para um ar limpido, onde a luz que restava do crepusculo iluminava ceu e mar. Por sobre as ondas coroadas de espuma viram, nao muito longe, um monte verde, alto e arredondado, e no seu sope uma cidade erigida numa pequena baia onde havia barcos, todos pacificamente ancorados.

O timoneiro, apoiando-se no seu longo leme, virou a cabeca e bradou:

— Mestre! Isto e terra verdadeira ou alguma feiticaria?

Mas o mestre de bordo limitou-se a rugir:

— Mantem a rota, seu cabeca de abobora! Remem, seus filhos de escravos! Ali e a baia de Thwil e o Cabeco de Roke, como qualquer idiota pode ver! Remem!

Assim, ao ritmo do tambor, exaustos, entraram remando na baia. Ali, a calma era tal que conseguiam ouvir as vozes das pessoas la em cima na cidade, um sino a tocar e, muito ao longe, o silvo e o rugido da tempestade. Para norte, leste e sul, a quilometro e meio em toda a volta da ilha, pairavam nuvens negras. Mas sobre Roke as estrelas surgiam uma a uma num ceu limpido e calmo.

3. A ESCOLA DE FEITICEIROS

Gued dormiu ainda essa noite a bordo do Sombra e de manha cedo despediu-se daqueles seus primeiros camaradas de mar, que alegremente lhe gritavam boa sorte enquanto ele se afastava pelas docas fora. A vila de Thwil nao e muito grande, com as suas altas casas a apinharem-se ao longo de umas poucas ruas ingremes e estreitas. Para Gued, porem, parecia uma cidade e, sem saber onde se dirigir, perguntou ao primeiro habitante que encontrou onde poderia encontrar o Guardiao da Escola que havia em Roke. O homem olhou-o de vies por um momento e disse:

— O sabio nao precisa de perguntar, o tolo pergunta em vao — apos o que seguiu o seu caminho.

Gued continuou a subir ate que desembocou numa praca, limitada em tres lados pelas casas com os seus telhados de ardosia em declive acentuado e, no quarto, pela fachada de um grande edificio, cujas poucas e pequenas janelas ficavam acima do topo das chamines das casas. O edificio mais parecia uma fortaleza ou castelo, construido com grandes blocos de uma pedra cinzenta. Na praca que dominava estavam armadas as tendas de um mercado e havia muitas idas e vindas de gente. Gued voltou a fazer a sua pergunta a uma velhota com um cesto de mexilhoes e logo ela lhe respondeu:

— Nem sempre podes encontrar o Guardiao onde ele esta, mas por vezes encontra-lo onde ele nao esta. — E seguiu caminho, a apregoar os seus mexilhoes.

Na parede do grande edificio, perto de uma esquina, havia uma pequena porta de madeira, com muito mau aspecto. Gued dirigiu-se a ela e bateu com forca. E disse ao homem idoso que lhe abriu a porta:

— Trago uma carta do Mago Oguion para o Guardiao da Escola que ha nesta ilha. Quero encontrar o Guardiao, mas ja nao estou para ouvir mais adivinhas nem trocas!

— A Escola e aqui — disse o anciao brandamente. — Eu sou o porteiro. Entra, se puderes.

Gued deu um passo em frente. Pareceu-lhe que tinha atravessado a entrada mas afinal permanecia no passeio, onde ja antes estava.

Uma vez mais deu um passo em frente e uma vez mais permaneceu do lado de fora da porta. O porteiro, la de dentro, observava-o benignamente.

Mais do que intrigado, Gued estava furioso, pois aquilo parecia-lhe mais uma maneira de trocar dele. Com a voz e a mao fez o esconjuro de Abrir que ja ha muito a tia lhe ensinara. Era o mais precioso entre todos os esconjuros que possuia e Gued teceu-o bem naquela ocasiao. Porem, nao passava de um feitico de bruxa e o poder que mantinha a porta intransponivel nem ao de leve foi abalado.

Quando o esconjuro falhou, Gued permaneceu por longo tempo ali parado, no passeio. Por fim, olhou o anciao que, la dentro, continuava a espera.

— Nao consigo entrar — confessou, embora de ma vontade —, a nao ser que me ajudes.

A isto o porteiro respondeu:

— Diz o teu nome.

E uma vez mais Gued permaneceu parado e silencioso por algum tempo, porque um homem nunca diz em voz alta o seu proprio nome, a nao ser que esteja em causa algo mais que a seguranca da sua vida.

Finalmente, disse em voz alta:

— Sou Gued. — E, dando um passo em frente, atravessou a entrada. Porem, embora a luz lhe desse por tras, pareceu-lhe que uma sombra o seguira, colada aos seus calcanhares.

Ao voltar-se, verificou tambem que a moldura da porta nao era de simples madeira, como pensara, mas sim de marfim, sem qualquer junta ou emenda. Soube mais tarde que fora cortada de um dente do Grande Dragao. E a porta que o anciao fechou atras dele era de corno polido, atraves do qual a luz do dia transluzia levemente, e na sua face interior via-se, talhada, a Arvore de Mil Folhas.

— Bem-vindo a esta casa, rapaz — disse o porteiro. E, sem mais palavras, conduziu-o atraves de salas e corredores ate um patio aberto, bem no interior das paredes do edificio. O patio era parcialmente pavimentado com lajes, mas nao tinha telhado e, num pedaco de relvado, uma fonte jorrava agua sob arvores jovens e a luz do Sol. Ali se quedou Gued esperando sozinho durante algum tempo. Permaneceu muito quieto, com o coracao a bater fortemente, pois parecia-lhe sentir presencas e forcas em acao, invisiveis mas reais, ao seu redor, e compreendeu que aquele lugar nao era construido apenas com pedra, mas com magia mais forte que a pedra. Encontrava-se na sala mais interior da Casa dos Sages, e ela abria-se para os ceus. E subitamente deu pela presenca de um homem trajando de branco que o observava atraves da agua que caia da fonte.

Quando os seus olhares se cruzaram, um passaro cantou alto nos ramos da arvore. Nesse momento, Gued compreendeu o canto da ave e a linguagem da agua tombando no tanque da fonte e a forma das nuvens e o inicio e final do vento que agitava as folhas. Pareceu-lhe que ele proprio era uma palavra dita pela luz do Sol.

E entao o momento passou e ele e o mundo ficaram como eram antes, ou quase como antes. Entao Gued adiantou-se a ajoelhar perante o Arquimago, estendendo-lhe a carta escrita por Oguion.

O Arquimago Nemmerle, Guardiao de Roke, era um homem velho, mais velho, dizia-se, que qualquer homem entao em vida. A sua voz trilou como a voz do passaro quando ele falou, acolhendo Gued bondosamente. O seu cabelo e barba eram brancos, tal como o seu manto, e ao olha-lo dir-se-ia que tudo o que pudesse ter havido nele de escuro ou de pesado fora retirado pelo lento desgaste dos anos, deixando-o branco e usado como madeira que andasse a deriva na agua durante todo um seculo.

— Os meus olhos estao velhos, rapaz — disse ele na sua voz tremula —, nao consigo ler o que me escreve o teu mestre. Le-me tu a carta.

Gued decifrou pois e leu em voz alta a escrita, que era em runas da lingua Hardic, e nao dizia senao isto: Senhor Nemmerle! Envio-vos alguem que, assim o vento sopre de feicao, sera o maior dos feiticeiros de Gont. A mensagem estava assinada, nao com o nome-verdadeiro de Oguion, que Gued nunca aprendera, mas com a runa do mago, a Boca Cerrada.

— Aquele que mantem o tremor de terra a trela foi quem te enviou e por isso es duplamente bem-vindo. O jovem Oguion era-me caro quando, de Gont, veio ate nos. E agora fala-me dos mares e dos portentos da tua viagem, rapaz.

— Uma bela viagem, Senhor, nao fora pela tempestade de ontem.

— Que navio te trouxe?

— O Sombra, com mercadorias das Andrades.

— Que vontade te enviou aqui?

— A minha.

O Arquimago olhou para Gued, depois desviou a vista e comecou a falar numa lingua que o rapaz nao compreendia, resmungando como e costume em alguem muito, muito velho e cujo siso se vai dispersando por entre os anos e as ilhas. E, no entanto, por entre o resmungo, havia palavras do que o passaro cantara e do que a agua dissera ao cair. Nao estava a lancar qualquer encantamento, mas havia um poder na sua voz que perturbou a mente de Gued a tal ponto que o rapaz ficou desnorteado e, por um instante, pareceu-lhe ver-se a si proprio num local estranho, vasto e deserto, sozinho entre sombras. Mas, mesmo assim e durante todo esse tempo, continuava no patio iluminado pelo sol, ouvindo cair a agua da fonte.

Um grande passaro negro, um corvo de Osskil, veio caminhando pelo terraco empedrado e pela erva. Veio

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