Procurou agir naturalmente, e por alguns segundos a sensacao de estranheza diminuiu. Desde o momento em que tivera o primeiro sintoma de taquicardia, ate a hora que alcancou a porta, havia passado os dois minutos mais aterradores de sua vida.

Quando chegaram a sala de espera iluminada, porem, tudo pareceu voltar. As cores eram fortes, o ruido da rua la fora parecia entrar por todos os cantos, e as coisas eram absolutamente irreais. Comecou a reparar em detalhes que nunca antes havia notado: a nitidez da visao, por exemplo, que cobre apenas uma pequena area onde concentramos nossos olhos, enquanto o resto fica totalmente desfocado.

Foi mais longe ainda: sabia que tudo aquilo que via a sua volta nao passava de uma cena criada por impulsos eletricos dentro de seu cerebro, utilizando impulsos de luz que atravessavam um corpo gelatinoso, chamado «olho».

Nao. Nao podia comecar a pensar nisso. Se enveredasse por ai, ia terminar completamente louca.

A esta altura, o medo do aneurisma ja tinha passado; ela saira da sala de projecao e continuava viva — enquanto sua amiga nao tivera nem tempo de mover-se da cadeira.

— Chamarei uma ambulancia — disse o marido, ao ver o rosto palido e os labios sem cor de sua mulher.

— Chame um taxi — pediu, escutando o som que saia de sua boca, consciente da vibracao de cada corda vocal.

Ir para o hospital significava aceitar que estava realmente muito mal: Mari estava decidida a lutar ate o ultimo minuto para que as coisas voltassem a ser o que eram.

Sairam da sala de espera, e o frio cortante pareceu surtir algum efeito positivo; Mari recuperou um pouco o controle de si mesma, embora o panico, o terror inexplicavel continuasse. Enquanto o marido, desesperado, tentava encontrar um taxi aquela hora da noite, ela sentou-se no meio fio e procurou nao olhar o que havia a sua volta — porque os garotos brincando, os onibus passando, a musica que vinha de um parque de diversoes nas cercanias, tudo aquilo parecia absolutamente surrealista, assustador, irreal.

Um taxi finalmente apareceu.

— Para o hospital — disse o marido, ajudando a mulher a entrar.

— Para casa, pelo amor de Deus — pediu ela. Nao queria mais lugares estranhos, precisava desesperadamente de coisas familiares, iguais, capazes de diminuir o medo que sentia.

Enquanto o taxi se dirigia ao destino indicado, a

taquicardia foi diminuindo, e a temperatura de seu corpo comecou a voltar ao normal.

— Estou melhorando -disse para o marido. — Deve ser sido alguma coisa que comi.

Quando chegaram em casa, o mundo parecia de novo o mesmo que conhecera desde sua infancia. Ao ver o marido dirigir-se ao telefone, perguntou o que ia fazer.

— Chamar um medico.

— Nao ha necessidade. Olhe para mim, veja que estou bem. A cor de seu rosto havia voltado, o coracao batia

normalmente, e o medo incontrolavel tinha desaparecido.

Mari dormiu pesadamente aquela noite, e acordou com uma certeza; alguem colocara alguma droga no cafe que haviam bebido antes de entrar no cinema. Tudo nao passara de uma brincadeira perigosa, e ela estava disposta — no final da tarde — a chamar um promotor e ir ate o bar para tentarem descobrir o irresponsavel autor da ideia.

Foi para o trabalho, despachou alguns processos que estavam pendentes, procurou ocupar-se com os mais diversos assuntos — a experiencia do dia anterior ainda lhe deixava um pouco assustada, e precisava mostrar a si mesma que aquilo nao se repetiria nunca mais.

Discutiu com um dos seus socios o filme sobre El Salvador e mencionou — de passagem — que ja estava cansada de fazer todo dia a mesma coisa.

— Talvez tenha chegado a hora de me aposentar.

— Voce e uma das melhores que temos — disse o socio. — E o Direito e uma das raras profissoes onde a idade sempre conta a favor. Por que nao tira umas ferias prolongadas? Tenho certeza que voltara com entusiasmo para ca.

— Quero dar uma guinada na minha vida. Viver uma aventura, ajudar os outros, fazer algo que nunca fiz.

A conversa acabou por ali. Foi ate a praca, almocou num restaurante mais caro do que o que costumava almocar sempre, e voltou mais cedo para o escritorio — a partir daquele momento, estava comecando a sua retirada.

O resto dos funcionarios ainda nao voltara, e Mari aproveitou para ver o trabalho que ainda estava em sua mesa. Abriu a gaveta para pegar uma caneta que sempre colocava no mesmo lugar, e nao conseguiu encontra-la. Por uma fracao de segundo, pensou que talvez estivesse agindo de maneira estranha, pois nao havia recolocado sua caneta onde devia.

Foi o suficiente para que o coracao tornasse a disparar, e o terror da noite anterior voltasse com toda a sua forca.

Mari ficou paralisada. O sol que entrava pelas persianas dava a tudo uma cor diferente, mais viva, mais agressiva, mas ela tinha a sensacao de que ia morrer no proximo minuto; tudo aquilo ali era absolutamente estranho, o que estava fazendo naquele escritorio?

«Meu Deus, eu nao acredito em voce, mas me ajuda».

Comecou de novo a suar frio, e viu que nao conseguia controlar seu medo. Se alguem entrasse ali, naquele momento, ia notar seu olhar assustado, e ela estaria perdida.

«O frio».

O frio tinha feito com que se sentisse melhor no dia anterior, mas como chegar ate a rua? De novo estava percebendo cada detalhe que se passava com ela — o ritmo da respiracao (havia momentos em que sentia que, se nao inspirasse e expirasse, o corpo seria incapaz de fazer isso por si mesmo), o movimento da cabeca (as imagens mudavam de lugar como se fosse uma camara de televisao girando) , o coracao disparando cada vez mais, o corpo sendo banhado por um suor gelado e pastoso.

E o terror. Sem qualquer explicacao, um medo gigantesco de fazer qualquer coisa, dar qualquer passo, sair de onde estava sentada.

«Vai passar».

Tinha passado no dia anterior. Mas agora estava no trabalho, o que fazer? Olhou o relogio — que lhe pareceu tambem um mecanismo absurdo, com duas agulhas girando em torno do mesmo eixo, indicando uma medida de tempo que ninguem jamais dissera porque devia ser 12, e nao 10 — como todas as outras medidas do homem.

«Nao posso pensar nestas coisas. Elas me deixam louca».

Louca. Talvez esta fosse a palavra certa para o que estava lhe acontecendo; juntando toda a sua vontade, Mari levantou-se e caminhou para o banheiro. Felizmente o escritorio continuava vazio, e ela conseguiu chegar onde queria em um minuto — que lhe pareceu uma eternidade. Lavou o rosto, e a sensacao de estranhamento diminuiu, mas o medo continuava.

«Vai passar», dizia para si mesma. «Ontem passou».

Lembrava-se que, no dia anterior, tudo havia demorado aproximadamente uns 30 minutos. Trancou-se dentro de uma das toaletes, sentou-se no vaso, e colocou a cabeca entre as pernas. A posicao fez com que o som de seu coracao fosse ampliado, e Mari logo ergueu o corpo.

«Vai passar.»

Ficou ali, achando que nao conhecia mais a si mesma, estava irremediavelmente perdida. Escutou passos de gente entrando e saindo do banheiro, torneiras sendo abertas e fechadas, conversas inuteis sobre temas banais. Mais de uma vez alguem tentou abrir a porta do toalete onde estava, mas ela dava um murmurio, e ninguem insistia. Os ruidos das descargas soavam como algo apavorante, capaz de derrubar o edificio e levar todas as pessoas para o inferno.

Mas — conforme previra — o medo foi passando, e seu coracao foi voltando ao normal. Ainda bem que sua secretaria era incompetente o bastante para sequer notar a sua falta, ou ja todo o escritorio estaria no banheiro, perguntando se ela estava bem.

Quando viu que conseguia manter de novo o controle de si mesma, Mari abriu a porta, lavou o rosto por

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