fazer-se ao mar com a mare vazante, perto da alvorada. Nao havia lugar algum no tombadilho onde nao se incomodasse ninguem, mas Gued la trepou conforme pode para cima da carga enfardada, firmemente amarrada e coberta de couros curtidos a popa do veleiro e, ali seguro, observou tudo o que se passava. Os remadores foram saltando para bordo, homens robustos e de longos bracos, enquanto os estivadores faziam rolar barricas de agua com grande estrondo do pontao para o barco, arrumando-as debaixo dos bancos dos remadores. O navio, bem construido, deslocava-se com a amurada baixa por causa da carga, mas mesmo assim dancando um pouco na rebentacao, pronto a partir. Entao o homem do leme ocupou o seu lugar a direita do mastro da popa, olhando em frente para o mestre, que se mantinha sobre um estrado inserido na juncao entre a quilha e o talha-mar, trabalhado com as formas da Velha Serpente de Andrad. O mestre rugiu as suas ordens em voz retumbante e o Sombra foi desamarrado e rebocado para la das docas por dois laboriosos barcos a remos. Entao o rugido do mestre soou — «Abrir escotilhas!» — e os grandes remos sairam ruidosamente, quinze de cada lado. Os remadores inclinaram os dorsos poderosos enquanto, acima deles e junto ao mestre, um rapaz batia o ritmo num tambor.

Com a facilidade de uma gaivota que tivesse os remos por asas, o navio tomou enfim velocidade e, subitamente, o ruido e o burburinho da cidade ficaram para tras. Sairam para o silencio das aguas da baia e acima deles erguia-se o pico branco da Montanha, que parecia suspenso sobre o mar. Numa enseada de aguas pouco profundas, a sotavento do Braco da Falesia sul, largaram ancora e ali passaram a noite.

Dos setenta homens que formavam a equipagem do navio alguns eram, como Gued, ainda jovens em anos, embora todos tivessem feito a passagem a idade adulta. Esses rapazes chamaram-no para junto deles para compartilhar da comida e bebida, e mostraram-se amigaveis, ainda que fossem gente grosseira, dada a gracejos e zombarias. Como seria de esperar, chamaram-lhe cabreiro por ser gontiano, mas nao foram mais longe do que isso. Gued era tao alto e forte como os de quinze anos, e pronto a dar resposta condigna tanto a uma boa palavra como a uma troca, pelo que foi bem acolhido e, logo nessa primeira noite, comecou a viver como um deles e a aprender o trabalho que faziam. Isso agradou aos oficiais do navio, porque nao tinham lugar a bordo para passageiros desocupados.

Pouco espaco havia para a tripulacao e nenhum conforto naquela galera sem conves, apinhada de homens, aprestos e carga. Mas o que era o conforto para Gued? Nessa noite, deitou-se entre couros atados em rolos vindos das ilhas setentrionais, observando as estrelas da Primavera acima das aguas do porto de abrigo e as luzinhas amareladas da cidade para o lado da popa, e adormeceu e voltou a acordar cheio de uma funda impressao de prazer. Antes do nascer do Sol, a mare virou. Levantaram ferro e singraram suavemente, a forca de remos, em direcao ao mar alto, entre os Bracos da Falesia. E quando o Sol nascente avermelhou a montanha de Gont, por tras deles, ergueram a vela maior e seguiram velozes para sudoeste, sulcando o Mar de Gont.

Entre Barnisk e Torheven tiveram vento fraco e, no segundo dia, chegaram a vista de Havnor, a Ilha Grande, coracao e lar do Arquipelago. Durante tres dias permaneceram a vista das verdes colinas de Havnor, enquanto bordejavam a costa leste, mas nao foram a terra. E muitos anos decorreram antes que Gued pusesse o pe naquela terra ou visse as alvas torres do Grande Porto de Havnor, no centro do mundo.

Fundearam durante uma noite em Foz-do-Kember, o porto mais a norte da Ilha de Way, e na seguinte, numa pequena cidade a entrada da Baia de Felkway, passando no dia seguinte o cabo norte de O e entrando nos Estreitos de Ebavnor. Ali, baixaram a vela e prosseguiram a forca de remos, sempre com terra de ambos os lados, sempre ao alcance de voz de outros navios, grandes e pequenos, mercadores e comerciantes, alguns regressando das Extremas Exteriores com carregamentos estranhos e apos uma viagem de anos, outros saltitando como pardais, de ilha em ilha, no Mar Interior. Voltando para sul ao sair dos Estreitos cheios de trafego, deixaram para tras Havnor e navegaram entre as duas belas ilhas de Ark e Ilien, salpicadas com as torres e os terracos de muitas cidades, e, logo, atraves da chuva e do vento que se tornava mais forte, iniciaram a travessia do Mar Interior, em direcao a Ilha de Roke.

Durante a noite, quando o vento se tornou muito forte, soprando em rajadas, baixaram vela e mastro e, no dia seguinte, durante todo o dia, remaram. O longo navio mantinha-se firme nas ondas e prosseguia valorosamente, mas o timoneiro, ao comprido remo que servia de leme, a popa, perscrutava a chuva que fustigava o mar e nada mais via para alem da chuva. Navegaram para sudoeste, guiando-se pela bussola, e sabiam para onde iam mas nao atraves de que aguas. Gued ouviu os homens falar dos baixios a norte de Roke e das Rochas Borilosas para leste. Outros contestavam que deviam estar ja muito fora da rota, nas aguas sem ilhas a sul de Kamery. E sempre o vento a tornar-se mais forte, desfazendo em farrapos de espuma esvoacante os cumes das grandes vagas, e eles sempre remando para sudoeste, com o vento por tras. Os turnos aos remos foram encurtados porque a tarefa se tornara demasiado ardua. Os mais novos eram colocados a dois por remo e Gued fez os seus turnos com os outros, tal como fizera desde que haviam deixado Gont. Quando nao estavam a remar, escoavam a agua do barco, pois o mar rebentava violentamente contra o navio. E assim se afadigaram entre as ondas que corriam como montanhas fumegantes sob o vento, enquanto a chuva fria e forte lhes acoitava as costas e o tambor ressoava por entre o ruido da tempestade, como o bater de um coracao.

A certa altura, veio um homem tomar o lugar de Gued ao remo, dizendo-lhe que fosse ter com o mestre do navio, a proa.

A chuva escorria da bainha do capote do mestre, mas ele permanecia firme e rotundo como um barril de vinho no seu estrado e, olhando para baixo, para Gued, perguntou:

— Es capaz de amainar este vento, rapaz?

— Nao, senhor.

— Tens algum poder sobre o ferro?

E com isto pretendia ele saber se Gued era capaz de obrigar a agulha magnetica a apontar, nao o Norte, mas aquilo que a necessidade exigia, a rota para Roke. Mas esse talento e um segredo dos Mestres do Mar e, uma vez mais, Gued teve de responder que nao.

— Bem, entao — bramiu o mestre atraves do vento e da chuva — tens de arranjar algum navio que te leve da cidade de Hort de regresso a Roke. Roke deve estar agora para ocidente de nos e so usando feiticaria poderiamos la chegar com um mar assim. Temos de continuar a navegar para sul.

Aquilo nao agradou a Gued, pois ouvira os marinheiros falar da cidade de Hort como sendo um lugar sem lei, cheio de um trafego malefico, onde os homens eram muitas vezes feitos prisioneiros e vendidos como escravos na Estrema Sul. Regressando a sua tarefa ao remo, la se foi esforcando juntamente com o seu companheiro, um vigoroso rapaz andradiano, vendo a lanterna suspensa na popa baloucar e tremeluzir ao vento que a agitava, uma restia atormentada de luz no negrume chicoteado pela chuva. Foi olhando para ocidente tanto quanto pode sob o pesado ritmo de empurrar e puxar o remo. E quando o navio se ergueu numa onda mais alta, viu por um momento, sobre a agua escura e fumegante, uma luz entre nuvens, como que um ultimo raio do Sol poente. Mas aquela era uma luz clara, nao avermelhada.

O companheiro ao remo nao a vira, mas Gued bradou o aviso. O timoneiro ficou atento, procurando avistar a luz em cada vaga mais alterosa, e viu-a tal como Gued a viu de novo, porem bradou-lhe que era apenas o por do Sol. Entao Gued gritou a um dos rapazes que escoavam agua que o substituisse ao remo por um minuto e voltou a percorrer o caminho ate a proa, ao longo da atravancada coxia entre os bancos e, agarrando-se a proa trabalhada para nao ser lancado borda fora, gritou para o mestre:

— Senhor! Aquela luz para ocidente e a Ilha de Roke!

— Nao vi luz nenhuma — bradou o mestre, mas nesse preciso instante Gued estendeu o braco, apontando, e todos viram o brilho claro da luz a ocidente, para alem da agitacao da espuma e do tumulto do mar.

Nao por atencao para com o seu passageiro, mas para salvar o navio dos perigos da tempestade, o mestre gritou imediatamente ao timoneiro que se dirigisse para oeste, na direcao da luz. Mas, a Gued, disse:

— Rapaz, tu falas como um Mestre do Mar, mas so te digo que se nos conduzes mal num tempo como este, deito-te a agua e deixo-te ir a nado ate Roke!

Agora, em vez de irem impelidos pela tempestade, eram forcados a remar perpendicularmente a direcao do vento, e isso era dificil. As ondas, chocando de traves contra o navio, constantemente o empurravam para sul do seu novo curso, enchiam-no de agua tornando o trabalho de a escoar incessante, faziam-no gingar, e os remadores eram obrigados a redobrar de atencao, nao fosse o gingar do navio erguer os remos fora de agua quando os puxavam, fazendo-os cair entre os bancos. A escuridao era quase completa sob as nuvens de tempestade, mas de quando em vez la conseguiam avistar a luz a ocidente, o bastante para poderem orientar a rota, animando-os a prosseguir no esforco. Por fim, o vento amainou um pouco e a luz aumentou em frente deles. Continuando a remar, foi como se atravessassem uma cortina, entre uma remada e outra, saindo da tempestade

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