como se lhe afigurava estranha, palida de um temor ainda mal dominado e no entanto triunfante, como se Kossil se regozijasse com a sua fraqueza.

— Irei sozinha a partir de hoje — asseverou Ahra e depois, tentando desviar-se de Kossil, sentiu as pernas a fraquejar e viu o quarto rodopiar. Desmaiou, ficando como um monticulo negro aos pes da sacerdotisa.

— Viras a aprender — disse Kossil, respirando pesadamente e permanecendo imovel. — Viras a aprender.

4. SONHOS E HISTORIAS

Arha esteve mal durante varios dias. Trataram-na para lhe baixarem a febre. Passava a maior parte do tempo na cama ou sentada sob a doce luz do Outono no atrio da Casa Pequena, olhando os montes a ocidente. Sentia-se fraca e estupidificada. Vinham-lhe a cabeca as mesmas ideias, uma vez e outra e outra ainda. Envergonhava-se de ter desmaiado. Nao fora colocado guarda algum sobre o Muro dos Tumulos, mas agora ela nunca mais teria coragem para interrogar Kossil a esse respeito. Nem queria mesmo voltar a ver Kossil. Nunca. E isso era pela sua vergonha de ter desmaiado.

Frequentes vezes, sob a luz do sol, punha-se a planejar como agiria da proxima vez que penetrasse nos lugares sombrios, sob a colina. Cogitava muitas vezes no genero de morte que ordenaria para a proxima leva de prisioneiros, mais elaborada, mais digna dos rituais do Trono Vazio. E todas as noites, na escuridao, acordava a gritar:

— Ainda nao estao mortos! Ainda estao a morrer!

Sonhava imenso. Sonhava que tinha de fazer comida, grandes caldeiroes de saborosas papas para depois entornar completamente dentro de um buraco no chao. Sonhava que tinha de levar uma bacia cheia de agua, uma funda bacia de bronze, atraves do escuro, a alguem que tinha sede. Nunca conseguia chegar junto dessa pessoa. Acordava, ela propria com sede, mas nao se levantava para ir beber. Deixava-se ficar deitada, de olhos abertos, no quarto sem janelas.

Certa manha, Penthe veio visita-la. Do atrio, Arha viu como ela se aproximava da Casa Pequena, com um ar descuidado e vago, como se acontecesse simplesmente ter passado por ali sem finalidade alguma. Se Arha nao tivesse falado, ela nunca teria subido os degraus. Mas Arha sentia-se so. E falou.

Penthe fez a profunda reverencia a que se obrigavam todos os que se aproximavam da Sacerdotisa dos Tumulos e depois deixou-se cair nos degraus aos pes de Arha e soltou um ruido que soou como «Pffiufffl». Tornara-se bastante alta e gorda A qualquer coisa que fizesse logo ficava vermelha como uma cereja e agora estava corada de andar.

— Ouvi dizer que estavas doente. Guardei algumas macas para te trazer.

E de repente, de um lado qualquer dentro do seu volumoso habito negro, retirou uma rede de junco entrancado contendo umas oito macas, perfeitas e amarelas. Penthe estava agora consagrada ao servico do Rei- Deus e servia no seu templo as ordens de Kossil. Mas ainda nao era sacerdotisa e continuava a ter licoes e tarefas juntamente com as novicas.

— Este ano, a Poppe e eu e que escolhemos as macas e eu pus de lado as melhores de todas. Poem sempre a secar as que sao mesmo melhores. E claro que duram mais, mas parece-me um desperdicio tao grande. Nao sao lindas?

Arha apalpou a pele acetinada, dourada, das macas, olhou os pes a que aderiam ainda delicadamente folhas castanhas.

— Sao. Sao lindas.

— Come uma — disse Penthe.

— Agora nao. Come tu.

Penthe, por delicadeza, escolheu a mais pequena e devorou-a com dez dentadas sumarentas, eficazes e interessadas.

— Era capaz de passar o dia todo a comer — confessou ela. — Nunca tenho que me chegue. Quem me dera ser cozinheira em vez de sacerdotisa. Havia de cozinhar melhor que aquela velha sovina da Nathabba e, alem disso, podia rapar os tachos… Ah, sabes do que aconteceu a Munith? Ela estava encarregada de polir aqueles jarros de bronze onde se guarda o oleo de rosas, sabes, os estreitos e compridos, com tampas. Vai dai ela pensou que tambem tinha de os limpar por dentro de maneira que enfiou a mao num, com uma rodilha a volta, estas a ver, e depois nao conseguiu tirar a mao. Tentou com tanta forca que ficou com o pulso todo empolado e inchado, estas a ver, de maneira que entao e que ficou mesmo presa. E desatou a correr como um cavalo pelo dormitorio todo e a gritar: «Nao o consigo tirar! Nao o consigo tirar!» E o Punti ja esta tao surdo que julgou que havia fogo e desatou a guinchar para os outros vigilantes que viessem salvar as novicas. E o Uahto, que estava a ordenhar, veio a correr la do curral a ver o que se passava, e deixou a porta aberta, de maneira que as cabras leiteiras sairam e vieram em debandada para o patio e atiraram-se ao Punti e aos vigilantes e as miudas, e a Munith continuava a sacudir o jarro na ponta do braco, completamente histerica, de maneira que andava tudo por ali numa correria, eis senao quando sai a Kossil do templo. E vai e diz: «Que vem a ser isto? Que vem a ser isto?»

E o rosto redondo e simpatico de Penthe contorceu-se numa careta de repulsa, que nada tinha a ver com a fria expressao de Kossil e, no entanto, de certa maneira, era tao parecida com Kossil que Arha soltou uma especie de riso resfolegado e quase atemorizado. Mas ja Penthe prosseguia.

— «Que vem a ser isto? Que vem a ser isto?» repetiu a Kossil. E entao… e entao a cabra castanha chifrou- lhe no rabo — e Penthe desfez-se em gargalhadas, com as lagrimas a encherem-lhe os olhos. — E a Mu-Munith deu com o jarro na cacabra.

As duas raparigas balancaram-se para a frente e para tras em risadas espasmodicas, agarradas aos joelhos, quase a sufocar.

— E a Kossil virou-se para tras e disse «Que vem a ser isto? Que vem a ser isto?» para a… para a… para a cabra…

O fim da historia perdeu-se em gargalhadas. Finalmente, Penthe enxugou os olhos, assoou o nariz e, distraidamente, pos-se a comer outra maca.

Todo aquele riso deixara Arha um pouco tremula. Fez por se acalmar e, dai a pouco, perguntou:

— Como e que vieste para aqui, Penthe?

— Oh, eu era a sexta rapariga que os meus pais tinham tido e eles nao podiam criar tantas e casar todas. De maneira que, quando fiz sete anos, trouxeram-me ao templo do Rei-Deus e dedicaram-me. Foi isto em Ossaua. Mas acho que ai havia novicas a mais, porque, pouco depois, mandaram-me para ca. Ou talvez tenham pensado que eu era capaz de dar uma sacerdotisa especialmente boa ou assim. Mas, se foi isso, estavam muito enganados!

E Penthe mordeu a maca com uma expressao entre divertida e pesarosa.

— Preferias nao ter sido sacerdotisa?

— Se preferia? Claro! Antes queria casar com um guardador de porcos e viver num chiqueiro. Antes queria sei la o que do que ficar aqui enterrada viva, todos os dias da minha vida, com um monte de mulheres num desgracado de um deserto onde nunca vem ninguem! Mas nao serve de nada por-me a desejar assim, porque agora ja fui consagrada e nao me posso livrar disso. Mas so espero que na minha proxima vida seja uma dancarina em Auabath! Porque bem o terei merecido.

Arha baixou a vista para ela, uma expressao parada e soturna nos olhos. Nao compreendia. Sentia que nunca antes tinha visto realmente Penthe, que nunca a olhara e vira, rotunda e plena de vida e sumo como uma das suas macas douradas, linda de se ver.

— Entao o Templo nao significa nada para ti? — perguntou, com bastante aspereza.

Penthe, sempre submissa e a quem era facil atemorizar, nao se alarmou desta vez.

— Ah, eu bem sei como os teus Senhores sao importantes para ti — disse, com uma indiferenca que chocou Arha. — Seja como for, isso ate faz algum sentido porque tu es a sua unica serva especial. Tu nao foste so consagrada, nasceste especialmente para isso. Mas ve o meu caso. Sera que tenho de sentir tanto temor respeitoso, e isso assim, pelo Rei-Deus? Afinal, e so um homem, apesar de viver em Auabath, num palacio com dez milhas a toda a volta e telhados de ouro. Mas ele tem uns cinquenta anos e e careca. Ve-se muito bem em

Вы читаете Os Tumulos de Atuan
Добавить отзыв
ВСЕ ОТЗЫВЫ О КНИГЕ В ИЗБРАННОЕ

0

Вы можете отметить интересные вам фрагменты текста, которые будут доступны по уникальной ссылке в адресной строке браузера.

Отметить Добавить цитату
×