O horror abandonou entao Gued, mas permanecia mortalmente temeroso, porque era Oguion, o Mago, que ali estava na entrada, com aquela luminosidade ao seu redor, o bordao de carvalho ardendo na sua mao com branco esplendor.

Sem uma palavra, o mago passou por Gued, foi acender a lampada e arrumou os livros na prateleira. Depois voltou-se para o rapaz e disse:

— Nunca faras aquele esconjuro, a nao ser em perigo do teu poder ou da tua vida. Foi por ele que abriste os livros?

— Nao, Mestre — murmurou o rapaz. E, envergonhadamente, contou a Oguion o que quisera procurar e porque.

— Nao te lembraste do que te disse? Que a mae dessa rapariga, a mulher do Senhor, e uma tecedora de encantamentos?

Na realidade, Oguion dissera-lho certa vez, mas Gued pouca atencao lhe prestara, embora soubesse agora que Oguion nunca lhe dizia nada sem ter uma boa razao para o fazer.

— A propria filha ja e meia feiticeira. Pode bem ter sido a mae quem mandou a rapariga falar contigo. Pode ter sido ela a abrir o livro na pagina que leste. Os poderes que ela serve nao sao aqueles que eu sirvo. Nao sei o que ela quer, mas sei que nao quer o meu bem. Gued, ouve-me agora com atencao. Nunca pensaste que o perigo rodeia forcosamente o poder, tal como a sombra rodeia a luz? A feiticaria nao e um jogo a que nos entreguemos pelo prazer ou pelos louvores. Pensa nisto. Cada palavra e cada ato da nossa Arte e dita e e feito ou para o bem ou para o mal. Antes de falares ou agires, tens de saber qual o preco a pagar!

Impelido pela vergonha que sentia, Gued bradou:

— Mas como hei de eu saber essas coisas se nao me ensinas nada? Desde que estou contigo, nunca fiz nada, nunca vi nada…

— Mas agora ja viste alguma coisa — interrompeu o mago. — Junto a porta, no escuro, quando eu entrei.

Gued ficou calado.

Oguion ajoelhou-se junto a lareira, preparou a lenha e acendeu-a, porque a casa estava fria. Depois, ainda ajoelhado, disse no seu brando tom de voz:

— Gued, meu jovem falcao, nada te prende a mim ou ao meu servico. Nao foste tu que vieste ao meu encontro, mas eu ao teu. Es muito jovem ainda para fazer essa escolha, mas nao posso faze-la por ti. Se assim quiseres, posso mandar-te para a Ilha de Roke, onde se ensinam todas as artes maiores. Qualquer uma a que te queiras dedicar, aprende-la-as, pois o teu poder e grande. Maior ate, espero eu, que o teu orgulho. Gostaria de manter-te aqui comigo, porque o que eu tenho e o que te falta, mas nao o farei contra tua vontade. Agora, escolhe entre Re Albi e Roke.

Gued ficou mudo, o coracao em tumulto. Acabara por ter amor aquele homem, Oguion, que com um toque da sua mao o curara e em quem nao havia ira. Amava-o e nao o soubera ate aquele momento. Olhou o bordao encostado ao canto da chamine, recordando o esplendor que libertara e como consumira o mal que viera das trevas. Ansiava por permanecer com Oguion e com ele vaguear atraves das florestas, por muito tempo e ate muito longe, aprendendo a manter o silencio. Mas havia nele outras ansias que nao podiam ser apaziguadas, o desejo de gloria, o desejo de agir. Oguion parecia-lhe uma longa estrada ate ao dominio da mestria, um lento caminho secundario por onde seguir, quando ele podia navegar levado pelos ventos marinhos ate ao Mar Interior, a ilha dos Sages, onde o proprio ar vibrava de encantamentos e o Arquimago caminhava entre maravilhas.

— Mestre — disse —, irei para Roke.

E assim, poucos dias mais tarde, numa soalheira manha de Primavera, Oguion percorreu a seu lado a ingreme estrada desde Overfell e ao longo de vinte quilometros ate ao Grande Porto de Gont. Ali, as portas da povoacao e entre dragoes esculpidos, os guardas da Cidade de Gont, ao verem o mago, ajoelharam apresentando-lhe as espadas nuas e dando-lhe as boas-vindas. Conheciam-no e faziam-lhe honras nao so por ordem do Principe, mas tambem por sua propria vontade, pois dez anos antes Oguion salvara a cidade do tremor de terra que teria sacudido e lancado por terra as torres dos ricos e fechado o canal entre os Bracos da Falesia com uma terrivel avalanche. O mago falara a Montanha de Gont, acalmando-a, e sossegara os (Tementes precipicios de Overfell como quem aquieta um animal assustado. Gued ouvira algo sobre isso e agora, maravilhando-se ao ver aqueles guardas armados ajoelhando perante o seu brando mestre, recordou essa historia. Relanceou os olhos, quase com medo, para aquele homem que fizera parar um terremoto. Mas o rosto de Oguion estava tao calmo como sempre.

Desceram depois ate as docas, onde o Mestre do Porto se apressou a vir acolher Oguion e inquirir qual o servico que poderia prestar-lhe. O mago disse-lho logo e ele nomeou um navio com destino ao Mar Interior, a bordo do qual Gued poderia seguir como passageiro.

— Ou poderao acolhe-lo como propiciador de vento — acrescentou —, se possuir a arte. Nao tem fazedor de tempo a bordo.

— Ele tem algum dominio sobre brumas e nevoeiros, mas nenhum sobre ventos marinhos — informou o mago, pousando ligeiramente a mao no ombro de Gued. — Nao tentes quaisquer truques com o mar e os ventos do mar, Gaviao. Ainda es um homem de terra. Mestre do Porto, qual e o nome do navio?

— Sombra, vindo das Andrades e com destino a Cidade de Hort com peles e marfim. E um bom navio, Mestre Oguion.

O rosto do mago toldou-se ao ouvir o nome da embarcacao, mas disse:

— Pois seja. Da esta mensagem ao guardiao da escola em Roke, Gaviao. Bons ventos te levem. Ate um dia!

E nao houve mais despedidas. O mago voltou costas e meteu rua acima, em largas passadas, afastando-se das docas. Gued, vendo o mestre afastar-se, sentiu-se desamparado.

— Vem dai, rapaz — disse o Mestre do Porto, e levou-o pela margem ate ao pontao onde o Sombra se aprestava para partir.

Podera parecer estranho que, numa ilha com uma largura de oitenta quilometros, numa aldeia no sope de penhascos que desde sempre olham o mar, uma crianca possa crescer e fazer-se homem sem nunca ter posto o pe num barco nem molhado os dedos na agua salgada, mas e assim. Lavrador, pastor de cabras, ou de vacas, cacador ou artifice, o homem de terra encara o mar como um dominio instavel e salgado que nao tem absolutamente nada a ver consigo. A aldeia a dois dias de caminho da sua propria aldeia e terra estrangeira, a ilha a um dia de navegacao da sua ilha apenas um boato, colinas de neblina que se avistam para la do mar e nao um chao solido como aquele sobre o qual caminha.

Assim, para Gued, que nunca descera das altas montanhas, o Porto de Gont era um lugar de admiracao e maravilha, com as grandes casas e torres de pedra talhada, a margem de pontoes e cais e bacias e cabecos de amarracao, o grande porto de mar onde meia centena de veleiros e gales balancavam junto ao paredao ou jaziam retirados da agua e virados para reparacoes ou permaneciam ancorados na angra de velas colhidas e as escotilhas dos remos fechadas, os marinheiros gritando em estranhos dialetos e os estivadores correndo com as suas cargas por entre barris, caixotes, rolos de corda e pilhas de remos, os mercadores, barbudos e de vestes guarnecidas de pele, conversando calmamente enquanto prosseguiam caminho ao longo das pedras limosas acima da agua, os pescadores descarregando a sua pescaria, os tanoeiros martelando, os calafates pregando, os vendedores de moluscos cantando e os patroes de bordo berrando e, para la de tudo isto, a baia, silenciosa, brilhante. De olhos, ouvidos e espirito desorientados, Gued seguiu o Mestre do Porto ate ao largo pontao onde o Sombra estava amarrado, e o Mestre do Porto levou-o ao mestre do navio.

Sem desperdicio de palavras, o mestre concordou em aceitar Gued como passageiro ate Roke, dado que fora um mago a pedi-lo, e o Mestre do Porto deixou o rapaz com ele. O mestre do Sombra era um homem grande e gordo, envergando um capote vermelho debruado com pele de pelaui como costumam usar os mercadores das Andrades. Nem sequer olhou para Gued, mas perguntou em voz tonitruante:

— Sabes mudar o tempo, rapaz?

— Sei.

— E trazer o vento?

A isto teve de responder que nao, pelo que o mestre lhe disse para procurar um sitio onde nao incomodasse ninguem e ficar la.

Os remadores entravam ja a bordo, pois a nave tinha de se deslocar para a angra antes do cair da noite e

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