Apontando um dedo, Jaspe pronunciou algumas palavras estranhas e no sitio para onde ele apontava, por entre a erva verde da encosta, um fiozinho de agua gotejou, cresceu e por fim jorrou uma nascente e a agua correu encosta abaixo. Gued meteu a mao na corrente e sentiu-a umida; bebeu dela e era fresca. E apesar de tudo nao matava a sede, pois era apenas ilusao. Com outra palavra, Jaspe fez parar a agua e a erva ficou a agitar-se, seca, a luz do Sol.

— Agora e a tua vez, Vetch — disse ele com o seu sorriso insolente.

Vetch cocou a cabeca com ar macambuzio, mas pegou num bocado de terra e comecou a cantar desentoadamente sobre ela, enquanto a ia moldando com os seus dedos escuros e apertando-a, esfregando-a, dando-lhe forma. E de subito o pedacinho de terra tornou-se numa criatura pequena, como um abelhao ou moscardo, que voou zumbindo por sobre o Cabeco de Roke e desapareceu.

Gued quedou-se a olhar, desanimado. Que sabia ele alem de simples bruxarias, esconjuros para chamar cabras, curar verrugas, mover cargas pesadas ou consertar bilhas?

— Eu nao faco truques como esses — acabou por dizer. Para Vetch, isto fora o suficiente e dispunha-se a seguir caminho. Mas Jaspe perguntou:

— Por que nao?

— A feiticaria nao e um jogo. Nos, Gontianos, nao a usamos por prazer ou por vaidade — respondeu Gued altivamente.

— Entao usam-na porque…? — inquiriu Jaspe. — Por dinheiro?

— Nao…

Mas Gued nao conseguia pensar em mais nada que ocultasse a sua ignorancia e lhe poupasse o orgulho. Jaspe riu, mas nao de modo desagradavel. Depois voltou a por-se a caminho, conduzindo-os ao redor do Cabeco de Roke. E Gued seguiu-o, taciturno e de coracao pesado, sabendo que tinha agido como um tolo e culpando Jaspe por isso.

Nessa noite, enquanto jazia enrolado no seu capote e sobre a enxerga da sua fria cela de pedra sem luz, no extremo silencio da Casa Grande de Roke, a estranheza do local e todos os esconjuros e encantamentos que ali vira comecaram a pesar dolorosamente sobre ele. A escuridao rodeava-o, enchia-o o temor. So desejava poder estar em qualquer lado que nao fosse Roke. Mas Vetch assomou a porta, uma pequena bola azulada de fogo- fatuo a bailar-lhe sobre a cabeca para iluminar o caminho, e perguntou se podia entrar e conversar um bocado. Interrogou Gued sobre Gont e depois falou com carinho das suas proprias ilhas, na Estrema Leste, descrevendo como o fumo das lareiras da aldeia se espalha ao anoitecer por entre as pequena ilhas, com seus nomes pitorescos: Korp, Kopp e Holp, Venway e Vemish, Iffish, Koppish e Sneg. Quando desenhou a forma dessas terras nas pedras do chao com o dedo, para mostrar a Gued como se dispunham, as linhas que ele tracou brilharam muito levemente como se desenhadas com uma varinha de prata, e assim ficaram por um instante antes de se desvanecerem. Vetch estava ha tres anos na Escola e em breve receberia o titulo de Magico. Pensava tanto em praticar as artes menores da magia como um passaro em voar. Mas havia um talento maior, inato, que ele possuia, a arte da bondade. Nessa noite, e sempre dai em diante, ofereceu e deu a Gued amizade. Uma amizade firme e aberta que Gued nao podia deixar de retribuir.

Contudo, Vetch era tambem amigo de Jaspe, que levara Gued a fazer figura de tolo naquele primeiro dia no Cabeco de Roke. Gued nao o conseguia esquecer e, ao que parecia, Jaspe tambem nao, pois falava-lhe sempre com voz delicada e sorriso trocista.

O orgulho de Gued nao se deixava abater nem aceitava condescendencias. Jurou que havia de provar a Jaspe, e a todos os outros de quem Jaspe era uma especie de chefe, quao grande o seu poder realmente era — um dia. Porque, com todos os seus belos truques, nenhum deles salvara uma aldeia usando feiticaria. De nenhum deles Oguion escrevera que havia de ser o maior feiticeiro de Gont.

Assim, reforcando o seu orgulho, aplicou toda a forca de vontade ao trabalho que lhe davam, as licoes, artes, historias e talentos ensinados pelos Mestres de Roke com seus mantos cinzentos, os mestres a quem chamavam Os Nove.

Uma parte de cada dia, estudava com o Mestre Chantre, aprendendo os Feitos dos herois e os Lais de sabedoria, comecando com a mais antiga de todas as cancoes, a Criacao de Ea. Depois, com uma duzia de outros rapazes, praticava com o Mestre Chave-do-Vento as artes do vento e do tempo. Passavam os longos e soalheiros dias da Primavera e inicio do Verao na baia de Roke, em pequenos barcos, praticando o governar da embarcacao pela palavra, o acalmar das vagas, o falar ao vento do mundo e o fazer levantar o vento magico. Estes sao talentos particularmente intrincados e a cabeca de Gued levou nao poucas pancadas da barra da vela quando o barco se inclinava contra um vento que de subito o impelia para tras, ou quando o dele e outro colidiam embora tivessem toda a baia para navegar, ou ainda quando os tres rapazes do seu barco iam todos a agua, tendo-se a embarcacao inundado com uma grande onda involuntariamente formada. Noutros dias, tinham expedicoes mais calmas em terra, com o Mestre das Ervas, que ensinava as caracteristicas e as propriedades das coisas que crescem da terra. E havia o Mestre de Mao que ensinava prestidigitacao, malabarismo e as artes menores de Mudar.

Gued tinha aptidao para todos estes estudos e, apos um mes, passava a frente de rapazes que tinham chegado a Roke um ano antes dele. Em particular, os truques de ilusao eram-lhe tao faceis que parecia ter nascido ja a sabe-los e precisava apenas de ser recordado. O Mestre de Mao era um velhote alegre e simpatico, infinitamente encantado com a inteligencia e beleza das artes que ensinava. Gued em breve deixou de sentir por ele qualquer temor e continuamente o instava para que lhe ensinasse este esconjuro e mais aquele. E o Mestre sorria sempre e mostrava-lhe o que ele queria. Mas certo dia, com a intencao de finalmente humilhar Jaspe, Gued disse ao Mestre de Mao no Patio da Aparencia:

— Senhor, todas estas encantamentos se parecem muito. Sabendo uma, sabem-se todas. E logo que paramos de tecer o feitico, a ilusao desvanece-se. Ora, se eu transformar um seixo num diamante — e assim o fez com uma palavra e uma sacudidela do pulso —, o que deverei fazer para que o diamante permaneca um diamante? Como podemos fechar o esconjuro de Mudar e fazer com que dure?

O Mestre de Mao olhou para a joia que cintilava na mao de Gued, brilhante como a mais preciosa gema no tesouro de um dragao. O velho Mestre murmurou uma palavra, «Tolk», e ali estava de novo o seixo, ja nao uma preciosidade mas um pedaco grosseiro de pedra cinzenta. O Mestre pegou-lhe e manteve-o na palma da sua propria mao.

— Isto e uma pedra. Tolk na Lingua Verdadeira — disse ele, olhando suavemente para Gued. — Um pedaco da pedra de que e feita a Ilha de Roke, um pouco da terra firme em que vivem os homens. E ela propria. Faz parte do mundo. Atraves da Ilusao-Mudanca podes fazer com que pareca um diamante… ou uma flor, uma mosca, um olho, uma labareda… — E a pedra ia mudando de forma para forma, a medida que ele as nomeava, ate ser de novo pedra. — Mas isto e mera aparencia. A ilusao engana os sentidos do observador, fazendo com que ele veja, ouca e sinta que a coisa mudou. Mas isso nao muda a coisa. Para transformares esta pedra num diamante, teras de mudar o seu nome-verdadeiro. E fazer isso, meu filho, mesmo a uma tao infima migalha do mundo, significa mudar o mundo. Pode ser feito. Sem duvida que pode ser feito. Essa e a arte do Mestre da Mudanca e ha de vir a aprende-la, quando estiveres pronto a aprende-la. Mas nao deveras mudar uma coisa, seja ela um seixo ou um grao de areia, antes de saberes o bem e o mal que esse ato ira acarretar. O mundo esta em harmonia, em Equilibrio. O poder de Mudar e de Invocar de um feiticeiro pode abalar a harmonia do mundo. E e perigoso, esse poder. E terrivelmente perigoso. Tem de se submeter ao saber e servir a necessidade. Acender uma vela e lancar uma sombra…

Voltou a olhar para o seixo e, falando agora com menos gravidade, acrescentou:

— Uma pedra e tambem uma coisa boa, sabes? Se as Ilhas de Terramar fossem todas feitas de diamante, bem dura seria a nossa vida aqui. Diverte-te com as ilusoes, rapaz, e deixa que as pedras sejam pedras.

Sorriu, mas Gued sentiu-se insatisfeito. Inste-se um mago para que revele os seus segredos e e ve-lo logo a falar, como Oguion, sobre o equilibrio e o perigo e a escuridao. Mas de certeza que um feiticeiro, um dos que tenham ido alem destes truques infantis de ilusao e alcancado as verdadeiras artes de Invocar e Mudar, seria suficientemente poderoso para fazer o que lhe agradasse, equilibrando o mundo como melhor lhe parecesse e afastando as trevas com a sua propria luz.

No corredor, encontrou Jaspe que, desde que as facanhas de Gued tinham comecado a ser louvadas em toda a Escola, falava com ele de um modo que parecia mais amigavel, mas era mais trocista.

— Pareces taciturno, Gaviao — disse-lhe o outro. — Sera que te correram mal os truques de malabarismo?

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