrar isto a alguns de meus alunos!
Mercer contemplava pensativo a faixa liquida do Mar Cilindrico que circundava Rama.
— Repararam no que aconteceu a agua? — perguntou finalmente.
— E verdade, ja nao e tao azul. Eu diria que ficou verde-ervilha. Que significa isso?
— Talvez o mesmo que significa na Terra. Laura disse que o Mar era uma sopa organica a espera de que algo a sacudisse para cobrar vida.Talvez tenha sido exatamente isso o que aconteceu.
— No espaco de dois dias! Na Terra, levou milhoes de anos a acontecer.
— Trezentos e setenta e cinco milhoes, de acordo com as ultimas estimativas. Entao foi dai que veio o oxigenio! Rama passou como um relampago pelo estadio anaerobio e chegou as plantas fotossinteticas… em cerca de quarenta e oito horas. Que produzira ele amanha?
22 SINGRAR O MAR CILINDRICO
OUTRO CHOQUE os esperava ao pe da escadaria. No comeco, pareceu que alguma coisa havia atravessado o acampamento, derrubando aparelhos e ate reunindo pequenos objetos e levando-os consigo. Apos um breve exame, porem, o sentimento de alarma cedeu o lugar a um aborrecimento envergonhado.
O unico culpado era o vento. Embora tivessem amarrado todos os objetos soltos antes de partir, algumas cordas deviam ter rebentado sob o tirao de rajadas excepcionalmente fortes. Varios dias se passaram ate que conseguissem recuperar todas as suas propriedades dispersas. Fora isso, nao parecia ter havido alteracoes de vulto. O proprio silencio de Rama voltara a reinar, agora que estavam findas as efemeras tormentas de primavera. E la longe, na orla da planicie, havia um mar calmo a espera do primeiro navio num milhao de anos.
— Um barco novo nao deve ser batizado com uma garrafa de champanha?
— Mesmo que tivessemos champanha a bordo, eu nao permitiria tao criminoso desperdicio. De todo modo, agora e tarde. Ja lancamos o barco..
— Pelo menos, flutua. Voce ganhou a aposta, Jimmy. Pagarei quando voltarmos a Terra.
— E preciso dar-lhe um nome. Alguem tem uma ideia?
O objeto destes comentarios pouco lisonjeiros baloucava-se junto aos primeiros degraus da escadaria que conduzia ao Mar Cilindrico. Era uma pequena jangada construida com seis tambores vazios e uma leve armacao metalica. Sua construcao, montagem no acampamento Alfa e transporte a reboque, sobre rodas desmontaveis, atraves de mais de dez quilometros de planicie, haviam absorvido todas as energias da tripulacao durante varios dias. Era um empate de capital humano que precisava render.
O premio valia o risco. As enigmaticas torres de Nova Iorque, que reluziam a cinco quilometros de distancia na luz sem sombras, os tinham intrigado desde que penetraram em Roma. Ninguem duvidava de que a cidade — ou fosse la o que fosse — era o verdadeiro coracao daquele mundo. Tinham de alcancar Nova Iorque, ainda que nao fizessem outra coisa.
Ainda nao achamos um nome, Capitao. Que pensa o senhor?
Norton riu e ficou subitamente serio.
— Eu tenho um. Chamem de Resolution.
— Por que?
— Era uma das naus do Capitao Cook. Bonito nome. Meus votos sao de que nossa jangada faca jus a ele.
Houve um silencio pensativo, e finalmente a Sargenta Barnes, que fora a principal responsavel pelo desenho, solicitou tres voluntarios. Todos os presentes ergueram a mao.
— Lamento, mas so temos quatro casacos salva-vidas. Boris, Jimmy, Pieter… Voces ja foram marinheiros. Vamos experimenta-la.
Ninguem estranhou que uma sargenta tivesse assumido o comando das atividades: Ruby Barnes era a unica que tinha carta de capitao a bordo, e isso resolvia a questao. Havia navegado trimaras de corrida de um lado ao outro do Pacifico e uns poucos quilometros de calmaria podre nao poderiam representar um desafio para as suas habilidades.
Desde que vira pela primeira vez o Mar tinha resolvido fazer essa viagem. Havia milenios que o homem vinha arrostando as aguas do seu proprio mundo e nunca marinheiro algum enfrentara algo que mesmo remotamente se parecesse com aquilo. Nos ultimos dias, obsedara-a uma tola taodinha que nao podia libertar-se. «Singrar o Mar Cilindrico…» Pois era exatamente isso o que ia fazer.