Instalamos Clousiot sobre os joelhos dos tres, que se sentam atras. Fico junto do motorista, Maturette ao meu lado.
– Voces naufragaram?
– Sim.
– Alguem se afogou?
– Nao.
– De onde voces vem?
– De Trinidad.
– E antes disso?
– Da Guiana Francesa.
– Sentenciados?
– Sentenciados.
– Eu sou o Dr. Naal, proprietario desta faixa de terra, uma peninsula pegada a Curacau. Esta peninsula e chamada Ilha dos Burros. Os burros e as cabras vivem aqui comendo cactos espinhosos. Esses espinhos sao chamados pelo povo “as senhoritas de Curacau”. Para mim, isso nao e muito gentil para as verdadeiras senhoritas de Curacau.
O doutor, grande e gordo, ri ruidosamente. O Ford, sem folego, chiando como um asmatico, para por si mesmo. Mostrando entao alguns burros, digo:
– Se o carro nao quer andar, pode facilmente ser rebocado.
– Tenho uma especie de arreio no porta-mala, mas o problema e pegar dois burros e arrea-los. Nao e nada facil!
O gordo motorista levanta a capota e logo verifica que um solavanco mais forte desligou um fio que vai para as velas. Antes de tornar a subir no carro, olha para todos os lados, com ar inquieto. Partimos novamente e, apos haver passado por caminhos desbarrancados, chegamos a uma barreira branca, que interrompe a passagem. Ao lado se ergue uma casinha branca. Nosso condutor conversa em holandes com um mulato bem vestido, que diz, a todo instante: “Ya master, ya master”. Em seguida, ele nos diz:
– Dei ordem a esse homem para que lhes faca companhia e lhes de agua para beber, se estiverem com sede, ate que eu volte. Podem descer do carro.
Descemos e nos sentamos ao lado do carro, sobre o capim e na sombra. O Ford asmatico vai embora. Esta a 50 metros, quando o mulato nos diz, em
Descem todos e um deles, o menor, com uma cara de padre, muito escanhoada, nos diz:
– Sou o chefe de seguranca da ilha de Curacau. Pela minha propria obrigacao, vejo-me constrangido a prende-los. Voces cometeram algum delito depois da sua chegada a ilha? Qual delito? E qual de voces?
– Meu senhor, nos somos sentenciados evadidos. Viemos de Trinidad e faz poucas horas que o nosso barco se arrebentou contra os rochedos da ilha. Sou o chefe deste pequeno grupo e posso afirmar que nenhum de nos cometeu o menor delito.
O comissario vira-se para o Dr. Naal e lhe fala em holandes.
Enquanto discutem, chega um sujeito de bicicleta. Fala alto e depressa, dirigindo-se tanto ao Dr. Naal quanto ao comissario.
– Sr. Naal, por que disse a esse senhor que nos eramos ladroes?
– Por que este homem que chegou agora me avisou, antes que eu me encontrasse com voces, que, escondido atras de um cacto, ele os vira entrar e sair da sua casa. Este homem e um empregado meu que trata de uma parte dos burros.
– Entao, so porque entramos na casa, somos ladroes? O senhor esta dizendo uma bobagem, nos so bebemos agua. Acha que isso e roubo?
– E a bolsa de florins?
– A bolsa eu abri, e verdade, e ate quebrei o cordao. Mas nao fiz nada senao espiar que especie de dinheiro era, para saber em que pais tinhamos chegado. Tornei a colocar escrupulosamente o dinheiro e a bolsa onde eles estavam, sobre a beirada do fogao.
O comissario me encara fixamente nos olhos e, voltando-se bruscamente para o homem da bicicleta, fala duro com ele. O Dr. Naal faz um gesto e quer falar. Secamente, a moda alema, o comissario nao o deixa intervir. O comissario faz subir o homem da bicicleta ao lado do motorista do seu carro, sobe atras, acompanhado de dois policiais, e vai embora.
– Devo explicar a voces – diz ele – que esse homem me disse que a bolsa havia desaparecido. Antes de mandar revista-los, o comissario interrogou o homem, suspeitando de que ele mentia. Se voces sao inocentes, lamento muito o incidente, mas nao tenho culpa.
Em cerca de um quarto de hora o carro esta de volta e o comissario me diz:
– Voce disse a verdade, esse homem e um infame mentiroso. Ele sera punido por tentar prejudicar voces gravemente.
Enquanto isso, o sujeito e embarcado na “viuva alegre”, meus cinco companheiros tambem sobem e eu vou embarcar tambem, mas o comissario me segura, dizendo:
– Venha no meu carro, ao lado do chofer.
Partimos a frente da camioneta e logo a perdemos de vista. Seguimos por estradas muito bem asfaltadas e penetramos na cidade, cujas casas sao de estilo holandes. Tudo e muito limpo e toda a gente anda de bicicleta. Centenas de pessoas sobre duas rodas, assim, vao e vem pela cidade. Entramos na Central de Policia. Atravessando uma grande sala, onde varios oficiais da policia, todos vestidos de branco, tem as suas escrivaninhas, entramos noutra sala, com ar condicionado. Ai, a temperatura e bem fresca. Um homem alto e forte, louro, de seus quarenta anos, esta sentado numa poltrona. Levanta-se e fala em holandes. Terminados os cumprimentos, o comissario diz, em frances:
– Apresento-lhe o primeiro-comandante da policia de Curacau. Senhor comandante, este homem e um frances, chefe do grupo de seis homens que detivemos.
– Muito bem, comissario.
E, dirigindo-se a mim:
– Seja bem-vindo a Curacau, em sua qualidade de naufrago. Qual e seu nome?
– Henri.
– Pois bem, Henri, voce passou um mau quarto de hora por causa do incidente da bolsa, mas esse incidente tambem foi favoravel para voce, porque demonstrou que e mesmo honesto. Vou mandar por a sua disposicao uma sala bem iluminada, com beliches, para que voces descansem. O seu caso sera submetido ao governador, que tomara as providencias necessarias. Tanto o comissario quanto eu faremos todo o possivel para ajudar voces.
Apertou-me a mao e saimos. No patio, o Dr. Naal pede desculpas pelo acontecido e promete interessar-se pelo nosso caso. Duas horas depois, estamos todos trancados numa sala muito grande, retangular, com umas doze camas, uma mesa comprida com bancos no centro. Com os dolares de Trinidad, pedimos a um guarda, pela janela gradeada, que nos compre fumo, papel e fosforos. Ele nao apanha o nosso dinheiro.
– Esse negro de ebano – diz Clousiot – esta com cara de cumpridor fanatico do regulamento. Parece que nao vamos ter esse fumo tao cedo.
Passo entao a bater na porta, que se abre no mesmo momento. Um homenzinho, com aparencia de
– Dinheiro, cigarros.
– Nao. Tabaco, fosforos e papel.
Ele volta dentro de poucos minutos, com tudo o que pedimos e mais um bule fumegante de chocolate. Nos todos bebemos, em grandes vasilhas trazidas pelo prisioneiro.
A tarde, eles vem me procurar. Volto a sala do comandante.
– O governador me deu ordem de deixar voces livres no patio da cadeia. Diga aos seus companheiros que nao procurem fugir, pois as consequencias seriam graves para todos nos. Voce, como chefe do grupo, pode ir a cidade todos os dias de manha, das 10 ao meio-dia, e todas as tardes, das 3 as 5. Voce tem dinheiro?
– Sim. Moeda inglesa e francesa.
– Um policial a paisana acompanhara voce aonde queira ir, durante as suas saidas.
– Que vao fazer com a gente?
– Pelo que me parece, vamos procurar embarca-los, um de cada vez, nos petroleiros de varias nacoes. Como Curacau tem uma das maiores refinarias do mundo, que processa o petroleo da Venezuela, entram e saem por dia uns vinte a 25 petroleiros de todos os paises. Seria a solucao ideal para voces, porque chegariam em outros paises sem problema algum.
– Que outros paises, por exemplo? Panama, Costa Rica, Guatemala, Nicaragua, Mexico, Canada, Cuba, Estados Unidos e os paises de lei inglesa?
– Impossivel. A Europa tambem e impossivel. Fiquem tranquilos, tenham confianca, deixem-nos trabalhar para ajuda-los a por o pe no estribo, no caminho de uma vida nova.
– Obrigado, comandante.
Conto tudo fielmente aos meus companheiros. Clousiot, o mais desconfiado do bando, pergunta:
– Qual e a sua opiniao, Papillon?
– Nao sei ainda. Acredito que estao nos levando na conversa, para ficarmos quietos e nao fugirmos,
– Pois olhe – diz ele -, acho que voce tem razao.
Ja o bretao acredita naquele plano maravilhoso. O sujeito do ferro de engomar demonstra tambem seu jubilo, dizendo:
– Acabaram-se as canoas e as aventuras, agora estamos garantidos. Chegaremos a um pais qualquer num grande petroleiro e ficaremos oficialmente la; acabou tudo.
Leroux tem a mesma opiniao.
– E voce, Maturette?