– E um caso para pensar. Para ser justo nessa historia, e preciso ter vivido o momento, sem isso nao se sabe onde esta a verdade.

Clousiot acrescenta:

– Eu tambem o teria matado, porque e uma mentira que pode custar a vida a todo mundo.

– Bem, nao falemos mais nisso. Mas tenho a impressao de que voces tiveram muito medo, que voces ainda estao com medo e que estao no mar porque foram obrigados, nao e verdade?

– Pois e isso mesmo! – respondem em coro.

– Pois bem, aqui, nada de panico, aconteca o que acontecer. Ninguem pode, em nenhum caso, mostrar o seu medo. Quem estiver com medo, que cale a boca. Este barco deu provas de que e bom. Agora estamos mais carregados que da outra vez, mas ele esta mais alto 10 centimetros, o que compensa, largamente, a sobrecarga.

Fumamos e tomamos cafe. Comemos muito bem antes de partir e por isso decidimos so comer na manha seguinte.

Estamos a 9 de dezembro de 1933. Faz quarenta dias que a fuga comecou, na saia blindada do hospital de Saint-Laurent. E Clousiot, o “contador” da nossa turma, quem informa isso. Tenho agora tres coisas preciosas que nao possuia na partida: um relogio de aco a prova de agua, comprado em Trinidad; uma bussola autentica com dupla caixa de suspensao, com rosa-dos-ventos exata; e um par de oculos pretos de celuloide. Clousiot e Maturette tem cada um o seu bone.

Tres dias se passam sem incidentes, a nao ser termos topado duas vezes com bandos de golfinhos. Fizeram-nos suar frio, quando um grupo de oito se pos a brincar com o barco. Eles passavam de comprido por baixo, vindos da popa, e emergiam justo diante da proa. As vezes podiamos tocar algum com a mao. Mas o que mais nos impressionou foi o jogo seguinte: tres golfinhos em triangulo, um na frente e dois atras, em linhas paralelas, investem numa velocidade louca, firmes, contra a nossa proa. No momento em que estao quase chocando com o barco, mergulham e voltam a tona, a direita e a esquerda da embarcacao. Embora estejamos navegando com vento forte e com as velas desfraldadas, os bichos correm mais depressa do que nos. E um brinquedo que dura horas, e alucinante. O menor erro em seus calculos e eles nos farao virar! Os tres novos companheiros nada dizem, mas suas caras estao descompostas!

No meio da noite do quarto dia desencadeou-se uma tempestade horrorosa. Foi realmente uma coisa espantosa. O pior e que as ondas nao seguiam o mesmo sentido. Muitas vezes chocavam umas com as outras. Algumas eram profundas, outras curtas, nao se compreendia nada. Ninguem abria a boca a nao ser Clousiot, que me gritava de vez em quando: “Aguenta firme, meu chapa! Pula nessa como pulou nas outras!” ou “Cuidado com a que vem atras!” Coisa rara, os vagalhoes chegavam as vezes de tres quartos, rugindo e espumejando. Eu calculava a velocidade deles e previa muito bem o angulo de ataque. E sem qualquer logica chegava de repente, de um so golpe, um vagalhao que batia no rabo do barco, completamente de pe. Varias vezes essas ondas desabaram sobre as minhas costas e, naturalmente, uma boa parte entrava na embarcacao. Os cinco homens, armados de panelas e latas, tiravam a agua sem interrupcao. Apesar de tudo, nunca encheu mais de um quarto do barco e portanto nunca corremos o risco de afundar. Esse parque de diversoes durou metade da noite, quase sete horas. Por causa da chuva, so avistamos o sol as 8 horas.

Acalmada a tempestade, o sol novinho do comeco do dia, brilhando com toda a sua plenitude, foi aclamado por todos com alegria. Antes de mais nada, o cafe. Um cafe com leite Nestle quente, bolachas de marinheiro, duras como ferro, mas que, molhadas no cafe, sao deliciosas. A luta noturna contra a tempestade me arrebentou todo, nao aguento mais e, embora o vento ainda sopre fortemente e as ondas continuem altas e indisciplinadas, peco a Maturette para me substituir um pouco. Quero dormir. Nao faz nem dez minutos que estou deitado, quando Maturette se deixa pegar de banda por uma onda, que alaga tres quartos do barco. Tudo esta flutuando: latas, fogareiro, cobertores… Chego ate o leme com a agua pela barriga, justo em tempo para agarra-lo e evitar um vagalhao quebrado que avanca direto sobre nos. Com uma virada do leme, consigo receber a onda pela popa; nao entra agua, mas somos projetados com forca a mais de 10 metros do impacto.

Todo mundo tira agua do barco. Um grande caldeirao, manejado por Maturette, retira 15 litros de cada vez. Ninguem se preocupa em salvar coisa alguma, todos so tem uma ideia fixa: botar para fora o mais depressa possivel essa agua que torna o barco tao pesado e o impede de se defender bem. das ondas. Devo reconhecer que os tres novos se comportaram bem; o bretao, vendo a sua caixa levada pelo mar, tomou sozinho sem hesitar a decisao de desprender a barrica de agua potavel e atira-la para fora do barco. Duas horas depois, tudo esta seco, mas perdemos os cobertores, o fogareiro, o fogao, os sacos de carvao, o garrafao de querosene e a barrica de agua, esta voluntariamente.

Ao meio-dia, querendo trocar de calca, percebo que a minha maleta tambem foi carregada pelo mar, bem como dois dos tres oleados. Bem no fundo do barco, encontramos duas garrafas de rum. Todo o tabaco foi perdido ou molhado e o papel para enrolar cigarros desapareceu com a lata a prova de agua.

– Companheiros, primeiro uma talagada de rum, uma boa dose; depois abram a caixa de reserva, para ver com que recursos ainda podemos contar. Ainda tem suco de frutas, muito bem, vamos racionar a bebida. Esvaziem uma das latas de biscoitos petit-beurre e facam um fogareiro com ela. Vamos por as latas de conserva no fundo do barco e fazer fogo com as tabuas da caixa. Estivemos todos com medo, mas agora o perigo passou. Cada um precisa se recuperar e enfrentar a realidade. A partir deste momento, ninguem deve dizer: estou com sede, estou com fome, ou tenho vontade de fumar. Estao de acordo?

– Sim, Papi, estamos.

Todo mundo se comportou bem e a Providencia fez amainar o vento, para que pudessemos fazer uma sopa na base do corned-beef. Com uma tigela cheia dessa sopa, na qual mergulhamos as bolachas de soldado, enchemos a barriga com um grude gostoso e quente, suficiente para nos manter ate o proximo dia. Fizemos um pouquinho de cha verde para cada um. Na caixa intata, encontramos um pacote de cigarros. Sao 24 macinhos de oito cigarros. Os cinco outros decidem que somente eu devo fumar, para me ajudar a ficar acordado; para evitar invejosos, Clousiot nao acende mais os cigarros para mim, dando a primeira tragada, mas so me da fogo. Gracas a essa compreensao, nao surge nenhum incidente desagradavel entre nos.

Ja faz seis dias que partimos e ainda nao pude dormir. Como esta noite o mar esta feito um lago, aproveito para dormir, durmo quase cinco horas a sono solto. Continua a calmaria. Eles comeram sem mim e eu encontro, ao acordar, uma especie de polenta, muito bem feita, com farinha de milho de lata, que devoro com algumas linguicas defumadas. E delicioso. O cha esta quase frio, nao tem importancia. Fumo e espero que o vento nos faca o favor de reaparecer.

A noite esta maravilhosamente estrelada. A estrela Polar brilha com toda a sua luz e somente o Cruzeiro do Sul ganha dela em materia de luminosidade. Veem-se nitidamente a Ursa Maior e a Ursa Menor. Nao ha uma nuvem e a lua cheia ja esta bem alta no ceu estrelado. O bretao esta tremendo de frio; perdeu sua malha e esta em mangas de camisa. Empresto-lhe o meu oleado. E assim enfrentamos o setimo dia.

– Gente, nao podemos estar muito longe de Curacau. Tenho a impressao de ter subido um pouco demais para o norte. Agora vou virar em cheio para oeste, porque nao podemos perder as Antilhas holandesas. Seria um caso serio, pois ja estamos sem agua doce e sem viveres, so com a reserva.

– Temos confianca em voce, Papillon – diz o bretao.

– Sim, temos confianca – repetem os outros, em coro. – Faca como voce quiser.

– Obrigado.

Creio que falei bem. O vento se faz esperar toda a noite e e somente as 4 da manha que comeca a empurrar o barco. Esse vento, que aumenta bastante durante a manha, dura mais de 36 horas, com uma forca suficiente para imprimir boa velocidade a embarcacao, e com vagas tao pequenas que a quilha nao bate.

CURACAU

Gaivotas. Primeiro so se ouvem os gritos, porque e noite, a seguir se veem as proprias aves, voando em volta do barco. Uma delas pousa no mastro, parte e volta novamente. O manejo dura mais de tres horas, ate que se levante o dia, com sol radioso. Nada no horizonte a indicar a terra. Que diabo! De onde vem essas gaivotas, grandes e pequenas? Nossos olhos observam o horizonte o dia todo. Nenhum indicio de terra proxima. A lua cheia se levanta no momento em que o sol se deita, essa lua tropical e tao brilhante, que a reverberacao me incomoda. Ja nao tenho os oculos, que se foram com o famoso vagalhao, que levou tambem todos os bones. La pelas 8 da noite, percebe-se no horizonte, muito distante, iluminada pelo luar, uma linha negra.

– Dessa vez deve ser a terra: – diz o primeiro.

– Sim, com certeza.

Logo, todos nos percebemos que ha realmente uma linha escura, que deve ser a terra. Durante o resto da noite fico com a minha proa dirigida para essa sombra, que aos poucos vai adquirindo contornos mais precisos. Estamos chegando. Empurrados por um forte vento sem nevoa e por uma onda alta mas longa e calma, chegamos a terra com boa velocidade. A massa negra nao e muito alta e nada indica se a costa e constituida de falesias, rochedos ou praias. A Lua, que esta se deitando do outro lado dessa terra, projeta uma sombra que nao me deixa ver nada, a nao ser, na superficie da agua, uma fileira luminosa, primeiro unida e depois fragmentada. Vou chegando para perto e, a cerca de 1 quilometro, lanco a ancora. O vento e forte, o barco vira sobre si mesmo e enfrenta as ondas, que o pegam bem de frente a cada vez que passam. O balanco do barco e grande e, portanto, muito incomodo. Naturalmente, as velas estao abaixadas e dobradas. Poderiamos ter esperado ate o nascer do dia nessa posicao desagradavel porem segura; mas por desgraca a ancora se afrouxa de repente. Preparamos a bujarrona s o traquete. E estranho, a ancora nao da sinal de si. Meus camaradas puxam o cabo, ele volta sem a ancora, ela esta perdida. Apesar de todos os meus esforcos, as ondas nos aproximam tao perigosamente dos rochedos que resolvo armar as velas e dirigir-me para a terra, voluntariamente, a toda forca. A manobra e tao bem sucedida, que de repente nos encontramos encravados entre dois rochedos, o barco inteiramente desconjuntado. Ninguem grita “salve-se quem puder”, mas, quando chega a onda seguinte, lancamo-nos todos a agua para chegar a terra, rolando, batendo, mas vivos. Somente Clousiot, com a perna engessada, sofreu mais que os outros. Esta com o braco, o rosto e as maos ensanguentados, cheio de arranhoes. Os outros apenas sofreram algumas pancadas nos joelhos, nas maos e nos tornozelos. Estou sangrando de uma orelha, que bateu fortemente contra uma rocha.

De qualquer maneira, estamos todos vivos, a salvo das ondas, na terra seca. Quando o dia nasce, recuperamos um oleado e volto para o barco, que comeca a se desmanchar. Consigo arrancar a bussola, pregada no banco traseiro. Nao ha viva alma em toda a regiao. Olhamos para o lugar em que se encontravam aquelas luzes: e uma fileira de lampadas que, segundo soubemos mais tarde, serve para indicar aos pescadores que o lugar e perigoso. Caminhamos a pe para o interior da terra. So se veem cactos, enormes cactos e uma porcao de burricos. Chegamos a um poco, muito cansados, pois, nos revezando, dois de cada vez, somos obrigados a fazer “cadeirinha” para carregar Clousiot. Em volta do poco, carcacas ressequidas de burros e de cabras. O poco esta seco, as pas do moinho que o faziam funcionar giram a toa, sem puxar agua. Nao se avista uma pessoa viva, apenas burros e cabras.

Caminhamos ate uma pequena casa, cujas portas abertas nos convidam a entrar. Gritamos: “O de casa!” Ninguem aparece. Sobre o fogao esta uma bolsa de pano, fechada por um barbante. Passo a mao nela e abro o no. Nisso, o barbante se rompe; a bolsa esta cheia de florins, moeda holandesa. Estamos, portanto, em territorio holandes: Bonaire, Curacau ou Aruba. Tornamos a colocar a bolsa no lugar sem tirar nada, encontramos uma talha de agua e bebemos com uma concha. Ninguem na casa, ninguem nas vizinhancas. Recomecamos a caminhar, muito lentamente por causa de Clousiot, quando um velho Ford surge em nosso caminho.

– Voces sao franceses?

– Sim, senhor.

– Podem subir no meu carro.

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