Tentando, como sempre, por-se em pe de igualdade com Jaspe, Gued respondeu a pergunta, ignorando o seu tom ironico.

— Estou farto de malabarismos, farto destes truques de ilusao, que so servem para divertir senhores ociosos nos seus castelos e dominios. A unica verdadeira magia que ate agora me ensinaram aqui em Roke foi fazer fogos-fatuos e algum trabalho com o tempo. O resto nao passa de tontice.

— Mas ate a tontice e perigosa — retorquiu Jaspe —, nas maos de um tonto.

Perante isto, Gued voltou-se como se o tivessem esbofeteado e deu um passo na direcao de Jaspe. Mas o rapaz mais velho sorriu como se nao houvesse qualquer intencao insultuosa nas suas palavras, fez uma inclinacao de cabeca a sua rigida e elegante maneira, e foi-se embora.

Ali parado com a raiva a ferver-lhe no coracao, vendo Jaspe a afastar-se, Gued jurou a si proprio vencer o seu rival, e nao num simples desafio de ilusoes, mas num teste de poder. Ali daria as suas provas e humilharia Jaspe. Nao ia deixar que aquele individuo se ficasse a olha-lo de cima, elegante, desdenhoso e odiento.

Gued nao se deteve a pensar por que seria que Jaspe o podia odiar. Sabia apenas por que odiava Jaspe. Os outros aprendizes cedo tinham percebido que raramente se podiam equiparar a Gued, quer a brincar quer a serio, e diziam dele, uns como louvor e outros por despeito: «E um feiticeiro nato, nunca nos deixara bate-lo.» So Jaspe nunca o louvara nem evitara, limitando-se simplesmente a olha-lo de cima, com um ligeiro sorriso. E assim Jaspe era o unico que se erguia como seu rival, o unico que teria de ser humilhado.

Nao via, ou nao queria ver, que naquela rivalidade, a que ele se apegava e que alimentava como parte do seu proprio orgulho, houvesse o que quer que fosse do perigo e da escuridao, contra os quais o Mestre de Mao tao brandamente o alertara.

Quando nao era a pura raiva que o conduzia, Gued sabia perfeitamente que ainda nao estava a altura de Jaspe ou de qualquer dos rapazes mais velhos, e por isso continuou a trabalhar e a comportar-se como de costume. No final do Verao, o trabalho teve um certo decrescimo, pelo que havia mais tempo para diversoes, como as corridas de barcos enfeiticados la em baixo no porto, demonstracoes de ilusao no patios da Casa Grande e, nas longas noites, nos bosques, loucos jogos de escondidas, em que tanto os que se escondiam como os que procuravam estavam invisiveis e so as vozes se moviam, rindo e gritando, por entre as arvores, seguindo e evitando os rapidos e tremulos fogos-fatuos. Depois, quando o Outono chegou, entregaram-se de novo as suas tarefas, praticando novas magias. E assim, rapidos, passaram os primeiros meses de Gued em Roke, plenos de paixao e maravilha.

No Inverno foi diferente. Foi enviado com outros sete rapazes atraves da Ilha de Roke ate ao cabo no extremo norte, onde se ergue a Torre Isolada. Ali, sozinho, vivia o Mestre dos Nomes, que era tratado por um nome que nao tinha significado em lingua alguma, Kurremkarmerruk. Em quilometros ao redor da torre nao havia quintas ou habitacoes. Soturna, erguia-se sobre as falesias setentrionais, cinzentas rolavam as nuvens sobre o mar invernoso, infindaveis eram as listas, as fileiras, as series de nomes que os oito pupilos do Mestre dos Nomes tinham de aprender. No meio deles, na ala mais alta da torre, Kurremkarmerruk, sentado num caldeirao alto, ia escrevendo listas de nomes que tinham de ser memorizados antes que a tinta se desvanecesse a meia-noite, deixando de novo o pergaminho em branco. Ali fazia sempre frio, o escuro era muito e o silencio permanente so era interrompido pelo arranhar da pena do Mestre e, quica, pelo suspiro de algum aluno obrigado a aprender, antes da meia-noite, o nome de cada cabo, ponta, baia, estreito, enseada, canal, porto de abrigo, baixios, recifes e rochas das costas de Lossau, uma pequena ilha do Mar de Plen. E se algum estudante se queixava, o Mestre talvez nao dissesse nada, limitando-se a aumentar ainda mais a lista, ou poderia dizer: «Aquele que pretende ser Mestre do Mar tem de saber o nome verdadeiro de cada gota de agua que ha no mar.»

Gued suspirava por vezes, mas nunca se queixava. Via que, naquela poeirenta e infindavel questao de aprender o nome-verdadeiro de cada local, coisa e pessoa, se acoitava o poder a que ele aspirava, como uma pedra preciosa no fundo de um poco seco. Porque e nisso que consiste a verdadeira magia, o dar o verdadeiro nome a cada coisa. Assim lhes dissera Kurremkarmerruk, uma vez, na primeira noite que tinham passado na Torre. Nao o voltara a repetir, mas Gued recordava cada palavra.

— Muitos magos de grande poder — dissera o Mestre — passaram toda a sua vida na tentativa de descobrir o nome de uma unica coisa, um unico nome, oculto ou perdido. E mesmo assim as listas nao estao completas. Nem o estarao, ate ao fim do mundo. Escutem e verao porque. No mundo sob o Sol e no outro mundo onde nao existe Sol, muito ha que nada tem a ver com o homem nem com a fala do homem, e ha poderes para alem do nosso poder. Mas a magia, a verdadeira magia, so e realizada por aqueles seres que falam a lingua Hardic de Terramar, ou a Antiga Fala de que ela derivou. Essa e a lingua que os dragoes falam, a lingua falada por Segoy que fez as ilhas do mundo, a lingua dos nossos lais e cancoes, dos nossos esconjuros, encantamentos e invocacoes. As suas palavras jazem ocultas e modificadas entre as nossas palavras Hardic. Nos chamamos a espuma das ondas sukien. Essa palavra e formada por duas palavras da Antiga Fala, suk, pena, e inien, o mar. Vos tendes de usar o seu nome- verdadeiro na Antiga Fala, que e essa. Qualquer bruxa conhece algumas dessas palavras da Antiga Fala, um mago conhece muitas. Mas ha muitas mais, e algumas perderam-se ao longo das idades, e outras foram ocultas, e outras ainda so sao conhecidas dos dragoes e dos Antigos Poderes da Terra, e algumas ha que nao sao conhecidas por criatura viva alguma. E nenhum homem as pode aprender a todas, pois, para essa lingua, nao existe fim. E a razao e esta. O nome do mar e inien, tudo bem. Mas o que nos chamamos Mar Interior tem tambem o seu proprio nome na Antiga Fala. Dado que nada pode ter dois nomes verdadeiros, inien nao pode deixar de significar «todo o mar a excecao do Mar Interior». E, claro, nem sequer significa isso, porque ha mares, baias e estreitos sem conta, cada um com o seu proprio nome. Assim, se um Mago-Senhor-do-Mar fosse suficientemente louco para lancar um feitico de tempestade ou calmaria sobre todo o oceano, esse feitico teria de conter, nao so a palavra inien, mas tambem o nome de cada extensao, pedaco e parte do mar atraves de todo o Arquipelago e todas as Estremas exteriores e para alem destas ate onde os nomes deixam de existir. Deste modo, e precisamente aquilo que nos confere o poder para operar a magia que estabelece os limites desse poder. Um mago so pode controlar o que lhe esta proximo, o que ele pode nomear exata e completamente. E e bom que assim seja. Se assim nao fora, a maldade dos poderosos ou a loucura dos sabios ja ha muito teria tentado mudar o que nao pode ser mudado, e a Harmonia perder-se-ia. O mar, sem equilibrio, devastaria as ilhas onde nos tao perigosamente habitamos e, no velho silencio, todas as vozes e todos os nomes se perderiam.

Gued meditou longamente nestas palavras e elas calaram fundo na sua compreensao. Contudo, a majestade da tarefa nao era suficiente para tornar menos arduo e arido o trabalho daquele longo ano na Torre. E, chegado o fim desse ano, Kurremkarmerruk disse-lhe: «Tiveste um bom comeco.» E mais nada.

Os feiticeiros falam verdade e era verdade que toda a mestria de Nomes que Gued esforcadamente adquirira naquele ano era meramente o comeco do que ele teria de continuar a aprender durante toda a vida. Foi-lhe permitido deixar a Torre Isolada mais cedo que os que tinham vindo com ele, porque aprendera mais depressa. Mas foi esse todo o louvor que recebeu.

Caminhou sozinho para sul, atraves da ilha, no inicio do Inverno e ao longo de estradas que nao passavam por vila ou aldeia alguma e nao eram percorridas por ninguem. Ao chegar a noite, choveu. Nao disse qualquer encantamento para afastar de si a chuva porque o tempo de Roke estava na maos do Mestre Chave-do-Vento e nao era permitido nele interferir. Abrigou-se sob um grande salgueiro-chorao e ali, embrulhado no seu capote, pensou no velho mestre Oguion, que provavelmente estaria ainda entregue as suas perambulacoes outonais sobre os cumes de Gont, dormindo ao relento e com ramos despidos por unico teto, a chuva caindo por unicas paredes. E isto fez Gued sorrir, porque pensar em Oguion lhe servia sempre de conforto. Adormeceu com o coracao em paz, naquela fria escuridao cheia do murmurio da agua. Acordando com o raiar do sol, ergueu a cabeca. A chuva cessara. Viu, abrigado nas dobras do capote, um animalzinho enroscado a dormir, que ali se metera em busca de calor. Admirou-se ao ve-lo porque era um animal estranho e muito raro, um otaque.

Estas criaturas encontram-se apenas em quatro das ilhas meridionais do Arquipelago — Roke, Ensmer, Pody e Uothort. Sao pequenos e macios, com caras largas, pelo castanho-escuro ou malhado e grandes olhos brilhantes. Tem dentes agucados e um temperamento feroz, pelo que nao e habito te-los como animais de estimacao. Nao emitem qualquer chamado ou grito, pois nao tem voz alguma. Gued acariciou o bicho que acordou e bocejou, mostrando a pequena lingua castanha e os dentes brancos, mas nao deu sinais de medo.

— Otaque — pronunciou Gued e logo, recordando os milhares de nomes de animais que aprendera na torre, chamou-o pelo seu nome-verdadeiro na Antiga Fala. — Hoeg! Queres vir comigo?

O otaque sentou-se na palma da sua mao e comecou a lavar a pelagem.

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