verdadeiro inferno», pensou, acendendo outro cigarro.
O piano continuava tocando, a moca parecia ter energia suficiente para passar a noite em claro.
Desde que aquela menina entrara no sanatorio, muitos internos haviam sido afetados — e Mari era um deles. No comeco, tinha procurado evita-la, temendo despertar sua vontade de viver; era melhor que continuasse desejando a morte, porque nao podia evita-la mais. O Dr. Igor deixara escapar o boato de que, embora continuasse lhe dando injecoes todos os dias, o estado da moca deteriorava a olhos vistos, e nao conseguiria salva-la de jeito nenhum.
Os internos haviam entendido o recado, e mantinham distancia da mulher condenada. Mas — sem que ninguem soubesse exatamente porque — Veronika comecara a lutar por sua vida, embora apenas duas pessoas se aproximassem dela: Zedka, que iria embora amanha, e nao era de falar muito. E Eduard.
Mari precisava ter uma conversa com Eduard: ele sempre a escutava com respeito. Sera que o rapaz nao entendia que a estava trazendo de volta ao mundo? E que isso era a pior coisa que podia fazer com uma pessoa sem esperanca de salvacao?
Considerou mil possibilidades de explicar o assunto: todas elas envolviam coloca-lo com sentimento de culpa, e isto ela nao faria nunca. Mari refletiu um pouco e resolveu deixar as coisas correrem seu ritmo normal; ja nao advogava mais, e nao queria dar o mau exemplo de criar novas leis de comportamento, num local onde devia reinar a anarquia.
Mas a presenca da menina tinha afetado muita gente ali, e alguns estavam dispostos a repensar suas vidas. Num dos encontros da Fraternidade, alguem tentara explicar o que estava acontecendo: os falecimentos em Villete aconteciam de repente, sem dar tempo do ninguem pensar a respeito, ou no final de uma longa doenca — onde a morte sempre e uma bencao.
No caso daquela menina, porem, a cena era dramatica -porque era jovem, estava desejando viver de novo, e todos sabiam que isso era impossivel. Algumas pessoas se perguntavam: «se isso estivesse acontecendo comigo? Como eu tenho uma chance, sera que a estou utilizando? «
Alguns nao se incomodavam com a resposta; ha muito tinham desistido, e ja faziam parte de um mundo onde nao existe nem vida nem morte, nem espaco nem tempo. Outros, porem, estavam sendo forcados a refletir, e Mari era um deles.
Veronika parou de tocar por um instante, e olhou Mari la fora, enfrentando o frio noturno com um casaco leve; sera que ela queria se matar?
«Nao. Quem quis se matar fui eu.» Voltou ao piano. Nos seus ultimos dias de vida,
realizara finalmente o grande sonho: tocar com alma e coracao, o tempo que quisesse, na altura que achasse melhor. Nao tinha importancia se a sua unica plateia era um rapaz esquizofrenico; ele parecia entender a musica, e isso era o que contava.
Mari nunca quisera se matar. Ao contrario, ha cinco anos atras, dentro do mesmo cinema onde fora hoje, ela assistia horrorizada um filme sobre a miseria em El Salvador, e pensava o quanto sua vida era importante. Nesta epoca — com os filhos ja grandes e encaminhados em suas profissoes — ja estava decidida a largar o aborrecido e interminavel trabalho de advocacia, para dedicar o resto de seus dias trabalhando numa entidade humanitaria. Os rumores de guerra civil no pais cresciam a cada momento, mas Mari nao acreditava neles: era impossivel que, no final do seculo, a Comunidade Europeia deixasse ocorrer uma nova guerra em suas portas.
Do outro lado do mundo, porem, a escolha das tragedias era farta: e entre estas tragedias estava a de El Salvador, com suas criancas passando fome na rua, e sendo obrigadas a prostituir-se.
— Que horror — disse ao marido, sentado na poltrona ao lado.
Ele concordou com a cabeca.
Mari vinha adiando a decisao ha muito tempo, mas talvez fosse a hora de conversar com ele. Ja tinham recebido tudo que a vida podia oferecer de bom: casa, trabalho, bons filhos, conforto necessario, divertimento e cultura. Porque nao fazer agora algo pelo proximo? Mari tinha contatos na Cruz Vermelha, sabia que voluntarios eram desesperadamente necessarios em muitas partes do mundo.
Estava farta de trabalhar com burocracia, processos, sendo incapaz de ajudar gente que passava anos de sua vida para resolver um problema que nao havia criado. Trabalhar na Cruz Vermelha, porem, iria dar resultados imediatos.
Resolveu que, assim que saissem do cinema, iria convida-lo para um cafe, e discutir a ideia.
A tela mostrava algum funcionario do governo
salvadorenho dando uma desculpa desinteressante para determinada injustica, e — de repente — Mari sentiu que seu coracao acelerava.
Disse para si mesmo que nao era nada. Talvez o ar abafado do cinema a estivesse asfixiando; se o sintoma persistisse, ia ate a sala de espera respirar um pouco.
Mas, numa sucessao rapida de acontecimentos, o coracao comecou a bater mais e mais forte, e ela comecou a suar frio.
Assustou-se, e tentou prestar atencao no filme, para ver se tirava qualquer tipo de pensamento negativo da cabeca. Mas viu que ja nao conseguia acompanhar o que estava acontecendo na tela; as imagens continuavam, os letreiros eram visiveis, enquanto Mari parecia haver entrado numa realidade completamente diferente, onde
tudo aquilo era estranho, fora de lugar, pertencendo a um mundo onde jamais estivera antes.
— Estou passando mal — disse ao marido.
Procurara evitar ao maximo fazer este comentario, porque significava admitir que algo estava errado com ela. Mas era impossivel adia-lo mais.
— Vamos ate la fora— respondeu ele.
Quando pegou na mao da mulher para ajuda-la a levantar-se, notou que estavam geladas.
— Nao vou conseguir chegar ate la fora. Por favor, me diga o que esta acontecendo.
O marido assustou-se. O rosto de Mari estava coberto de suor, e seus olhos tinham um brilho diferente.
— Fique calma. Eu vou sair, e chamar um medico.
Ela desesperou-se. As palavras faziam sentido, mas todo o resto — o cinema, a penumbra, as pessoas sentadas lado a lado e olhando para uma tela brilhante — tudo aquilo parecia ameacador. Tinha certeza de que estava viva, podia ate mesmo tocar a vida ao seu redor, como se fosse solida. E nunca antes passara por aquilo.
— Nao me deixe aqui sozinha, de maneira nenhuma. Vou levantar, e vou sair com voce. Ande devagar.
Os dois pediram licenca aos espectadores que se
encontravam na mesma fila, e comecaram a caminhar em direcao ao fundo da sala, onde estava a porta de saida. O coracao de Mari agora estava completamente disparado, e ela tinha certeza, absoluta certeza, de que nunca ia conseguir deixar aquele local. Tudo que fazia, cada gesto seu — colocar um pe diante do outro, pedir licenca, agarrar-se ao braco do marido, respirar e expirar -parecia consciente e pensado, e aquilo era aterrador.
Nunca sentira tanto medo em sua vida.
« Vou morrer dentro de um cinema».
E julgou entender o que estava passando, porque uma amiga sua morrera dentro de um cinema, ha muitos anos atras: um aneurisma havia estourado em seu cerebro.
Os aneurismas cerebrais sao as bombas-relogio. Pequenas varizes que se formam nos vasos sanguineos — como bolhas em pneus usados — e que podem passar ali toda a existencia de uma pessoa, sem que nada aconteca. Ninguem sabe se tem um aneurisma, ate que ele e descoberto sem querer — como no caso de uma radiografia do cerebro por outros motivos — ou no momento em que ele explode, inundando tudo de sangue, colocando a pessoa imediatamente em coma, e geralmente fazendo com que morra em pouco tempo.
Enquanto caminhava pelo corredor da sala escura, Mari lembrava-se da amiga que perdera. O mais estranho, porem, era como a explosao do aneurisma estava afetando a sua percepcao: ela parecia ter sido transportada para um planeta diferente, vendo cada coisa familiar como se fosse a primeira vez.
E o medo aterrador, inexplicavel, o panico de estar so naquele outro planeta. A morte.
«Nao posso pensar. Tenho que fingir que tudo esta bem, e tudo ficara bem».