— Oito horas… com licenca… venho ja.
Levantou-se e afastou-se para o fundo da sala. Era realmente muito pequeno, com os seus largos ombros e a sua escovinha branca em cima da cabeca. Gisela esmagou o cigarro no cinzeiro e declarou:
— E aflitivo! So fala dele!
— Ja dei por isso.
— O melhor e deixa-lo falar e dizer sempre sim. Veras as confidencias que ele vai fazer-te… Sabe Deus por quem se toma! Mas e generoso. E da presentes realmente.
— Sim, mas a seguir atira-os em cara.
Ela nao disse palavra. Abanou a cabeca como a dizer “Que havemos de fazer?” Ficamos um momento silenciosas; depois Jacinto voltou. Pagou e saimos da pastelaria.
— Gisela — disse Jacinto logo que chegamos a rua —, a noite esta consagrada a Adriana. Mas se nos quiseres dar o prazer de jantar connosco.
— Nao, nao, obrigada! — disse muito depressa. — Tenho um encontro!
Despediu-se de nos e foi-se embora. Logo que ela se afastou eu disse a Jacinto:
— A Gisela e muito simpatica!
Ele fez um trejeito e respondeu:
— Sim, muito… tem um lindo corpo.
— Nao a acha simpatica?
— Eu — disse-me caminhando ao meu lado e apertando-me com forca o braco, muito em cima, quase no sovaco — nunca peco a alguem que seja simpatico, mas que faca o que lhe cumpre. A uma dactilografa, por exemplo, nao peco que seja simpatica, mas que escreva rapidamente e sem erros. A uma mulher como Gisela nao peco simpatia, mas que saiba do seu oficio, quer dizer que me torne agradaveis as duas ou tres horas que lhe consagro. Ora, a Gisela nao percebe do seu oficio.
— Porque?
— Porque so pensa no dinheiro… Tem sempre medo que nao lhe paguem ou que nao lhe deem bastante. Nao exijo com certeza que ela me ame, mas faz parte da sua profissao portar-se como tal; se realmente nao me ama tem de me dar essa ilusao, para isso que lhe pago. Gisela deixa sentir demasiadamente que o fez por interesse… Nem nos da tempo a respirar de tal modo se chora… Que diabo!
Tinhamos chegado ao restaurante, um sitio barulhento, cheio de gente; os homens pareciam-me do genero de Jacinto: caixeiros-viajantes, negociantes, industriais de passagem. Jacinto entrou primeiro, entregou o chapeu e o sobretudo ao homem do bengaleiro e perguntou:
— A minha mesa esta livre?
— Sim, senhor Jacinto.
Era uma mesa colocada no vao de uma janela. Jacinto esfregou as maos e perguntou:
— Voce e bom garfo?
— Julgo que sim — respondi-lhe, embaracada.
— Bem! Isso agrada-me. Gosto que se coma a mesa… A Gisela, por exemplo, nunca quer comer… diz que tem medo de engordar. Asneiras! Cada coisa a seu tempo! Quando se esta a mesa e para comer!
Tinha um verdadeiro rancor contra Gisela.
— Mas e verdade — disse eu timidamente. — Quando se come demasiadamente engorda-se… e ha mulheres que nao gostam de engordar.
— Voce e dessas?
— Eu nao. Mas justamente as pessoas dizem que eu sou muito forte.
— Nao facas caso, e inveja. Digo-te eu, que percebo disso.
Acariciou-me paternalmente a mao para me convencer. O criado aproximou-se e Jacinto disse-lhe:
— Para comecar vais levar daqui estas flores… incomodam-me… Depois trazes o habitual. Percebido? E isso depressa!
Depois, dirigindo-se a mim, explicou:
— Ja me conhece e sabe do que eu gosto… deixa-o fazer: vais ver que nao teras razao de queixa!
Com efeito nao tive razao para me lamentar. Os pratos que se sucederam na mesa eram, senao requintados, pelo menos suculentos e agradaveis. Jacinto mostrava-se com grande apetite. Comia com uma especie de enfase, a cabeca baixa, brandindo solidamente o garfo e a faca, sem me olhar nem me falar uma unica vez. A sua avidez privava-o ate mesmo da sua bela calma, obrigando-o a fazer varias coisas ao mesmo tempo, como se temesse ficar em jejum. Metia um bocado de carne na boca ao mesmo tempo que partia o pao com a mao esquerda. Mordia este pao, deitava vinho no copo com a outra mao e bebia-o sem ter acabado de mastigar. Tudo isto estalando os labios, rolando os olhos, sacudindo a cabeca de vez em quando como um gato as voltas com um pedaco demasiado grande. Mas para contrabalancar, ao contrario do que era habitual, eu nao tinha fome. Era a primeira vez que me preparava para me deitar com um homem que nao amava, que ate mesmo nao conhecia; e olhava-o com atencao, estudando os meus sentimentos e procurando imaginar como me sairia. Mais tarde deixei de dar atencao aos homens com quem ia, porque, levada pele necessidade, aprendi depressa a encontrar ao primeiro olhar o lado bom ou atraente do homem, suficiente para tornar a sua intimidade suportavel. Mas nessa noite, este expediente da minha profissao, que consiste em descobrir num so olhar o que torna menos desagradavel um amor venal, nao o tinha ainda aprendido; procurava-o instintivamente, sem dar por isso. Ja disse que Jacinto nao era feio; ate mesmo quando se calava e nao mostrava os seus pontos antipaticos, ate poderia parecer belo. Ja era muito, porque, apesar de tudo, todo o amor e em grande parte comunhao fisica. Mas isso nao me bastava. Nunca pude, ja nao digo amar, mas simplesmente suportar um homem so pelas suas qualidades fisicas. Ora, quando a refeicao acabou e Jacinto, acalmada a sua extraordinaria voracidade, arrotou uma ou duas vezes e recomecou a falar, apercebi-me de que nada havia nele, ou pelo menos nao era capaz de descobrir, absolutamente nada, por pouco que fosse, que mo tornasse simpatico. Nao so, como Gisela me avisara, so dele falava, mas fazia-o de uma maneira desagradavel, vaidosa e aborrecida, contando a maior parte do tempo coisas que nada o honravam e confirmavam plenamente a minha primeira impressao de repugnancia. Nada havia nele, absolutamente nada, que me agradasse; e todos os tracos que apresentava como qualidades, de que se envaidecia e punha a nu, pareciam-me horriveis defeitos. So muito raramente encontrei, dai em diante, homens no mesmo genero, que nao tem valor algum e nada oferecem de bom a quem se aproximar para neles encontrar qualquer simpatia; sempre me admirou que eles existissem e muitas vezes perguntei a mim propria se nao seria minha a culpa, incapaz de descobrir as qualidades que eles sem duvida haviam de ter. Seja como for, com o tempo habituei-me a estes desagradaveis companheiros e fingi rir e chalacear com eles, em suma, ser aquilo que queriam que eu fosse e julgavam que era. Mas nessa noite esta primeira descoberta inspirou-me reflexoes bem melancolicas. Enquanto Jacinto tagarelava esgaravatando os dentes com um palito, eu pensava que era um duro oficio aquele que eu escolhera, de fingir transportes amorosos com certos homens que na realidade — era o caso de Jacinto — me inspiravam sentimentos bem diferentes; que nao havia dinheiro que pagasse esses favores; que era impossivel — pelo menos em casos semelhantes — portar-me como Gisela, que nao pensava senao no dinheiro e nao o ocultava. Acudiu-me ainda ao espirito a ideia de que iria levar este antipatico Jacinto para o meu pobre quarto, destinado a um uso tao diferente; que nao tinha sorte; que o azar me fizera sair logo um Jacinto, que podia ter encontrado algum rapaz agradavel e delicado em busca de uma aventura, ou qualquer bom homem, sem pretensoes, como havia tantos; que, em suma, a presenca de Jacinto entre os meus moveis acelerava a minha renuncia aos velhos sonhos de fazer uma vida decente e normal.
Ele falava sempre, mas nao era tao bocal que nao se apercebesse de que apenas o escutava e que nao estava alegre.
— Entao, menina, estamos tristes? — perguntou-me.
— Nao, nao! — respondi depressa, quase ate tentada, por esta ilusoria entoacao afectuosa, a confiar-lhe o que sentia e a falar-lhe de mim, depois de o ter deixado falar tanto tempo dele.
— Gosto mais assim — recomecou. — Nao gosto de gente triste. E depois nao te convidei para que estivesses triste. Podes ter razao para isso, nao discuto, mas logo que estejas comigo tens de deixar a tristeza em casa. Nao me interessam os teus problemas, nem quem es, nem o que te aconteceu, nem o resto… Certas coisas nao me interessam. Fizemos um contrato um com o outro, mesmo que nao tenha sido escrito… Eu comprometo-me a pagar-te uma certa soma e tu, em compensacao, comprometes-te a fazer-me passar uma noite agradavel… O resto nao conta.
Proferiu estas palavras em tom serio. Talvez estivesse um pouco contrariado por eu nao o ter escutado
