acabaria por estrea-lo um dia, que nao seria nem mais puro nem mais feliz; que, por outro lado, os homens julgam pelas aparencias e que era preciso apresentar-me o melhor possivel para obter mais proventos: afastei todos os escrupulos. Vesti-o pois, mas nao sem remorsos — o meu lindo vestido, que, recordando-o agora, era bem modesto e bastante feio, como todos os meus fatos de entao —, penteei-me com cuidado e pintei-me, mas nao mais do que o costume. A proposito deste ultimo pormenor, observo que nunca percebi a razao por que as mulheres da minha profissao pintam a cara como se fossem mascaras de Carnaval. Porque a vida que levam as torna muito palidas? Talvez porque julguem que se nao se pintarem desta maneira violenta nao chamam a atencao dos homens e nao mostram que sao faceis de abordar? Eu, por mais que me fatigue e me deite tarde, tenho sempre a pele morena e sa, e posso dizer, sem falsa modestia, que a minha beleza bastou sempre, sem pintura, para fazer voltar os homens quando passo na rua. Nao e pelo rouge nem pelo louro do trigo que eu chamo a atencao dos homens, mas — muitos mo tem dito — pela serenidade e pela docura do meu rosto, pelo sorriso que mostra os meus dentes perfeitos e pelo sedoso dos meus cabelos castanhos e ondulados. As mulheres que descoloram o cabelo e se pintam nao reparam que os homens dao-se conta no primeiro momento de como elas sao e experimentam uma especie de antecipada desilusao. Eu, tao natural e simples, deixei-lhes sempre uma duvida sobre a minha verdadeira personalidade, dando-lhes desta maneira a ilusao de uma aventura que eles procurassem mais do que a pura satisfacao dos sentidos.

Uma vez vestida e arranjada, fui ao cinema e vi passar duas vezes a mesma fita. Quando sai do cinema era ja noite; fui directamente a pastelaria onde tinha marcado encontro com Gisela.

A casa nao era uma daquelas leitarias modestas onde habitualmente nos encontravamos com Ricardo, mas uma pastelaria elegante, onde eu punha os pes pela primeira vez. Compreendi que a escolha deste local fora feita com a intencao de elevar o preco dos meus favores. Estes ardis e ainda outros de que falarei a seguir podem, com efeito, levar as mulheres da minha especie, quando jovens e bonitas, e que os usem inteligentemente, ao bem-estar estavel que e o alvo de todas. Mas poucas se servem deles e eu nunca pertenci a esse numero. A minha origem popular fez-me sempre desconfiar dos locais luxuosos; nos cafes burgueses senti-me sempre pouco a vontade; envergonhava-me de sorrir aos homens ou de os olhar disfarcadamente; tinha a impressao de que a luz demasiada me expunha num pelourinho. Pelo contrario, senti sempre uma profunda e afectuosa atraccao pelas ruas da minha cidade, com as suas nobres construcoes, as suas igrejas, os seus monumentos, as suas lojas e os seus portais, que as tornam mais belas e acolhedoras que qualquer sala de restaurante ou pastelaria. Sempre gostei de descer a rua a hora do passeio, ao por do Sol, caminhar lentamente olhando as montras iluminadas e ver a noite escurecer lentamente o ceu e os telhados. Sempre apreciei seguir por entre a multidao, ouvir, sem me voltar, as ofertas de amor que os transeuntes, os mais imprevistos. numa subita exaltacao dos sentidos, se atreviam a murmurar-me as vezes; sempre gostei de subir e descer a mesma rua ate a saciedade, ficar sem forcas mas continuar com espirito ainda avido e fresco como numa feira, onde as surpresas nunca se esgotam. O meu salao, o meu restaurante, o meu cafe, foram sempre a rua. Suponho que o facto de ter nascido pobre deve ter tido influencia nestas minhas predileccoes; sabe-se que os pobres se divertem com pouco dinheiro, repassando os olhos pelas montras das lojas, onde nada podem comprar, e as fachadas das belas casas, onde nunca morarao. Deve ser pelo mesmo motivo que amei sempre as igrejas, tao numerosas em Roma, abertas para o povo e luxuosas para todos e onde, por entre marmores, ouros e decoracoes preciosas, o cheiro acre e humilde da pobreza e, por vezes, mais forte do que o do incenso.

Naturalmente os ricos nao passeiam pelas ruas, nao vao a igreja: quando muito atravessam a cidade de automovel, recostados sobre almofadas e lendo o jornal. Preferindo a rua a qualquer outro lugar, interditei a mim mesma os encontros nos sitios que Gisela me marcaria — em troca dos meus gostos mais predilectos. Este sacrificio nunca o quis fazer; todo o tempo que durou a minha camaradagem com Gisela o assunto foi objecto de discussoes encarnicadas. Gisela nao gostava da rua; as igrejas nada lhe diziam; a multidao so lhe inspirava repugnancia e desprezo. O que ela mais apreciava eram os restaurantes de luxo, onde os criados espiam com ansiedade os mais simples gestos dos seus clientes, os dancings modernos, com musicos de uniforme e dancarinos de fato de noite. Nestes lugares, ela ficava outra; os seus gestos, as suas atitudes, ate a sua voz mudavam. Fingia ser uma mulher bem; era o fim que almejava e que conseguiu mais tarde ate certo ponto, como se podera ver. O aspecto curioso do seu sucesso final foi que a pessoa destinada a satisfazer as suas ambicoes nao a encontrou nos locais de luxo, mas gracas a mim e precisamente na rua, que ela odiava tanto.

Na pastelaria encontrei Gisela acompanhada por um homem de meia-idade, um caixeiro-viajante, que me apresentou com o nome de Jacinto. Sentado, parecia ter uma altura normal, porque tinha os ombros largos, mas de pe parecia quase anao, e a largura de ombros ainda o tornava mais baixo. Tinha o cabelo espesso e branco como prata, que usava em escova sobre a testa, talvez para parecer mais grave, um rosto encarnado, cheio de saude, com tracos nobres e regulares de estatua, uma bela testa serena, grandes olhos pretos, nariz direito e a boca bem desenhada. Mas uma expressao antipatica de vaidade, de suficiencia e de falsa benevolencia tornava esta cara, agradavel e majestosa a primeira vista, bastante repulsiva.

Sentia-me um pouco nervosa, e depois de acabadas as apresentacoes sentei-me sem dizer palavra. Jacinto, como se a minha chegada fosse sem importancia, apesar de ser na realidade o motivo da reuniao, continuou a conversa que sustentava com Gisela:

— Nao podes queixar-te de mim, Gisela — declarou-lhe, pousando-lhe a mao no joelho e conservando-a ali todo o tempo em que falou. — Quanto tempo durou a nossa… a nossa alianca, por assim dizer? Seis meses? Bem! Nao podes dizer com verdade que no decurso desses seis meses te deixei uma unica vez descontente.

Tinha a voz clara, lenta, acentuada, articulada; mas percebia-se que falava desta maneira, nao para se fazer entender, mas para se ouvir ele proprio e julgar cada uma das palavras que pronunciava.

— Nao, nao! — disse Gisela baixando a cabeca com ar aborrecido.

— A Gisela que te diga, Adriana! — continuou Jacinto com a mesma voz clara e martelada. — Nao so nunca a lesei em dinheiro pelo… digamos pelos seus prestimos profissionais, mas todas as vezes que voltava de Milao trazia-lhe sempre um presente. Lembras-te, por exemplo, daquele perfume frances que te trouxe uma vez? E doutra ofereci-te uma combinacao de seda natural e rendas. As mulheres julgam que os homens nao percebem de roupas interiores de senhora. Mas eu sou uma excepcao. He! He!

Ria discretamente mostrando uma dentadura perfeita, mas de uma brancura estranha que lhe dava um ar de dentadura postica.

— Da-me um cigarro! — pediu Gisela com secura.

— E para ja! — respondeu com uma solicitude ironica. Ofereceu-me tambem um, tirou outro para si e, depois de o acender, continuou: — Lembras-te tambem daquela mala que te trouxe uma vez? Uma grande mala de cabedal leve… uma verdadeira obra-prima! Ja nao a usas?

— Mas e uma mala para usar de manha! — disse Gisela.

— Gosto muito de fazer presentes! — proclamou, dirigindo-se a mim. — Nao por razoes sentimentais, entendamo-nos — acrescentou deitando o fumo pelo nariz —, mas por tres motivos bem claros: o primeiro, porque me agrada que me agradecam; o segundo, porque nao ha como um presente para se ser bem servido; com efeito quem recebe um presente espera sempre outro: a terceira, porque as mulheres gostam de ilusoes e um presente da a impressao de sentimento, mesmo quando ele nao existe.

— Es um bom maroto! — disse com ar indiferente Gisela, sem mesmo o olhar.

Ele abanou a cabeca com o seu belo sorriso cheio de dentes.

— Nao — disse — nao sou maroto. Sou um homem que viveu e que soube tirar boas licoes das suas experiencias. Com as mulheres sei que e preciso fazer certas coisas, com os clientes outras, com os subordinados outras ainda, e assim por diante. O meu espirito e como um ficheiro bem arrumado. Por exemplo, tenho uma mulher debaixo de olho… tiro a ficha, observo-a, e vejo que certas medidas obtem o efeito desejado e outras nao; torno a por a ficha no seu lugar e vou agir segundo as circunstancias, e e tudo!

Calou-se e sorriu de novo.

Gisela fumava com ar aborrecido; eu estava calada.

— E as mulheres — continuou — ficam-me reconhecidas porque compreendem logo que comigo nao terao desilusoes, que eu conheco as suas exigencias, as suas fraquezas e os seus caprichos… como eu fico agradecido ao cliente que escolhe depressa… que nao perde tempo a tagarelar… que sabe o que quer e o que eu quero… Em Milao, na minha secretaria, tenho um cinzeiro com a seguinte inscricao: “O Senhor abencoa quem nao me faz perder tempo.” Deitou fora o cigarro, estendeu o pulso e olhou o relogio dizendo :

— Parece-me que vao sendo horas de irmos jantar.

— Que horas sao?

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