aperta a mao de Bowen e depois a nossa, nao fala frances mas pede a Bowen para nos dizer que Clousiot sera bem atendido e que nos poderemos vir ve-lo sempre que quisermos. Com o carro de Bowen atravessamos a cidade. Ficamos maravilhados de ver que e iluminada, com seus carros, suas bicicletas. Brancos, negros, amarelos, indios, chineses andam juntos pelas calcadas desta cidade toda de madeira que e Port-of-Spain. Chegamos ao Exercito da Salvacao, uma hospedaria na qual somente o andar terreo e de pedra e o restante e de madeira, casa bem situada numa praca iluminada onde consegui ler “Fish Market” (Mercado de Peixe); o capitao do Exercito da Salvacao nos recebe em companhia de todo o seu estado-maior, mulheres e homens. Fala um pouco de frances, todos nos dirigem palavras em ingles, que nao entendemos, mas os rostos sao tao sorridentes, os olhares tao acolhedores, que sabemos que eles dizem coisas delicadas.

Levam-nos para um quarto no segundo andar, com tres camas – a terceira reservada para Clousiot -, um banheiro pegado ao quarto, com sabonete e toalha a nossa disposicao. Depois de nos ter indicado o quarto, o capitao diz:

– Se quiserem comer, o jantar e em comum, as 7 horas, portanto daqui a meia hora.

– Nao, nao temos fome.

– Se quiserem passear pela cidade, aqui estao dois dolares antilhanos para tomarem um cafe, um cha, ou um sorvete. Por favor, nao se percam. Quando quiserem voltar, perguntem o caminho com estas palavras: “Salvation Army, please?”

Dois minutos depois, estamos na rua, andamos na calcada, acotovelamo-nos com as pessoas, ninguem olha para nos, ninguem presta atencao em nos; respiramos profundamente, gozando com emocao esses primeiros passos livres numa cidade. Essa confianca continua em nos, presente no fato de nos deixarem livres numa cidade bastante grande, nos anima e da nao apenas confianca em nos mesmos, mas tambem a perfeita consciencia de que e impossivel trair essa fe depositada em nos. Maturette e eu andamos lentamente no meio da multidao. Sentimos necessidade de nos aproximar das pessoas, de ser empurrados, de nos assimilar a elas para fazer parte do povo. Entramos num bar e pedimos cerveja. Parece que nao e nada dizer: “Two beers, please”. E tao natural! Bom e alem do mais parece-nos fantastico que uma india com sua conchinha de ouro no nariz diga, depois de servir a gente: “Half a dollar, sir”. Seu sorriso de dentes de perola, seus grandes olhos de um negro violeta, um pouquinho fechados nos cantos, os cabelos de azeviche que caem sobre seus ombros, o vestido meio aberto no principio dos seios, deixando perceber a grande beleza deles, essas coisas futeis, tao naturais para todo mundo, parecem para nos fantasticamente feericas. Escute, Papi, nao e verdade, nao pode ser verdade que tao rapidamente, de morto-vivo, de forcado perpetuo, voce esteja se transformando num homem livre!

Maturette paga, fica so com meio dolar. A cerveja e deliciosamente fresca e ele diz: “Tomamos outra?” A segunda rodada que ele gostaria de beber me parece uma coisa que nao devemos fazer.

– Escute, nao faz nem uma hora que voce esta em verdadeira liberdade e ja pensa em se encher de bebida.

– Oh! por favor, Papi, nao exagere! Entre tomar duas cervejas e se encher de bebidas ha muita diferenca.

– Pode ser que voce tenha razao, mas eu acho que decentemente nao devemos cair em cima dos prazeres que o momento oferece para a gente. Acho que precisamos saborea-los pouco a pouco e nao como um glutao. Para comecar, esse dinheiro nao e nosso.

– E, e verdade, voce tem razao. Vamos aprender a ser livres com conta-gotas, esta mais de acordo.

Saimos e descemos a grande Walters Street, avenida principal, que atravessa a cidade de um lado ao outro, e, sem perceber, espantados, maravilhados com os bondes que passam, com os burros com suas charretinhas, com os carros, os anuncios resplandecentes dos cinemas e das boates, com os olhos das jovens negras e indias que olham para a gente rindo, encontramo-nos no porto. Chegamos ali sem querer. Na nossa frente, os navios todos iluminados, navios de turistas com nomes fascinantes: Panama, Los Angeles, Boston, Quebec; navios cargueiros: Hamburgo, Amsterdam, Londres, etc. E, estendendo-se ao longo do cais, colados uns aos outros, bares, cabares, restaurantes, todos cheios de homens e de mulheres que bebem, cantam, discutem em voz alta. De repente, uma necessidade irresistivel me impele a me misturar com essa multidao, vulgar talvez, mas tao cheia de vida. No terraco de um bar, enfileirados no gelo, ostras, ouricos-do-mar, caranguejos, mexilhoes, facas-do-mar, toda uma exposicao de frutas do mar que provoca os transeuntes. As mesas com toalhas xadrezes vermelhas e brancas, a maior parte ocupadas, convidam a sentar. Mocas de pele morena clara, o perfil fino, mulatas sem nenhum traco negroide, modeladas dentro de blusas coloridas, amplamente decotadas, nos aconselham implicitamente a aproveitar tudo aquilo. Aproximo-me de uma delas e digo: “French money good?”, apresentando uma nota de 1 000 francos. “Yes, change for you.” “OK.” Ela pega a nota e desaparece na sala repleta de gente. Volta. “Come here”, e me leva ate a caixa onde esta um chines.

– Voce frances?

– Sim.

– Trocar 1 000 francos?

– Sim.

– Passaporte?

– Nao tenho.

– Carteira de marinheiro?

– Nao tenho.

– Documento de imigracao?

– Nao tenho.

– Bom.

Diz duas palavras para a moca, ela olha para a sala, vai ate um sujeito, um tipo de marinheiro, que tem um bone como o meu, um galao dourado e uma ancora, e leva ate a caixa. O chines diz:

– Sua carteira de identidade?

– Aqui esta.

O sujeito apresenta a carteira e o chines faz uma ficha de cambio de 1 000 francos em nome do desconhecido, manda que ele assine, a mulher o pega pelo braco e o leva. O outro nao sabe certamente o que se esta passando, eu recebo 250 dolares antilhanos, sendo 50 em notas de 1 e 2 dolares. Dou 1 dolar para a moca, saimos e, sentados numa mesa, fazemos uma orgia de frutos do mar, acompanhados de um vinho branco seco delicioso.

4 PRIMEIRA EVASAO (Continuacao)

TRINIDAD

Lembro-me, como se fosse ontem, da primeira noite de liberdade nessa cidade inglesa. Nos iamos a toda parte, embriagados de luz e de calor em nossos coracoes, namorando a alma desse povo feliz e risonho, que transborda de felicidade. Chegamos a um bar cheio de marinheiros e dessas mulheres dos tropicos que os aguardam para depena-los. Mas essas mulheres nao tem nada de sordido, nada que se compare as suas colegas das bocas do lixo de Paris, do Havre ou de Marselha. E outra coisa, algo muito diferente. Em vez das caras muito maquiladas, marcadas pelo vicio, iluminadas por olhos febris cheios de astucia, o que se ve em Trinidad sao mocas de todas as cores de pele, desde a chinesa ate a negra africana, passando pela chocolate-claro de cabelos lisos, pela hindu ou a javanesa cujos pais se juntaram nos campos de cacau ou de cana-de-acucar, ou a coolie mestica de chines e de hindu, ostentando uma conchinha de ouro numa venta do nariz, ou a cafusa de perfil romano, de rosto bronzeado iluminado por dois olhos enormes, negros, brilhantes, de longos cilios, e projetando uns seios quase inteiramente nus, como que dizendo: “Olhe meus seios, como sao perfeitos”; todas essas mulheres, cada uma com flores de cor diferente nos cabelos, exteriorizam o amor, provocam o gosto pelo sexo, sem nada de sujo ou de comercial; nao dao a impressao de serem profissionais. Elas se animam de verdade e a gente tem a impressao de que para elas o dinheiro nao e a principal motivacao da vida.

Como dois besouros atraidos pelas lampadas, vamos nos dois, Maturette e eu, tropecando de botequim em botequim. Ao desembocar numa pequena praca inundada de luz, vejo a hora, no relogio de uma igreja ou de um templo: 2 horas. Sao 2 horas da manha! Depressa, vamos para casa! Ja abusamos da situacao. A capitoa do Exercito da Salvacao vai ter de nos uma opiniao muito esquisita. Vamos voltar depressa. Pego um taxi para nos levar, two dollars. Pago e entramos muito envergonhados na hospedaria. No hall, uma soldada do Exercito da Salvacao, loira, jovem, dos seus 25 a trinta anos, nos acolhe gentilmente. Nao parece espantada nem chocada por voltarmos tao tarde. Depois de algumas palavras em ingles que adivinhamos serem amaveis e acolhedoras, ela nos da a chave do quarto e nos deseja boa noite. Deitamos. Na valise encontrei um pijama. Antes de apagar a luz, Maturette me diz:

– Acho que a gente podia agradecer ao bom Deus por tudo que nos deu em tao pouco tempo. Que e que voce diz, Papi?

– Agradece por mim ao teu bom Deus, e um grande sujeito. Como voce diz muito bem, ele foi barbaro de generosidade conosco. Boa noite – e apago a luz.

Essa ressurreicao, essa volta do tumulo, essa saida do cemiterio onde eu estava enterrado, todas essas emocoes sucessivas e o banho desta noite, que me reintegrou na vida ao lado de outras criaturas, me excitaram tanto, que nao consigo dormir. No calidoscopio dos meus olhos fechados, as imagens, as coisas, toda essa mistura de sensacoes chegam ao meu espirito sem ordem cronologica e se apresentam com precisao, mas de modo completamente desordenado: o tribunal, a Conciergerie, a seguir os leprosos, depois Saint-Martin-de-Re, Tribouillard, Jesus, a tempestade… Numa danca fantasmagorica, parece que tudo o que vivi neste ultimo ano esta querendo se apresentar ao mesmo tempo na galeria das minhas recordacoes. Por mais que procure espantar essas imagens, nao consigo. E o mais engracado e que elas estao misturadas aos gritos dos porcos, do hocco, ao ulular do vento, ao marulho das ondas, tudo revestido pela musica dos violoes de uma corda so que os hindus tocavam ha poucos instantes nos diversos bares por onde passamos.

Por fim, adormeco ao despontar do dia. Pelas 10 horas, batem a porta. E o Dr. Bowen, sorridente:

– Bom dia, amigos. Ainda deitados? Voces voltaram tarde. Divertiram-se bastante?

– Bom dia. Sim, voltamos tarde, desculpe.

– De nada, ora essa! E muito natural, depois de tudo que sofreram. Voces tinham de aproveitar a primeira noite de homens livres Estou aqui para acompanha-los a Delegacia de Policia. Voces tem que se apresentar a policia para declarar oficialmente que entraram no pais clandestinamente. Depois dessa formalidade, iremos ver o seu amigo. Ele fez radiografia hoje muito cedo. Saberemos o resultado mais tarde.

Depois de nos lavarmos rapidamente, descemos para o vestibulo, onde encontramos Bowen a nossa espera, ao lado do capitao.

– Bom dia, amigos – diz em mau frances o capitao.

– Bom dia para todos, tudo vai bem? – uma graduada do Exercito da Salvacao nos diz. – Voces gostaram de Port-of-Spain?

– Oh, sim, senhora! Ficamos encantados.

Tomamos uma xicrinha de cafe e seguimos para a delegacia. Vamos a pe, pois dista apenas 200 metros. Todos os policiais nos saudam e nos olham sem qualquer

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