fazer nada e em quase nada pensando. Levou algum tempo antes que a expressao fixa, soturna e altiva do seu rosto se modificasse. Porem, modificou-se, embora ela tentasse oculta-lo. Num tom algo dissimulado, perguntou:

— O Labirinto?

— Nao, nao entraremos no Labirinto. Mas vai ser necessario atravessar o Subtumulo.

Havia na voz de Kossil um tom que talvez fosse de medo, ou um medo fingido destinado a atemorizar Arha. A rapariga ergueu-se sem pressa e disse indiferentemente:

— Muito bem!

Mas no seu coracao, enquanto seguia a poderosa figura da sacerdotisa do Reino-Deus, exultava: «Por fim! Por fim! Vou finalmente ver o meu proprio dominio!»

Tinha quinze anos. Ja havia um ano que adquirira o estatuto de mulher e, ao mesmo tempo, fora empossada de todos os poderes como Unica Sacerdotisa dos Tumulos de Atuan, a mais alta de todas as gra- sacerdotisas das Terras de Kargard, alguem a quem nem o proprio Rei-Deus podia dar ordens. Agora todos dobravam o joelho diante dela, mesmo as severas Thar e Kossil. Todos se lhe dirigiam com elaborada deferencia. Mas nada mudara. Nada acontecia. Passadas as cerimonias da sua consagracao, os dias continuaram a decorrer como sempre tinham decorrido. Havia la para ser fiada, pano negro para ser tecido, farinha para ser moida, ritos a ser cumpridos. Os Nove Canticos tinham de ser entoados todas as noites, as portas abencoadas, as Pedras alimentadas com sangue de cabra duas vezes por ano, as dancas da lua nova dancadas perante o Trono Vazio. E assim decorrera todo um ano, tal como haviam decorrido os anos anteriores, e ela perguntava-se se todos os anos da sua vida iriam tambem passar assim.

O tedio chegava por vezes a ser tao grande dentro dela que o sentia como um terror que lhe apertava a garganta. Havia nao muito tempo fora levada a falar disso. Tinha de falar, pensara, ou acabaria por endoidecer. Foi com Manane que se abriu. O orgulho impedia-a de se confiar as outras raparigas e a cautela, de se confessar as mulheres mais velhas, mas Manane era um nada, um velho carneiro fiel. Nao importava o que lhe dissesse. E, para sua surpresa, Manane tivera uma resposta para lhe dar.

— Ha muito tempo — disse ele —, sabes, minha pequenina, antes de os nossos quatro territorios estarem ligados a formar um imperio, antes de haver um Rei-Deus a governar-nos a todos, havia muitos pequenos reis e principes e chefes de cla. Andavam sempre em querelas uns com os outros. E vinham ate aqui para resolver as suas questoes. Era assim que era, vinham da nossa terra, Atuan, de Karego-At, de Atnini e ate de Hur-at-Hur, todos os chefes e principes com os seus servos e os seus exercitos. E perguntavam-te o que fazer. E tu apresentar-te-ias perante o Trono Vazio, a dar-lhes o conselho d’Aqueles-que-nao-tem-Nome. Bem, isso era ha muito. Ao fim de um certo tempo, os Reis-Sacerdotes chegaram a governar sobre toda Karego-At e pouco depois estenderam o seu poder a Atuan. E agora, ha quatro ou cinco vidas de homem, os Reis-Deuses tem governado os territorios em conjunto, fazendo deles um imperio. E assim se mudaram as coisas. O Rei-Deus pode destituir os chefes rebeldes e ele proprio resolve todas as questoes. E, estas tu a ver, sendo um deus, nao precisa de consultar muitas vezes Aqueles-que-nao-tem-Nome.

Arha interrompeu-o para meditar no que ouvira. Ali, naquela terra desertica, a sombra das Pedras imutaveis, levando uma vida que decorrera sempre do mesmo modo desde o principio do mundo, o tempo nao tinha grande significado. Nao estava habituada a pensar em coisas a mudar, em velhos costumes a morrer e outros novos a surgir. Nao lhe pareceu agradavel olhar as coisas a essa luz. Enrugando a testa, disse:

— Os poderes do Rei-Deus sao muito menores que os d’Aqueles que eu sirvo.

— Decerto… Decerto… Mas ninguem se vai por a dizer isso a um deus, meu favinho de mel. Nem a sua sacerdotisa.

E perscrutando-lhe os olhos pequeninos, castanhos e brilhantes, Arha pensou em Kossil, Gra-Sacerdotisa do Rei-Deus, a quem ela temera logo desde a primeira vez que pusera pe no Lugar. E entendeu o que ele queria dizer.

— Mas o Rei-Deus e as suas gentes estao a negligenciar o culto dos Tumulos. Ninguem aqui vem.

— Bom, ele envia prisioneiros para serem aqui sacrificados. Ai nao ha negligencia. Nem nas dadivas devidas a Aqueles-que-nao-tem-Nome.

— Dadivas! O seu templo e pintado de novo todos os anos, ha um quintal[1] de ouro no altar, as lampadas queimam essencia de rosas! E olha-me para a Mansao do Trono: buracos no teto, a cupula a abrir rachas, as paredes cheias de ratos e mochos e morcegos… Mas mesmo assim ha de durar mais que o Rei-Deus e todos os seus templos, e que todos os reis que vierem depois dele. Existia antes deles e, quando tiverem desaparecido, continuara a existir. Porque e o centro das coisas.

— E o centro das coisas.

— E ha riquezas. Thar fala-me delas as vezes. Suficientes para encher dez vezes o templo do Rei-Deus. Ouro e trofeus oferecidos ha eras atras, cem geracoes, sabe-se la quanto tempo. Estao fechadas nos fossos e subterraneos, la por baixo. Ainda nao me levaram la, deixam-me constantemente a espera. Mas eu sei como e. Ha camaras sob a Mansao do Trono, sob todo o Lugar, aqui mesmo debaixo do sitio onde estamos. Ha um grande emaranhado de tuneis, um Labirinto. E como uma grande cidade na escuridao, debaixo do monte. Cheia de ouro, e de espadas dos antigos herois, e velhas coroas e ossos e anos e silencio.

Ela falava como num transe, em extase. Manane fitava-a. O seu rosto petreo nunca exprimia muito mais que uma timida e obstinada tristeza, mas estava agora mais triste que o habitual.

— Bom — acabou por dizer —, e tu es senhora de tudo isso. Do silencio e da escuridao.

— Sou. Mas elas nao me deixam ver nada, so as salas acima do solo, por tras do Trono. Nem sequer me mostraram as entradas para os lugares subterraneos. So resmungam umas palavras acerca delas, de vez em quando. Estao a manter longe de mim o meu proprio dominio! Porque me hao de fazer esperar, esperar constantemente?

— Tu es jovem. E talvez — aventou Manane na sua aguda voz roufenha —, talvez tenham medo, pequenina. Ao fim e ao cabo, nao e o dominio delas, e o teu. Estao em perigo quando la entram. Nao ha mortal que nao tema Aqueles-que-nao-tem-Nome.

Arha nada disse mas os seus olhos relampejaram. Uma vez mais, Manane mostrara-lhe uma nova maneira de ver as coisas. Thar e Kossil sempre lhe tinham parecido tao formidandas, tao frias, tao fortes, que nunca havia sequer imaginado que pudessem ter medo. E no entanto Manane tinha razao. Elas temiam aqueles lugares, aqueles poderes de que Arha fazia parte, a que pertencia. Elas temiam entrar nos lugares de escuridao, nao fossem ser devoradas.

E agora, ao descer com Kossil os degraus da Casa Pequena, ao subir o ingreme caminho serpenteante que conduzia a Mansao do Trono, recordava aquela conversa com Manane e exultava de novo. Onde quer que a levassem, o que quer que lhe mostrassem, nao teria medo. Saberia encontrar o seu caminho.

Permanecendo ligeiramente atras dela no caminho, Kossil falou:

— Um dos deveres da minha senhora, como e de seu conhecimento, e o sacrificio de certos prisioneiros, criminosos de ascendencia nobre, que por sacrilegio ou traicao pecaram contra o nosso amo, o Rei-Deus.

— Ou contra Aqueles-que-nao-tem-Nome — contrapos Arha.

— Verdade. Ora, nao e proprio que a Devorada, quando ainda crianca, cumpra esse dever. Mas a minha senhora nao e ja uma crianca. Ha prisioneiros na Sala das Correntes, enviados dois meses atras por graca do nosso senhor, o Rei-Deus, da sua cidade de Auabath.

— Nao sabia que tinham chegado prisioneiros. Porque e que nao fui informada?

— Os prisioneiros sao trazidos durante a noite, e secretamente, tal como foi prescrito desde sempre nos rituais dos Tumulos. Pelo caminho secreto que a minha senhora seguira, se tomar pelo carreiro que corre ao longo do muro.

Arha saiu do trilho para seguir o grande muro de pedra que limitava os Tumulos por tras da sala abobadada. As rochas de que era construido eram macicas. A mais pequena de entre elas pesava mais que um homem e as maiores eram tao grandes como carrocoes. Embora nao fossem afeicoadas, estavam cuidadosamente dispostas e interligadas. No entanto, nalgum pontos, o cimo do muro dera de si e as rochas jaziam num amontoado informe. So uma enorme extensao de tempo pudera causar aquilo, os seculos de dias em brasa e noites glaciais do deserto, os movimentos milenares, imperceptiveis, das proprias colinas.

— E muito facil escalar o Muro dos Tumulos — comentou Arha, enquanto caminhavam ambas junto da construcao.

— Nao temos homens que cheguem para o voltar a erigir, — replicou Kossil.

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