— Estupido do carneiro velho, sempre atras de mim por todo o lado.

— Tem de ser — atalhou Penthe sensatamente. — O trabalho dele e tomar conta de ti.

— Aqueles que eu sirvo tomam conta de mim. E a eles que tenho de agradar. Nao preciso de agradar a mais ninguem. Essas velhas, esses semi-homens, toda essa gente devia era deixar-me em paz. Eu sou a Unica Sacerdotisa!

Penthe olhou fixamente a outra rapariga.

— Oh — exclamou ela baixinho —, eu sei que es, Arha…

— Pois entao deviam deixar-me. E nao passarem a vida a dar-me ordens!

Penthe permaneceu em silencio durante um pedaco, porem suspirou, balancando as pernas gorduchas e olhando para as terras vastas e descoradas la em baixo, que se iam erguendo lentamente, lentamente, ate um alto, impreciso e imenso horizonte.

— Em breve vais ser tu a dar as ordens, bem sabes — asseverou finalmente, em tom calmo. — Daqui a dois anos deixamos de ser criancas. Teremos catorze anos. Eu vou para o templo do Rei-Deus e, para mim, as coisas hao de continuar a ser quase as mesmas. Mas tu seras realmente a Gra-Sacerdotisa. E ate Kossil e Thar terao de te obedecer.

A Devorada nada disse. A sua expressao era obstinada, os seus olhos, sob as sobrancelhas negras, refletiam a luz do ceu, brilhando palidamente.

— Deviamos voltar — sugeriu Penthe.

— Nao.

— Mas a mestra tecela e capaz de dizer a Thar. E esta quase na hora dos Nove Canticos.

— Eu fico aqui. E tu ficas tambem.

— A ti, nao te vao castigar, mas a mim, sim — comentou Penthe com o seu ar tranquilo. Mas Arha nao deu resposta. Penthe suspirou e deixou-se estar. O Sol ia mergulhando na nevoa, bem acima das planicies. La longe, na extensa e gradual inclinacao das terras, os chocalhos das ovelhas tiniam levemente, os cordeiros baliam. O vento da Primavera soprava em ligeiras e secas lufadas, trazendo um aroma suave.

Os Nove Canticos estavam quase a terminar quando as duas raparigas regressaram. Mebeth vira-as sentadas no Muro dos Homens e fora dar parte a sua superiora, Kossil, Gra-Sacerdotisa do Rei-Deus.

Kossil era grave de movimentos e de semblante. Foi sem qualquer expressao no rosto ou na voz que se dirigiu as duas raparigas, dizendo que a seguissem. Com a sacerdotisa a cabeca, atravessaram as salas de pedra da Casa Grande, sairam pela porta da frente e subiram a pequena elevacao ate ao Templo de Atuah e Ualuah. Ai falou com a Gra-Sacerdotisa daquele templo, Thar, alta, seca e magra como uma tibia de corca. Dirigindo-se a Penthe, Kossil ordenou:

— Despe o vestido.

Acoitou a rapariga com um molho de juncos que lhe cortaram ligeiramente a pele. Penthe suportou aquilo pacientemente, com lagrimas silenciosas. Foi mandada de volta para a sala da tecelagem sem ceia e, no dia seguinte, tambem nao iria comer nada.

— E se mais alguma vez fores apanhada a subir ao Muro dos Homens — avisou Kossil —, vao acontecer-te coisas muito piores do que isto. Percebeste, Penthe?

A voz de Kossil era suave mas nao amigavel. Penthe respondeu «Sim!» e escapou-se dali, encolhendo-se e estremecendo sempre que o tecido grosseiro da roupa lhe rocava pelos cortes nas costas.

Arha permanecera ao lado de Thar, assistindo ao castigo, e agora observava Kossil, enquanto esta limpava os juncos. Thar disse-lhe:

— Nao e proprio que te vejam a trepar a muros e a fazer corridas com as outras raparigas. Tu es Arha.

Carrancuda, a rapariga nao deu resposta.

— E melhor que te limites a fazer apenas aquilo que te e necessario. Tu es Arha.

Por um momento, a rapariga ergueu os olhos para o rosto de Thar, depois para o de Kossil, e havia neles um abismo de odio ou raiva que era terrivel de ver. Mas a esguia sacerdotisa nao deu mostras de inquietacao. Em vez disso, insistiu, inclinando-se um pouco para a frente e quase num sussurro:

— Tu es Ahra. Nada sobrou. Tudo foi comido.

— Tudo foi comido — repetiu a rapariga, tal como repetira diariamente, em todos os dias da sua vida desde os seis anos.

Thar inclinou levemente a cabeca, no que foi imitada por Kossil enquanto punha de lado o acoite. A rapariga nao correspondeu a mesura mas voltou as costas submissamente e saiu.

Depois da ceia de batatas e cebolas novas, ingerida em silencio no refeitorio estreito e escuro, depois de entoados os canticos da noite, apostas as palavras sagradas sobre as portas, cumprido o breve Ritual dos Sem- Nome, estavam acabadas as tarefas do dia. As raparigas podiam agora subir para os dormitorios e fazer jogos com dados e pauzinhos, durante o tempo que durasse a unica vela de medula de junco, e depois segredar no escuro de cama para cama. Arha pos-se a caminho, atravessando os patios e vertentes do Lugar, tal como fazia todas as noites, ate a Casa Pequena onde dormia sozinha.

O vento noturno soprava suave. As estrelas do ceu primaveril brilhavam em cachos, como tapetes de margaridas nos prados da Primavera, como o reluzir da luz no mar de Abril. Mas a rapariga nao tinha qualquer memoria de prados ou do mar. Nao olhou para cima.

— Ola, pequenina!

— Manane — pronunciou ela com indiferenca.

Num arrastar de pes, a grande sombra veio por-se ao seu lado, a luz das estrelas a refletir-se na cabecorra calva.

— Foste castigada?

— Eu nao posso ser castigada.

— Nao… E tao…

— Elas nao me podem castigar. Nao se atrevem.

Manane ficou parado com as grandes maos pendentes, um vulto indistinto e volumoso. A rapariga sentiu o aroma de cebolas bravas, e o cheiro a suor e a salva das suas velhas roupagens pretas, rotas na bainha e demasiado curtas para ele.

— Elas nao me podem tocar. Eu sou Arha — continuou ela numa voz aguda e cheia de raiva. Depois rebentou em lagrimas.

As grandes, as expectantes maos ergueram-se e puxaram-na para junto dele, seguraram-na suavemente, afagaram-lhe o cabelo entrancado.

— Va, va. Meu favinho de mel, minha pequenina…

Arha ouvia o murmurio rouco ecoar profundamente no peito dele. As suas lagrimas em breve se estancaram, mas continuou agarrada a Manane, como se nao pudesse suster-se de pe.

— Minha pobrezinha — sussurrou o eunuco e, erguendo a crianca nos bracos, levou-a ate a porta da casa onde ela dormia sozinha. Ai, colocou-a no chao.

— Ja estas bem, agora, pequenina?

Ela acenou com a cabeca que sim, voltou-se e entrou no negrume da casa.

3. OS PRISIONEIROS

Os passos de Kossil soaram ao longo do patio de entrada da Casa Pequena, uniformes e deliberados. O seu vulto alto e pesado encheu a entrada do quarto, reduziu-se quando a sacerdotisa se inclinou, dobrando um joelho a tocar o chao, agigantou-se quando ela se endireitou completamente.

— Senhora.

— O que foi, Kossil?

— Ate agora, foi-me permitido tomar a meu cargo certos assuntos respeitantes ao Dominio d’Aqueles-que- nao-tem-Nome. Se for teu desejo, e agora tempo que aprendas, vejas e te ocupes desses assuntos que nao recordaste ainda nesta vida.

A rapariga tinha estado sentada no seu quarto sem janelas, supostamente a meditar, mas na realidade sem

Вы читаете Os Tumulos de Atuan
Добавить отзыв
ВСЕ ОТЗЫВЫ О КНИГЕ В ИЗБРАННОЕ

0

Вы можете отметить интересные вам фрагменты текста, которые будут доступны по уникальной ссылке в адресной строке браузера.

Отметить Добавить цитату
×