um longo tempo, e voltou para o escritorio.

— A senhora esta sem maquiagem — disse uma estagiaria. -Quer que eu lhe empreste a minha?

Mari nao se deu ao trabalho de responder. Entrou no escritorio, pegou sua bolsa, seus pertences pessoais, e disse para a secretaria que ia passar o resto do dia em casa.

— Mas existem muitos encontros marcados! — protestou a secretaria.

— Voce nao da ordens: recebe. Faca exatamente o que estou mandando.

A secretaria acompanhou com os olhos aquela mulher, com quem trabalhava ha quase tres anos, e que nunca fora grosseira. Algo muito serio devia estar acontecendo com ela: talvez alguem lhe tivesse dito que o marido estava em casa com uma amante, e ela queria provocar um flagrante de adulterio.

«E uma advogada competente, sabe como agir», disse a moca para si mesma. Com certeza, amanha a doutora lhe pediria desculpas.

Nao houve amanha. Naquela noite teve uma longa conversa com o marido, e descreveu-lhe todos os sintomas do que passara a sentir. Juntos, chegaram a conclusao que as palpitacoes no coracao, o suor frio, a estranheza, impotencia e descontrole -tudo podia ser resumido numa so palavra: medo.

Marido e mulher estudaram juntos o que estava acontecendo. Ele pensou em um cancer na cabeca, mas nao disse nada. Ela pensou que estava tendo premonicoes de algo terrivel, e tampouco disse. Procuraram um terreno comum para conversar, com a logica e a razao de gente madura.

— Talvez seja bom voce fazer uns exames.

Mari concordou, sob uma condicao: ninguem, nem mesmo os seus filhos, podiam saber de nada.

No dia seguinte solicitou — e recebeu — uma licenca nao remunerada de 30 dias no escritorio de advocacia. O marido pensou em leva-la para a Austria, onde estavam os grandes especialistas de doencas no cerebro, mas ela recusava-se a sair de casa — os ataques agora eram mais frequentes, e demoravam mais tempo.

Com muito custo, e a base de calmantes, os dois ate um hospital de Lubljana, e Zedka submeteu-se a uma quantidade enorme de exames. Nada de anormal foi encontrado — nem mesmo um aneurisma, o que tranquilizou Mari pelo resto dos anos seguintes.

Mas os ataques de panico continuavam. Enquanto o marido ocupava-se das compras e cozinhava, e Mari fazia uma limpeza diaria e compulsiva na casa, para manter a mente concentrada em outras coisas. Comecou a ler todos os livros de psiquiatria que podia encontrar, e parou de ler logo em seguida — porque parecia identificar-se com cada uma das doencas que eram descritas ali.

O mais terrivel de tudo e que os ataques ja nao eram mais novidade, e mesmo assim ela continuava sentindo pavor, estranhamento diante da realidade, incapacidade de controlar a si mesma. Alem disso, comecou a culpar-se pela situacao do marido, que era obrigado a trabalhar dobrado, suprindo suas proprias tarefas como dona de casa — exceto a limpeza.

Com os dias passando, e a situacao nao se resolvendo, Mari comecou a sentir — e externar — uma irritacao profunda. Tudo era motivo para que perdesse a calma e comecasse a gritar, terminando invariavelmente num choro compulsivo.

Depois de trinta dias, o socio de Mari no escritorio apareceu em sua casa. Ele ligava todos os dias, mas ela nao atendia o telefone, ou mandava o marido dizer que estava ocupada. Naquela tarde, ele simplesmente ficou tocando a campainha, ate que ela abrisse a porta.

Mari tinha passado uma manha tranquila. Preparou um cha, conversaram sobre o escritorio, e ele perguntou quando ela voltaria a trabalhar.

— Nunca mais.

Ele recordou a conversa sobre El Salvador.

-Voce sempre deu o melhor de si, e tem o direito de escolher o que quiser— disse ele, sem qualquer rancor na voz. -Mas penso que o trabalho, nestes casos, e a melhor de todas as terapias. Faca as suas viagens, conheca o mundo, seja util onde acha que estao precisando de voce, mas as portas do escritorio estao abertas, esperando sua volta.

Ao ouvir isso, Mari caiu em prantos — como costumava fazer agora, com muita facilidade.

O socio esperou ate que ela se acalmasse. Como bom advogado, nao perguntou nada; sabia que tinha mais chances de conseguir uma resposta com o seu silencio, do que com uma pergunta.

E assim foi. Mari contou a historia, desde o que acontecera no cinema, ate os seus recentes ataques histericos com o marido, tanto a apoiava.

— Estou louca — disse.

— E uma possibilidade — respondeu ele, com ar de quem entende tudo, mas com ternura em sua voz. — Neste caso, voce tem duas coisas a fazer: tratar-se, ou continuar doente.

— Nao ha tratamento para o que estou sentindo. Continuo em pleno dominio de minhas faculdades mentais, e estou tensa porque esta situacao ja se prolonga por muito tempo. Mas nao tenho os sintomas classicos da loucura — como ausencia da realidade, desinteresse, ou agressividade descontrolada. Apenas medo.

— E o que todos os loucos dizem: que sao normais. Os dois riram, e ela preparou um pouco mais de cha.

Conversaram sobre o tempo, o sucesso da independencia eslovena, a tensoes que agora surgiam entre a Croacia e a Yugoslavia. Mari assistia TV o dia inteiro, e estava muito bem informada sobre tudo.

Antes de se despedir, o socio tornou a tocar no assunto.

— Acabam de abrir um sanatorio na cidade — disse. -Capital externo, e tratamento de primeiro mundo.

— Tratamento de que?

— Desequilibrios, vamos dizer assim. E medo em exagero e um desequilibrio.

Mari prometeu pensar no assunto, mas nao tomou nenhuma decisao neste sentido. Continuou a ter ataques de panico por mais um mes, ate entender que nao apenas sua vida pessoal, mas seu casamento estava vindo abaixo. De novo pediu alguns calmantes, e ousou sair de casa — pela segunda vez em sessenta dias.

Tomou um taxi, e foi ate o novo sanatorio. No caminho, o motorista perguntou se ia visitar alguem.

— Falam que e muito confortavel, mas dizem tambem que os loucos sao furiosos, e que os tratamentos incluem choques eletricos.

— Vou visitar alguem — respondeu Mari.

Bastou apenas uma hora de conversa para que dois meses de sofrimento de Mari terminassem. O chefe da instituicao — um homem alto e cabelos tingidos de negro, que atendia pelo nome de Dr. Igor — explicou que tratava-se de apenas um caso de Sindrome do Panico, doenca recem-admitida nos anais da psiquiatria universal.

— Nao quer dizer que a doenca seja nova — explicou, com o cuidado de ser bem compreendido. — Acontece que as pessoas afetadas costumava esconde-la, com medo de serem confundidos com loucos. E apenas um desequilibrio quimico no organismo, como e o caso da depressao.

Dr. Igor escreveu uma receita, e pediu que voltasse para casa.

— Nao quero voltar agora — respondeu Mari. — Mesmo com tudo que o senhor me disse, nao vou ter coragem de sair na rua. Meu casamento virou um inferno, e preciso deixar que meu marido tambem se recupere destes meses que passou cuidando de mim.

Como sempre acontecia em casos como estes — ja que os acionistas queriam manter o hospicio funcionando em plena capacidade — o Dr. Igor aceitou a internacao, embora deixando bem claro que nao era necessario.

Mari recebeu a medicacao necessaria, teve um

acompanhamento psicologico, e os sintomas diminuiram — terminando por passar completamente.

Neste meio tempo, porem, a historia da internacao de Mari correu a pequena cidade de Lubljana. O seu socio, amigo de muitos anos, companheiro de nao se sabe quantas horas de alegria e medo, veio visita-la em Villete. Cumprimentou-a pela coragem de aceitar seu conselho, e procurar ajuda. Mas logo disse a razao por que viera:

— Talvez seja mesmo hora de voce se aposentar.

Mari entendeu o que estava por detras daquelas palavras: ninguem ia querer confiar seus negocios a uma advogada que ja tinha sido internada num hospicio.

— Voce disse que o trabalho era a melhor terapia. Eu preciso voltar, nem que seja por um tempo muito

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