ate junto da fimbria do manto do Arquimago e ali ficou, todo negro, com o seu bico semelhante a uma adaga, os seus olhos como seixos polidos, mirando Gued de lado. Por tres vezes bicou o bordao branco a que Nemmerle se apoiava e o velho feiticeiro, cessando o seu resmungar, sorriu.

— Vai, rapaz. Corre e brinca — disse finalmente, como se falasse com uma criancinha.

Uma vez mais, Gued dobrou o joelho perante ele. Quando se voltou a erguer, o Arquimago desaparecera. So o corvo continuava a olha-lo, estendendo o bico como se quisesse bicar o bordao desaparecido.

Depois falou, no que Gued supos ser a lingua de Osskil.

— Terrenon assbaque! — crocitou. — Terrenon assbaque orrek! — E, tal como viera, assim se foi, no seu andar empertigado. Gued rodou sobre si proprio para abandonar o patio, perguntando-se para onde ir. Sob o arco da entrada foi abordado por um jovem alto que o acolheu muito cortesmente, com uma inclinacao de cabeca.

— Chamam-me Jaspe, filho de Enwit, do dominio de Eolg na Ilha de Havnor. Estou hoje ao teu servico, para te mostrar a Casa Grande e responder o melhor que puder as tuas perguntas. Como devo chamar-te, Senhor?

E ai afigurou-se a Gued, aldeao montanhes que nunca estivera entre os filhos de nobres e de mercadores ricos, que aquele individuo estaria a trocar dele com os seus «servicos» e «senhorias», mais as mesuras e salamaleques. Assim, respondeu secamente:

— Gaviao e como me chamam.

O outro aguardou um momento, como se esperasse resposta mais cortes e, nao vendo sinais dela, endireitou-se e desviou-se um pouco. Devia ter dois ou tres anos mais que Gued, era muito alto, movia-se e comportava-se com rigida elegancia, com trejeitos (na opiniao de Gued) de bailarino. Envergava um capote cinzento, com o capuz deitado para tras. O primeiro sitio onde levou Gued foi a sala do vestiario, para ali escolher, como aluno da escola, um capote identico que lhe ficasse a medida, bem como quaisquer outros artigos de vestuario de que precisasse. Gued envergou o capote cinzento-escuro que escolhera e Jaspe disse:

— Agora es um de nos.

Mas Jaspe tinha uma maneira de falar acompanhada de ligeiro sorriso que levava Gued a tentar descobrir alguma troca oculta nas suas delicadas palavras. Por isso respondeu, carrancudo:

— Serao as roupas que fazem o mago?

— Nao — retorquiu o rapaz mais velho. — Embora eu ja tenha ouvido dizer que sao as maneiras que fazem o homem… Onde queres ir agora?

— Onde tu queiras. Eu nao conheco a casa.

Jaspe levou-o consigo pelos corredores da Casa Grande, mostrando-lhe os patios descobertos e as salas abobadadas, a Sala das Estantes onde eram guardados os livros da antiga ciencia e os tomos de runas, o grande Salao da Lareira onde toda a escola se reunia nos dias festivos e, no andar superior, nas torres e sob os telhados, as pequenas celas em que dormiam alunos e Mestres. A de Gued era na Torre Sul, com uma janela que dava para os ingremes telhados da vila de Thwil e, por sobre estes, para o mar.

Tal como as outras celas de dormir, nao tinha quaisquer moveis para alem de um colchao de palha a um canto.

— Vivemos aqui de uma maneira muito simples — disse Jaspe. — Mas espero que nao te incomode.

— Ja estou habituado — retorquiu Gued. E depois, tentando mostrar-se a altura daquele jovem tao delicado e desdenhoso, acrescentou: — Suponho que nao seria o teu caso, quando para aqui vieste.

Jaspe olhou-o e o seu olhar dizia claramente, sem palavras: «O que poderias tu supor alguma vez acerca daquilo a que eu, filho do Senhor do Dominio de Eolg na Ilha de Havnor, estou ou nao habituado?» Mas o que Jaspe disse em voz alta foi apenas:

— Vem por aqui.

Enquanto estavam no andar superior, tinha soado um gongo e desceram ambos para a refeicao do meio- dia na Mesa Grande do refeitorio, juntamente com uma centena ou mais de rapazes e adolescentes. Cada um servia-se pessoalmente, brincando com os cozinheiros atraves dos postigos da cozinha que abriam para o refeitorio, enchendo o prato de grandes tigelas de comida que fumegavam sobre os peitoris, sentando-se a Mesa Grande nos lugares que mais lhes agradavam.

— Dizem — contou Jaspe a Gued — que, por muitos que se sentem a esta mesa, ha sempre lugar.

O certo e que havia espaco, tanto para muitos grupos barulhentos de rapazes que falavam pelos cotovelos e comiam vorazmente, como para individuos mais velhos, com os seus mantos cinzentos presos no pescoco com fechos de prata, que se sentavam mais comedidamente aos pares ou sozinhos, de rostos graves e meditativos, como quem tem muito em que pensar.

Jaspe levou Gued a sentar-se junto de um companheiro corpulento chamado Vetch, que pouco falava mas absorvia a comida com um apetite voraz. Tinha o sotaque da Estrema Leste e era muito escuro de pele, nao castanho-avermelhado como Gued e Jaspe e a maioria das gentes do Arquipelago, mas castanho-quase-negro. Era simples e pouco delicado de maneiras. Queixou-se do jantar depois de o ter comido, mas em seguida, virando-se para Gued, acrescentou:

— Pelo menos nao e uma ilusao, como a maior parte das coisas por aqui. Isto sempre se agarra aos ossos.

Gued nao entendeu o que ele poderia querer dizer, mas sentiu uma certa simpatia pelo rapaz e ficou satisfeito por permanecer com eles depois da refeicao.

Foram passear pela vila, a fim de Gued aprender a orientar-se por la. Por poucas e curtas que fossem as ruas de Thwil, viravam e contorciam-se bizarramente por entre as casas de altos telhados e era facil uma pessoa perder-se nelas. Era uma estranha vila, como estranha era a sua gente, pescadores, trabalhadores e artifices como quaisquer outros, mas tao habituados a feiticaria, que na Ilha dos Sages esta sempre em acao, que eles proprios tambem ja pareciam quase feiticeiros. Falavam (como Gued pudera verificar) por enigmas e nenhum deles piscaria sequer os olhos se visse um rapaz transformar-se em peixe ou uma casa erguer-se de repente nos ares. Tomando tais coisas por brincadeira de estudantes, continuariam a arranjar sapatos ou a desmanchar borregos, como se nada fosse.

Passando pela Porta Traseira e dando a volta pelos jardins da Casa Grande, os tres rapazes atravessaram as aguas claras do rio, o Thwilburn, por uma ponte de madeira e prosseguiram para norte, por entre bosques e pastagens. O caminho subia, serpenteante. Passaram por carvalhais onde a sombra era densa, mau grado o brilho do sol. Havia um bosque para o lado esquerdo e nao muito afastado, mas que Gued nunca conseguia ver perfeitamente. O caminho tambem nunca la chegava, embora parecesse estar sempre prestes a faze-lo. Nao era sequer capaz de descortinar de que arvores se tratava. Vetch, reparando em como Gued o fitava, disse suavemente:

— Aquele e o Bosque Imanente. Nao podemos la entrar ainda…

Nas pastagens aquecidas pelo sol, desabrochavam flores amarelas.

— Erva-fagulha — disse Jaspe. — Cresce onde o vento deixou cair as fagulhas do incendio de Ilien, quando Erreth-Akbe defendeu as Ilhas Interiores contra o Senhor do Fogo.

Soprou uma corola ja seca e as sementes, soltando-se, ergueram-se no vento, ao sol, como fagulhas ardentes.

O caminho, sempre subindo, conduziu-os ate a base e depois em volta de um grande monte verde, o monte que Gued avistara do navio, ao penetrarem nas aguas encantadas da Ilha de Roke. Chegados a encosta, Jaspe deteve-se.

— Na minha terra, em Havnor — disse ele —, ouvi falar muito da feiticaria gontiana, e sempre bem, por isso durante muito tempo desejei ver como seria. Agora, temos aqui um homem de Gont e estamos na encosta do Cabeco de Roke, cujas raizes se estendem ate ao centro da terra. Aqui, todos os encantamentos sao fortes. Faz- nos um truque, Gaviao. Mostra-nos o teu estilo.

Gued confuso e surpreendido, nada disse.

— De outra vez, Jaspe — interpos Vetch com o seu modo simples. — Deixa-o sossegado.

— Ora, ele ha de ter ou talento ou poder, senao o porteiro nao o teria deixado entrar. Por que nao havia de o mostrar, agora tanto como de outra vez? Nao e verdade, Gaviao?

— Tenho os dois, o talento e o poder — disse Gued. — Mostra-me o genero de coisa de que estas a falar.

— Ilusoes, e claro… truques, jogos de aparencia. Como este, ve!

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